Capítulo 1 a 5


 Capítulo 1 [001] Atravessando 

Sentado na cama, olhando com desânimo para aquela simples casa de adobe, Liu Mufeng estava abatido e confuso...

Liu Mufeng é órfão. Cresceu em um orfanato desde criança. Apesar de já ter vivido 28 anos, não sabe quem são seus pais e nunca sentiu o calor do amor familiar. Contudo, é uma pessoa otimista e alegre. Além disso, é um super estudante na escola, cursando doutorado.

Um dia, ele saiu para brincar com alguns colegas, mas acabou caindo acidentalmente no lago e se afogou.

Quando Liu Mufeng abriu os olhos novamente, percebeu que estava naquela casa de adobe, e uma memória que não lhe pertencia surgiu em sua cabeça. Então, ele havia viajado no tempo? E, pior ainda, ele tinha ido parar naquele romance de fantasia que estava lendo?

O romance de fantasia que Liu Mufeng estava lendo se chamava Gênio Marcial Espiritual. Contava a história inspiradora do protagonista, nascido no Continente Lingwu, que superou todos os obstáculos, conquistou seis belas esposas e se tornou um homem forte no mundo da cultivação.

Nesse romance, havia um pequeno personagem coadjuvante com o mesmo nome e sobrenome de Liu Mufeng. Esse coadjuvante era um cara azarado. Ele possuía um forno alquímico, uma herança alquímica e uma pulseira espacial.

O pequeno coadjuvante era um talento ruim do Wulinggen. Ele queria comprar uma Pílula Qingling para mudar seu destino, então vendeu o forno de pílulas e a herança alquímica. Como resultado, o forno atraiu a cobiça da heroína, e o protagonista e a heroína mataram e roubaram o tesouro, levando o forno alquímico, a herança e a pulseira espacial do coadjuvante.

Embora o autor do romance tenha embelezado esse episódio, dizendo que foi porque o coadjuvante pediu muito dinheiro, e por isso o casal protagonista o matou num momento de raiva, Liu Mufeng não concordava. Ele achava que aquilo era um negócio, uma simples negociação e barganha, e que não se pode matar pessoas e roubar tesouros só porque pediram mais dinheiro. Que tipo de bobagem era essa?

Ao ler o romance, Liu Mufeng se compadecia do coadjuvante que tinha o mesmo nome que ele. Mas agora, Liu Mufeng descobria, com tristeza, que tinha reencarnado naquele coadjuvante, o objeto da compaixão — o degrau da heroína, o azarado que foi assassinado pelo casal protagonista — e agora era ele!

Segundo a memória do dono original, Liu Mufeng sabia que o outro tinha 13 anos naquele ano, pois tinha a má aptidão do Wulinggen e, por não ter pai nem mãe desde os cinco anos, fora mandado para a Vila Zhangjia pela família há três meses.

A família Liu do dono original era uma grande família na Cidade Shuangyang, mas uma grande família apenas numa cidade pequena, sem comparação com as famílias poderosas das metrópoles. A família Liu vivia do cultivo de ervas espirituais há gerações, com muitos cultivadores excelentes na linhagem. Mesmo com o grande negócio da família, os bons recursos eram limitados e preferencialmente destinados aos filhos com melhores aptidões. Quanto aos de aptidão fraca, eram mandados para vilarejos pequenos para cultivar. Infelizmente, o dono original era um desses casos.

A Vila Zhangjia era uma das redondezas de Shuangyang, onde os moradores também sobreviviam plantando ervas espirituais. Eles colhiam tudo e vendiam para a empresa comercial da família Liu na cidade, que depois revendia para outras forças. Havia muitas vilas assim, ajudando a família Liu no cultivo de ervas e arroz espiritual. E a Vila Zhangjia era a mais pobre delas. Os pais do dono original haviam morrido cedo, ele não tinha apoio nem aptidão, então o tio do dono o mandou para essa vila pobre.

Segundo o livro original, o dono seria assassinado e teriam seus bens roubados pelo casal protagonista aos 16 anos. Ele tinha agora 13 e seria morto em três anos. Pensando nisso, Liu Mufeng suspirou. Parecia que precisava encontrar uma saída, pois não queria reencarnar com tanto esforço e acabar perdendo a vida em três anos novamente.

Levantando da cama, caminhou lentamente até o criado-mudo e olhou para o rosto imaturo de um garoto de 13 anos no espelho de bronze. A aparência do dono original não era bonita, mas delicada. Porém, o corpo daquele jovem já estava cheio de força. A aptidão dele não era boa, mas ele era esforçado, então esse garoto de 13 anos já era um cultivador de quatro estrelas no Reino Mortal¹. Naquela vila, tirando o chefe de cinco estrelas do Reino Espírito Mortal, ele já era um mestre destacado!

Levantando a mão, Liu Mufeng socou o espelho de bronze. O vidro estilhaçou-se, e os pedaços caíram no chão.

Olhando para a destruição que causara, Liu Mufeng ergueu um leve sorriso, cheio de excitação.

— Isso aqui é realmente um continente mágico!

Níveis de cultivação

Como este é um romance de cultivação, apresento os níveis de cultivação que aparecerão na história para que ninguém se confunda durante a leitura:

O nível inicial de cultivação no Continente Lingwu é o Reino Mortal: de uma a nove estrelas. (cultivador de primeiro nível)

Reino Espírito: uma a nove estrelas. (cultivador de segundo nível)

Reino Mestre Espírito: uma a nove estrelas. (cultivador de terceiro nível)

Reino Rei Espírito: uma a nove estrelas. (cultivador de quarto nível)

Reino Imperador Espírito: uma a nove estrelas. (cultivador de quinto nível)

Reino Profundo Espírito: uma a nove estrelas. (cultivador de sexto nível)

Reino Lingzong: uma a nove estrelas. (cultivador de sétimo nível)

Reino Venerável Espírito: uma a nove estrelas. (cultivador de oitavo nível)

Reino Espírito Sagrado: uma a nove estrelas. (cultivador de nono nível)

¹ No contexto do romance, "Reino Mortal" é o estágio inicial de cultivação, correspondendo ao primeiro nível de cultivador.


 Capítulo 2 [002] Gladíolo 

Depois de recolher os cacos do espelho de bronze, Liu Mufeng examinou melhor sua atual “casa”: três simples construções de adobe — uma servia de cozinha, as outras duas eram sala e quarto. Fora a cama de madeira, havia apenas um biombo quebrado, o que tornava o ambiente ainda mais frio e desolado.

Depois de inspecionar o interior e o exterior, Liu Mufeng saiu até o quintal. No pátio, estava plantado um gladíolo espiritual de primeiro nível¹. O gladíolo é o principal ingrediente no refino da Pílula de Rejuvenescimento de primeiro nível, e também uma das ervas espirituais mais vendidas. Uma planta madura pode ser vendida por uma pedra espiritual².

O ciclo de crescimento do gladíolo espiritual é de seis meses. Se deixado crescer naturalmente, esse é o tempo que leva para amadurecer. No entanto, se um cultivador espiritual³ usar técnicas de aceleração diariamente, a planta pode amadurecer em apenas um mês.

Os moradores da vila tinham níveis de cultivação muito baixos, e os conhecimentos sobre cultivo de ervas espirituais eram bastante limitados. Por isso, as plantas que cultivavam levavam geralmente de dois a três meses para amadurecer. Apenas o antigo dono daquele corpo, por vir de uma grande família, possuía mais conhecimento sobre o cultivo espiritual e cultivava melhor do que os outros. Assim, as ervas que ele plantava amadureciam em apenas um mês.

O gladíolo espiritual do quintal havia sido plantado cinco dias atrás e mal havia brotado. Conforme as memórias do antigo dono, Liu Mufeng executou a técnica espiritual e regou todas as ervas. Em seguida, voltou para a cozinha e preparou seu próprio jantar.

Como órfão, Liu Mufeng sempre soube se virar, e sua habilidade culinária era excelente. Logo, o jantar ficou pronto.

Sentado à mesa, Liu Mufeng comeu em silêncio e depois ficou sentado, pensativo.

Três anos. Só tenho três anos! Ele era um portador das cinco raízes espirituais⁴, um gênio de quatro estrelas, então definitivamente não seria páreo para o protagonista e a heroína. Além disso, eles tinham o halo de protagonistas — não podiam ser feridos tão facilmente. O que devo fazer? O que fazer...?

Vasculhou as memórias do corpo original repetidamente em busca de uma solução. Mas, para sua frustração, o antigo dono era um garoto obediente que começou a cultivar aos cinco anos. Enquanto morava na casa da família Liu, raramente saía. Passava os dias treinando e estudando técnicas de cultivo. Só aos treze anos foi mandado para a Vila Zhangjia. Por isso, ele conhecia muito pouco sobre o continente — era impossível encontrar respostas confiando apenas em suas lembranças.

Como um acadêmico brilhante, Liu Mufeng acreditava firmemente na ideia de que “o conhecimento pode mudar o destino”. Por isso, decidiu que precisava encontrar uma maneira de aprender mais sobre aquele continente, descobrir uma forma de se salvar — e talvez até viver em paz.

— O que eu devo fazer? — murmurou, franzindo a testa. Pensou longamente, até que finalmente teve uma ideia: ir até a Cidade Shuangyang. Lá havia uma grande livraria. Talvez pudesse dar uma olhada. Eu sou um estudioso e tenho memória fotográfica. Se ler bastante, posso aprender tudo sobre este Continente Lingwu. Talvez eu ache uma solução para as minhas cinco raízes espirituais. Preciso encontrar uma forma de melhorar rápido.

— Certo. Amanhã organizo tudo aqui em casa, preparo um pouco de comida e vou para Shuangyang. Não posso simplesmente esperar que o protagonista e a heroína venham me matar — decidiu Liu Mufeng, enquanto tocava a pulseira espacial em seu dedo. Aquela pulseira era uma herança deixada por seu pai. Embora não fosse muito espaçosa, era o único tesouro do antigo dono.

Abrindo o espaço da pulseira, Liu Mufeng verificou os pertences: cinco conjuntos de roupas, sapatos, meias, várias sementes de ervas espirituais de primeiro nível e algumas pedras espirituais. Essas pedras foram obtidas com a venda do último lote de gladíolos espirituais, cinco dias atrás. Ele havia ganhado 153 pedras espirituais. Três foram usadas para comprar comida. Outras quatro, gastas diariamente na prática. Em cinco dias, foram consumidas 20 pedras. Assim, ainda restavam 130, além de 35 taéis⁵ de prata solta. Tanto a prata quanto as pedras espirituais eram moedas correntes. Cem taéis de prata podiam ser trocados por uma pedra espiritual — e vice-versa.

Guardou as roupas e as sementes, separou quatro pedras espirituais e guardou o restante.

Segurando uma pedra espiritual, sentou-se à beira da cama e iniciou seu primeiro treino, guiado pelas memórias do antigo dono. Ao absorver a energia espiritual concentrada na pedra, Liu Mufeng sentiu-se renovado — como se uma corrente morna lavasse seu corpo repetidas vezes. O fluxo de energia percorreu todo o seu corpo e, por fim, concentrou-se em seu dantian⁶.

Levantando a mão, Liu Mufeng tocou o próprio abdômen inferior, pensando consigo:

Como seria maravilhoso ter uma única raiz espiritual...


Notas de rodapé:

  1. Gladíolo espiritual: planta cultivada como erva medicinal no mundo da cultivação. Usada na produção de pílulas de cura.

  2. Pedra espiritual: pedra imbuída com energia espiritual, utilizada como moeda e também como fonte de energia para o cultivo.

  3. Cultivador espiritual: pessoa especializada no cultivo de ervas espirituais, com técnicas para acelerar o amadurecimento.

  4. Cinco raízes espirituais: representa uma aptidão espiritual dispersa e extremamente ruim, tornando o avanço no cultivo lento e difícil.

  5. Tael: unidade tradicional de medida de prata. Cem taéis equivalem a uma pedra espiritual.

  6. Dantian: ponto energético no abdômen inferior onde os cultivadores armazenam e refinam energia espiritual.


Capítulo 3 [003] – O Vento de Outono

Na manhã seguinte, Liu Mufeng levantou-se bem cedo. Após tomar café da manhã, saiu de casa e, com base nas memórias do antigo dono do corpo, encontrou o campo espiritual que lhe pertencia. O terreno e a simples casa de adobe haviam sido dados pela família. O campo espiritual não era grande — impossível fazer fortuna com um pedaço de terra tão pequeno —, mas, com habilidade no plantio de ervas espirituais, era mais do que suficiente para garantir o próprio sustento. Essa era a política de sobrevivência das grandes famílias: aumentar a receita e reduzir os gastos.

Muitos filhos de famílias com qualificações ruins ficavam arrasados após serem designados a esses lugares. Alguns passavam o resto da vida na decadência, tornando-se, no fim, iguais a pessoas comuns. Outros se casavam com mulheres ordinárias e levavam uma vida comum. Havia ainda os que se recusavam a abandonar a família, tentando voltar a todo custo — e no fim desperdiçavam toda a vida em vão.

O antigo dono havia perdido os pais aos cinco anos e tinha uma personalidade resiliente. Por isso, mesmo tendo sido enviado à Vila Zhangjia, jamais se entregou ao desânimo. Pelo contrário, sempre cuidou com afinco do cultivo de ervas espirituais e praticava com seriedade. Era um jovem muito sensato!

Liu Mufeng deu uma olhada geral no seu campo espiritual e percebeu que a grama gladioli¹ do campo estava da mesma altura da que havia no pátio. Ambas pareciam ter acabado de brotar.

Retirando um balde e uma concha de sua bolsa interespacial, Liu Mufeng regou a grama espiritual com cuidado, depois executou um feitiço para acelerar o amadurecimento, e só então deixou o campo.

— Ei, mas não é o Nono Jovem Mestre? Tão trabalhador, vindo cuidar do seu campo espiritual logo de manhãzinha! — disse um rapaz espalhafatoso, ao lado de uma moça igualmente chamativa, bloqueando o caminho de Liu Mufeng.

Ao ver quem era, Liu Mufeng franziu a testa. Eram Zhang Ping e Zhang Cui, irmãos gêmeos de treze anos. Ambos eram cultivadores de duas estrelas no Reino Espiritual Mortal, com seis raízes espirituais. Zhang Ping, o irmão mais velho, era um delinquente conhecido na vila, envolvido com todo tipo de trapaça e sequestro. Já Zhang Cui era considerada a flor da vila, com um rosto bonito que usava para pedir pedras espirituais emprestadas ao antigo dono do corpo.

O antigo dono, um jovem mestre de uma grande família sem muita experiência de vida, nutria uma grande admiração por Zhang Cui. Sempre que ela aparecia com desculpas esfarrapadas para pedir pedras espirituais emprestadas, ele as entregava sem dizer uma palavra. Pensando bem, esses dois irmãos provavelmente vieram me “atacar com o vento de outono”².

— Ora, se não são os dois companheiros Daoístas Zhang! Vieram verificar os campos tão cedo? — disse Liu Mufeng com um sorriso, cumprimentando os irmãos como de costume. O antigo dono era o nono primo entre os jovens da família, então todos na vila o chamavam de Jiu Shao (Nono Jovem Mestre).

— Irmão Liu, meu irmão mais velho foi caçar feras na selva e acabou gravemente ferido. O médico disse que, se não tomarmos o remédio a tempo, então, então ele vai... — Na parte final da frase, os olhos de Zhang Cui se encheram de lágrimas. Ela se virou, com uma expressão tão triste e delicada que despertaria instantaneamente o instinto de proteção de qualquer homem.

— Ah? O irmão Zhang está tão gravemente ferido assim? Então por que vocês ainda estão parados aqui? Por que não foram comprar logo o remédio na cidade? — perguntou Liu Mufeng, fingindo surpresa.

— Irmão Liu, nossa família não tem tantas pedras espirituais. Meu segundo irmão e eu já fomos a várias casas, mas ainda não conseguimos emprestar nenhuma! — disse Zhang Cui, os olhos ainda mais vermelhos.

— Bom, então vão até o chefe da vila e peçam ajuda! Talvez ele tenha uma solução — sugeriu Liu Mufeng, tentando ajudar com gentileza.

Ao ouvir isso, a expressão de Zhang Cui se contorceu por um instante. Liu Mufeng tomou algum remédio errado? — pensou. Ele não deveria ter se oferecido para me emprestar as pedras espirituais? Antes, bastava eu dizer que havia um problema em casa e ele me dava na hora. O que está acontecendo agora? Por que está se fazendo de difícil?

Vendo que Liu Mufeng não pretendia tomar a iniciativa de emprestar nada, Zhang Ping suspirou:

— Jiu Shao, meu irmão mais velho está esperando com urgência as pedras espirituais para salvar a própria vida. Você é o gênio dos plantadores espirituais da vila, mostre um pouco de compaixão e nos empreste algumas pedras, por favor!

— Isso mesmo, Irmão Liu! Empreste algumas pedras espirituais para que possamos comprar o remédio do nosso irmão! — implorou Zhang Cui, com um olhar suplicante.

Ao ouvir isso, Liu Mufeng revirou os olhos por dentro. Sabia! Vieram mesmo me atacar com o vento de outono!

— Ah, que coincidência, companheira Daoísta Zhang! Há alguns dias, fui até a cidade vender ervas espirituais e consegui ganhar algumas pedras espirituais. Mas acabei encontrando meu irmão mais velho e meu terceiro primo por lá, e fomos juntos comer em um restaurante. Então... todas as pedras que ganhei já foram gastas — disse Liu Mufeng, fazendo uma expressão de pesar.

— O quê? Gastou tudo? — exclamou Zhang Ping, com o rosto tomado pela frustração.

— Pois é. O restaurante Torre Dengyun, na cidade, é caríssimo. Uma refeição lá custa 150 pedras espirituais! — suspirou Liu Mufeng mais uma vez.

— Irmão Liu, você não tem mesmo nenhuma pedra espiritual sobrando? — perguntou Zhang Cui, ainda com relutância.

— Não sobrou nada. As pedras das ervas do mês passado foram todas gastas nessa refeição. Companheira Daoísta Zhang, vão até a casa do chefe da vila, não deixem que o ferimento do Irmão Zhang piore por minha causa! — disse Liu Mufeng, incentivando com pesar ao ver o rostinho decepcionado de Zhang Cui.

— Então tá… Meu segundo irmão e eu vamos procurar o chefe da vila, ver se conseguimos emprestar as pedras espirituais… — murmurou Zhang Cui, assentindo com relutância. Os dois se afastaram.

Enquanto via os irmãos se afastarem, Liu Mufeng soltou um suspiro de alívio. Eu não sou o antigo dono… Eu sou um cultivador moderno, e não gosto de garotas frágeis como Zhang Cui. Só gosto de caras bonitos. Então, os truques dela não funcionam comigo, nem um pouco!


¹ Gladioli grass: refere-se provavelmente a uma erva espiritual fictícia inspirada no gênero "gladiolus", que no Brasil é conhecido como palma-de-santa-rita ou palma-de-são-jorge, mas aqui mantém-se o termo transliterado para preservar o ambiente de fantasia.

² Atacar com o vento de outono (打秋风): expressão idiomática chinesa que significa se aproveitar dos outros, geralmente fingindo estar em dificuldades para conseguir dinheiro ou recursos.


Capítulo 4 [004] Pronto para entrar na cidade

Fora do campo de visão de Liu Mufeng, os irmãos Zhang estavam com expressões péssimas.

— Você não disse que fingindo ser coitada e enganando aquele idiota daria pra conseguir os Lingshi? Por que ainda não conseguiu nem uma pedrinha? — perguntou Zhang Ping, insatisfeito, olhando para a irmã.

Ao ouvir isso, Zhang Cui também ficou deprimida.

— E dá pra culpar alguém por isso? É puro azar! Esse Liu Mufeng também é um idiota. Sem um tostão, ainda quer bancar o jovem mestre e vai comer num lugar como a Torre Dengyun. Não tem medo de morrer, não? — com expressão ressentida, Zhang Cui parecia uma mulher despeitada.

— Aposto que não é porque ele gastou a pedra espiritual, mas porque não quis emprestar pra você, não é? — disse Zhang Ping com desdém, olhando para a irmã.

— Segundo irmão, que absurdo! Como isso seria possível? Aquele garoto está completamente obcecado por mim. Como é que ele não me emprestaria a pedra espiritual? Eu estava pensando… ele pagou o jantar dos dois primos, deve ser porque quer voltar para a família. Caso contrário, jamais gastaria tantas pedras espirituais para bancar um jantar! — Crianças designadas de grandes famílias geralmente desejavam retornar à família, e Zhang Cui achava que Liu Mufeng não era exceção.

— Pode ser! Mas você tem que ficar de olho nesse Liu Mufeng. Esse garoto vem de uma família grande, deve ter muita gordura pra tirar. Se ele realmente voltar pra família, você tem que dar um jeito de fazê-lo se casar com você. Aí sim você vira a jovem senhora de uma grande família! — disse Zhang Ping com um sorriso bajulador, encarando a irmã.

— Hmph, deixa comigo, segundo irmão. Esse idiota não vai escapar da minha Montanha Wuzhi¹! — ao dizer isso, Zhang Cui apertou os cinco dedos com orgulho e fechou o punho. É só um garotinho bobo. Que dificuldade tem em fazê-lo cair aos meus pés?

— Hehe, a prosperidade da nossa família tá nas suas mãos! — disse Zhang Ping, sorrindo com orgulho enquanto olhava para o rosto bonito da irmã. Com esse rostinho dela, qual homem escaparia?

⋯⋯⋯⋯⋯⋯⋯⋯⋯⋯

Depois de regar o Campo Espiritual, Liu Mufeng voltou para casa, encontrou um saco de arroz e outro de farinha, foi ao açougue da vila comprar cinco quilos de carne e comprou alguns legumes da Senhora Zhang, sua vizinha.

Liu Mufeng planejava transformar toda a farinha em pãezinhos recheados de carne, e todo o arroz em bolinhos de arroz, para guardar em seu anel interespacial. Assim, quando chegasse à cidade, não precisaria gastar com comida. Isso economizaria muito dinheiro.

Durante três dias, Liu Mufeng ficou sozinho em casa, ocupando-se até transformar cem quilos de farinha e arroz em bolinhos e pãezinhos, que então armazenou em seu anel interespacial. Como o anel possuía função de conservação, Liu Mufeng não se preocupava com a comida estragar. Além disso, os alimentos eram colocados ainda quentes e, ao serem retirados para comer, continuavam quentes — nem mesmo a temperatura mudava.

No quarto dia, Liu Mufeng se levantou cedo, trancou a porta de casa e foi até a casa da Tia Zhang, sua vizinha.

— Ei, o Nono Jovem Mestre chegou! — disseram animados o Tio Zhang e a Tia Zhang, recebendo Liu Mufeng com entusiasmo.

— Tio, tia, aconteceu algo com a família do meu primo. Vou até a Cidade do Dragão Negro visitá-los e talvez demore uns três ou quatro meses para voltar. Por isso, gostaria de pedir à tia que cuidasse da minha casa nesse período. Há ervas espirituais plantadas nos campos — explicou Liu Mufeng, olhando respeitosamente para os dois. A Senhora Zhang e o marido eram vizinhos do antigo dono do corpo e sempre o ajudaram muito no dia a dia. Eram pessoas bondosas, por isso Liu Mufeng confiava neles.

— Nono Jovem Mestre, somos vizinhos! Se você vai viajar, esse velho casal aqui cuida do seu quintal, não tem problema. Mas… você sabe, né, essa erva espiritual… O seu Tio Zhang só está no segundo nível do Reino Mortal Espiritual. Já é difícil cuidar do nosso próprio terreno, imagine do seu também! — respondeu a Tia Zhang, um pouco sem graça.

— Não tem problema, não precisa que o Tio Zhang cultive minha terra. Só quero que vocês reguem de vez em quando, pra que as ervas espirituais não morram! — disse Liu Mufeng, colocando uma pedra espiritual sobre a mesa.

— Nono Jovem Mestre, se não for cultivado, o gladíolo espiritual² vai demorar meio ano pra amadurecer! — advertiu o Tio Zhang, preocupado.

— Não tem problema, deixa a erva crescer naturalmente. Eu não vou voltar tão cedo, e se amadurecer, também não haverá quem colha. É só deixar crescer no tempo certo. Aqui, fiquem com isso. Estou contando com vocês, tio e tia — disse Liu Mufeng, entregando a pedra espiritual ao Tio Zhang.

— Ora, somos vizinhos! Como vou aceitar pedra espiritual do Nono Jovem Mestre? — recusou o Tio Zhang, balançando a cabeça.

— Tio Zhang, aceite, por favor. Já está ficando tarde e preciso pegar a carroça de boi na casa do Tio Sexto. Se eu demorar, ele parte para a cidade! — disse Liu Mufeng, apressado, saindo rapidamente da casa da família Zhang.

— Esse garoto… — murmurou o Tio Zhang, balançando a cabeça ao encarar a pedra espiritual em suas mãos.


Notas de rodapé:

[1]: Montanha Wuzhi (五指山) — literalmente “Montanha dos Cinco Dedos”, metáfora usada por Zhang Cui para se referir à sua mão fechando-se como uma armadilha, ou seja, que Liu Mufeng não escaparia do seu controle.

[2]: Gladíolo espiritual (剑兰灵草) — planta espiritual com folhas longas e estreitas, semelhante a uma espada. Erro comum é traduzir como “espada-de-são-jorge”, mas a planta referida é mais próxima do gladíolo, comum em ambientações xianxia.


Capítulo 5 [005] Reencontrando Zhang Cui

Zhangjiacun era uma aldeia pobre, e havia apenas uma carroça de boi no vilarejo. A carroça da família de Zhang Laoliu era o único meio de transporte para ir até a cidade de Shuangyang. Ela saía cedo e voltava tarde, e a viagem de ida e volta custava quatro taéis de prata. Se alguém fosse sozinho, teria que pagar o valor integral. Mas se várias pessoas compartilhassem o trajeto, cada uma pagaria menos. Por isso, na maioria das vezes, todos combinavam de ir juntos até a cidade, para economizar no transporte.

Quando Liu Mufeng chegou à casa de Zhang Laoliu, os outros sete passageiros já estavam na carroça. Com ele, eram oito pessoas ao todo.

— Todos prontos, vamos nessa! — disse Zhang Laoliu, sentado na frente da carroça, conduzindo o boi para fora da aldeia de Zhangjia.

Ao ver Liu Mufeng sentado na carroça, Zhang Cui ficou surpresa.

— Irmão Liu, você também vai até a cidade?

— É, vou dar uma olhada por lá — respondeu Liu Mufeng, lançando um olhar breve para ela antes de virar o rosto, fechar os olhos e começar a descansar. Segundo a memória do antigo dono do corpo, a viagem até a cidade levava cerca de meia hora nessa carroça. Não quero ser incomodado por Zhang Cui o caminho todo.

— Oh! — Zhang Cui franziu a testa ao vê-lo de olhos fechados, claramente sem vontade de conversar, e parou de dar atenção a ele, irritada. Esse jovem mestre agora está com atitude? Não quer mais falar comigo? Será que ele ainda acha que é o jovem mestre da família Liu? É só um lixo com cinco raízes espirituais que foi descartado!

Ao notar o comportamento distante de Liu Mufeng, o pai de Zhang Cui ficou intrigado. Por que Liu Mufeng está tão diferente? Antes, ele mal via minha filha e já estava correndo atrás, fazendo tudo para agradar. Por que agora está tão frio?


Uma hora depois...

A carroça chegou à cidade de Shuangyang. Ao atravessar o portão, Zhang Laoliu parou o boi.

— Chegamos. Podem descer e passear. Como sempre, voltamos para a aldeia às três horas, aqui mesmo no portão da cidade. Não se atrasem! É perigoso andar à noite — alertou ele, olhando para os passageiros.

— Certo, entendi! — responderam os aldeões, descendo da carroça um por um e entregando meio tael de prata a Zhang Laoliu.

Quando Liu Mufeng se aproximou para pagar, Zhang Cui e seu pai o seguiram.

— Irmão Liu, você tem prata trocada? Eu não tenho aqui — disse Zhang Cui.

— Ah, não tenho trocado sobrando. Só tenho exatamente meio tael — respondeu Liu Mufeng com um sorriso resignado. Em seguida, virou-se para Zhang Laoliu. — Tio Seis, aqui está meu pagamento. Eu não vou voltar hoje, então não precisa me esperar.

— Jiu Shao¹, quando você pretende voltar? Eu também estarei na cidade amanhã. Se for voltar então, pode me encontrar aqui no portão da cidade — ofereceu Zhang Laoliu. O combinado era que o valor pago cobria ida e volta, e ele ficou sem graça de aceitar a prata se Liu Mufeng não fosse retornar com eles. Pensou que, se ele voltasse no dia seguinte, poderia levá-lo de volta.

— Tá tudo bem, não precisa se preocupar comigo. Vou fazer uma viagem longa e não sei quando vou voltar à aldeia — disse Liu Mufeng, entregando o dinheiro e se afastando.

Ao vê-lo pagando sozinho, Zhang Cui ficou furiosa. Antes, sempre que íamos juntos à cidade, ele pagava a carroça pra mim também. E agora esse desgraçado não quis pagar? Que nojo!

O pai de Zhang, contrariado, tirou um tael de prata e pagou pelo transporte dele e da filha. Depois, saíram juntos.

— O que aconteceu? Você brigou com o Liu Mufeng? — perguntou o velho Zhang, olhando para a filha.

— Não. Quem sabe o que está acontecendo com ele. Tenho tentado me aproximar, pedi emprestado umas pedras espirituais e ele se recusou a me emprestar! — respondeu Zhang Cui, claramente irritada. Não entendo que vento estranho pegou ele ultimamente. Pedi só umas pedras espirituais e ele disse que já tinha gastado tudo. E agora não quis nem pagar meio tael da carroça? Que miserável!

Ao ver a expressão azeda da filha, o velho Zhang semicerrrou os olhos.

— Filha, será que você não está pressionando ele demais? Deveria jogar um pouco de charme também!

— Pai, o senhor quer mesmo que eu me case com um lixo de cinco raízes espirituais, que ainda foi abandonado pela própria família? — disse Zhang Cui, emburrada. Ela definitivamente não queria se casar com alguém como Liu Mufeng.

— Calma. Você mesma disse que ele estava tentando se reconectar com a família recentemente, não disse? — retrucou o velho. Se Liu Mufeng conseguir voltar para a família Liu e minha filha se casar com ele, nossa família Zhang pode subir na vida. Mas, se ele não conseguir... aí é outra história.

— Entendi... — respondeu Zhang Cui, assentindo.


Notas de rodapé:

[1]: Jiu Shao (九少) – Um título respeitoso que significa algo como “Nono Jovem Mestre”, usado para se referir ao nono filho ou neto de uma família influente.

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