Capítulo 14


 Naquela noite.

Cidade Antiga de Qinglong.

Antes mesmo das lanternas se acenderem, os refletores de tom quente delineavam os muros brancos e telhas cinzentas, enquanto as pontes em arco refletiam na água, compondo um cenário poético junto aos salgueiros balançando ao vento.

Turistas passeavam tranquilamente, divertindo-se entre risadas e o cheiro convidativo de comida.

Um barco de toldo[1] passou sob a ponte, e a barqueira que remava cantava uma melodia desconhecida.

Dentro do barco, no entanto, acontecia uma reunião especial, “fora do tempo”.

— Conseguiu o ingresso?

Su Yue tentava de tudo para ver o rosto da pessoa à sua frente, mas a outra mal podia esperar para se enrolar toda como um zongzi. Olhou para um lado e para o outro — tirando o fato de que era claramente uma garota com a voz meio rouca, não dava pra deduzir mais nada.

— Você é a ‘Fudgezinha do irmão Mu’?

O rosto de Jiang Zheng corou por baixo da máscara. Ela só tinha dezesseis anos quando entrou escondida no grupo de fãs de Ji Muye.

— Você é a ‘Meu Mu Zai’?

As duas trocaram os apelidos usados online e caíram na risada ao mesmo tempo.

Com medo de ser reconhecida, Jiang Zheng pigarreou duas vezes e disse com a voz baixa:

— Peguei um resfriado esses dias, e tenho medo de passar pros outros. Por isso me enrolei toda assim.

Su Yue ficou comovida:

— Você também tá lutando pelo irmão Mu. É isso que importa.

As duas faziam parte do mesmo grupo de fãs de Ji Muye e se conheciam há anos, mas nunca tinham se encontrado. Jiang Zheng era uma fã virtual — nunca participava de encontros presenciais, pois estudava no exterior na época. Mas “Fudgezinha do irmão Mu” era uma lenda entre os fãs antigos. Todos sabiam que essa fã parecia ser uma ricaça generosa. Produtos licenciados do Ji Muye, DVDs de filmes e séries, qualquer coisa relacionada a ele — enquanto os outros fãs compravam um ou outro, ela comprava no atacado.

Su Yue era ótima de conversa, então mesmo sendo a primeira vez que se viam, já estava tagarelando sobre o tamanho do evento de estreia do filme naquela noite, os grandes nomes que estariam presentes, o grupo de apoio de fãs e como tinham escolhido os veteranos mais dedicados.

Jiang Zheng apenas assentia. Era isso mesmo. Ji Muye tinha vencido o prêmio de Melhor Ator pela primeira vez e subido ao topo como superastro do cinema. Até ela se arriscou a vir comemorar — como não seria um evento de peso?

Os ingressos pra estreia estavam disputadíssimos. Jiang Zheng nem ousou pedir pro Han Yi. Dessa vez, só conseguiu por estar na lista da administração do grupo como uma das fãs mais engajadas — o que lhe rendeu a chance de ver a cerimônia ao vivo.

Ela já ia entrar com o ingresso em mãos, mas Su Yue, toda empolgada, empurrou dois bastões de luz azul em suas mãos e a arrastou até a área reservada aos fãs, pra apoiarem o irmão Mu juntas.

Su Yue estava toda orgulhosa, explicando que o dono do grupo tinha reservado aquele lugar para os fãs “excelentes”. Já os fãs casuais que aparecessem de última hora iam ficar do lado de fora — nem veriam o cabelo do irmão Mu.

Jiang Zheng não sabia se ria ou chorava. Ela só queria realizar um desejo silenciosamente — não planejava um reencontro frente a frente com Ji Muye.

Mas Su Yue a tratava como da família, e não largava seu braço por nada. No fim, foi arrastada até a área dos fãs à força.

Segurando o bastão de luz azul, cercada por rostos radiantes e cheios de expectativa, Jiang Zheng sentiu sua solitária e etérea jornada como fã ganhar um calor inesperado — uma alegria genuína.

Aos poucos, levantou o bastão de luz e começou a balançá-lo de um lado para o outro.

Su Yue piscou para ela:

— A gente tá na primeira fila. Depois talvez role até um aperto de mão com o irmão Mu.

— Oh — respondeu Jiang Zheng. Isso realmente… não seria bom.

Ji Muye tinha começado como ator mirim e estava na indústria há quinze anos. Já tinha atuado em incontáveis filmes e séries, e fora indicado ao prêmio de Melhor Ator diversas vezes — mas sempre saía de mãos vazias. Desta vez, ganhou o Prêmio Linghua de Melhor Ator com o filme Wangshan. Um reconhecimento merecido, que lhe rendeu muita popularidade.

Esse filme já havia sido exibido anteriormente em um círculo restrito da indústria, e foi altamente elogiado por críticos profissionais de cinema. Disseram que era uma raridade nos últimos anos: um bom filme que conseguia unir narrativa, estética visual e uma essência espiritual. Uma pena que, por ter um tema muito de nicho, os cinemas nacionais hesitaram em exibi-lo mesmo após o lançamento. Inesperadamente, o longa foi enviado para o exterior e acabou ganhando vários prêmios de uma só vez — o que reacendeu a confiança dos exibidores nacionais, culminando na engenhosa estreia daquela noite.

O produtor escolheu a Cidade Antiga de Qinglong como local, o que combinava com a temática do filme. A exibição foi organizada na praça à beira d’água da cidade antiga, em formato de cinema ao ar livre. A tela gigante pendia entre duas árvores, e o vento da noite soprava suavemente, criando uma atmosfera que parecia transportar as pessoas direto para a entrada de uma vila nos anos 1980.

Conforme o cronograma, o evento começaria com a cerimônia do tapete vermelho, seguida pela entrevista com os atores principais e diretores, e por fim a exibição do filme.

O tímpano de Jiang Zheng quase estourou com os gritos ao seu redor. Ela estava ao mesmo tempo empolgada e ansiosa — aquela cena comovente a deixava completamente paralisada. Sentia uma alegria semelhante à de ter criado um filhote por anos e, enfim, vê-lo brilhar. Faltava só um passo para testemunhar o momento de glória de seu ídolo, e ela realmente não queria ir embora.

As celebridades convidadas foram desfilando uma a uma pelo tapete vermelho, até que finalmente Ji Muye apareceu.

Su Yue ficou tão emocionada que quase chorou, agarrando o braço de Jiang Zheng e pisando no chão sem parar.

— … — Jiang Zheng: Dá pra pisar um pouco mais leve?!

Ji Muye sempre tratou muito bem seus fãs. Sabendo que tinham esperado desde manhã até aquele momento, além de pedir para Jing Meini providenciar lanches e chá com leite, ele mesmo desceu do palco para apertar a mão de todos, um por um.

Normalmente, artistas evitam esse tipo de contato físico com fãs por questões de segurança. Mas os presentes naquele dia eram todos fãs antigos, que o acompanhavam há anos. Cada um valorizava muito essa chance e, naturalmente, ninguém o puxaria ou faria algo que o deixasse desconfortável.

Ji Muye tinha uma memória excelente e reconhecia seus fãs com facilidade. Costumava lembrar detalhes sobre cada um — perguntava se já haviam se formado, se tinham se casado...

Sendo tratados com tanto carinho, não era de se estranhar que esses fãs permanecessem fiéis.

Ji Muye foi se aproximando do lado delas. Su Yue ficou tão nervosa que travou e não conseguia dizer nada. Quando virou a cabeça, viu que Jiang Zheng, bem naquele momento… estava agachada amarrando o cadarço.

Ji Muye parou bem na frente dela e sorriu:

— Você é aquela que faz as montagens de um milhão de dólares, né?

Aaaah, o irmão lembrava dela! Su Yue assentia com os olhos marejados. Passava madrugadas acordada retocando fotos dele, quase ficando careca de tanto estresse.

— Obrigado pelo esforço. Minhas olheiras andam meio pesadas ultimamente — disse Ji Muye com um sorriso tranquilo.

Su Yue engasgou com a emoção.

— Irmão, por favor, descansa um pouco. Eu ainda tenho cabelo, ainda aguento.

Ji Muye então olhou para baixo e viu uma silhueta curvada.

Su Yue bateu nas costas de Jiang Zheng, apressada:

— Irmão, o irmão tá aqui!

Jiang Zheng franziu a testa e resmungou:

— Tô quase terminando.

Se você não aparecer, outra pessoa vai. Após alguns segundos, Jiang Zheng finalmente “terminou” de amarrar os cadarços, mas Ji Muye já havia avançado alguns metros, para o próximo fã.

Ela se levantou devagar, apertou os lábios e o observou por entre os vãos da multidão.

Muito bem. Amado por tantas pessoas.

Su Yue a olhou com pena:

— Você perdeu a chance de tocar na mão macia do nosso irmão. Valeu a pena?

Jiang Zheng respondeu com um murmúrio:

— Perdi.

Ela perdeu a chance de apertar sua mão, mas ainda podia continuar ali, na penumbra, guardando-o em silêncio.

E isso já era o bastante.

Na entrevista, Ji Muye falou sobre os meses que passou nas montanhas do oeste de Hunan, aprendendo com médicos Miao, entendendo os costumes do povo Miao e até mesmo aprendendo o básico da língua Miao. O diretor sorriu e comentou que, para parecer de fato um médico descalço da vila Miao, Ji Muye morou sozinho no topo de uma casa sobre palafitas, parecendo um peixe seco pendurado.

Jiang Zheng sempre soube que ele levava tudo muito a sério. Atuar daquele jeito não era apenas talento — exigia paciência para mergulhar na vivência e nas emoções dos personagens, esquecer de si mesmo, se jogar completamente no universo criado, e depois se despedaçar e se reconstruir com eles.

Enfim, chegou a hora da exibição. Todos se sentaram juntos em bancos de madeira, sob a luz da lua e das estrelas, enquanto os sapos e os insetos cantavam sua sinfonia noturna.

Su Yue ainda achava uma pena Jiang Zheng ter cometido um erro antes, e a arrastou para sentarem na primeira fila.

Ji Muye estava sentado não muito longe, à frente, à esquerda.

Ele usava um terno azul-acinzentado bem discreto naquela noite, e a gravata preta e estreita o deixava com um ar abstêmio e provocante ao mesmo tempo. Seu rosto de frente já era de perder o fôlego, mas o perfil… o perfil era ainda mais sedutor.

Jiang Zheng lançou alguns olhares disfarçados para ele, e então, usando como desculpa uma ida ao banheiro, escapou das “garras” de Su Yue e foi até a última fileira, trocando de lugar com outra pessoa.

Ela havia aceitado a gentileza de Su Yue, mas realmente não tinha coragem de ficar ali tão perto.

No filme Wangshan, Ji Muye interpretava Meng Fan, um médico descalço da vila Miao. Mas o longa não seguia uma narrativa direta para mostrar o espírito altruísta de Meng Fan, que sacrificava a si mesmo para cuidar dos moradores da Montanha Jiuwanda. Em vez disso, o filme usava o recurso de narrativas em mundos paralelos, mostrando o que aconteceria se uma pessoa escolhesse ir para a esquerda ou para a direita — e como o destino de alguém muda de acordo com essas escolhas.

Num dos mundos, ele trabalhava num grande hospital da cidade, sendo o renomado cirurgião Meng Da, difícil de encontrar e admirado por todos. No outro, escolheu uma pequena clínica no meio do mato, e era Meng Yazi, o médico descalço que ajudava até no parto das vacas durante a madrugada.

Na mesma linha do tempo, mas em mundos diferentes, o Doutor Meng Da se exauria numa cirurgia atrás da outra, enquanto Meng Yazi quebrava a perna tentando atravessar montanhas para entregar remédio contra febre a tempo.

A mesma missão. Mas o contraste proposto pelo filme criava um efeito impactante. O trânsito chamativo da cidade era vibrante, mas perdia em beleza para as flores que brotavam nas montanhas. As medalhas e bônus não o faziam tão feliz quanto as espigas de milho que os moradores da vila colocavam em sua mochila. Aos poucos, o Doutor Meng Da, que enfrentava qualquer tempestade, passava a sorrir com menos sinceridade, enquanto Meng Yazi ia aprendendo a rir das dificuldades, mesmo sendo um médico descalço “genérico” que cuidava de humanos e animais. Ainda assim, ele ria com vontade e parecia genuinamente feliz.

A primeira metade do filme era lenta e contemplativa, mas a segunda virava de forma inesperada. Um paciente morria na mesa de cirurgia do Doutor Meng Da, e Meng Yazi caía de um penhasco ao caminhar à noite. Meng Da era suspenso de suas funções, criticado por seus superiores e alvo de deboche dos colegas — e nunca mais se reerguia. Meng Yazi ficou debaixo do penhasco por dois dias, até ser carregado por dezenas de moradores até o hospital do condado. Mesmo sem poder mais subir e descer as montanhas para cuidar dos outros, os moradores não o abandonaram.

Nesse ponto, os espaços paralelos se tocaram por acidente. O Doutor Meng olhava para Meng Yazi, que só conseguia mover a parte superior do corpo, mas tinha os olhos cheios de luz e calor — e ficou sem palavras.

Meng Yazi olhou para o Doutor Meng Da, tão refinado, e disse com um sorriso:

— Você é melhor do que eu.

O Doutor Meng Da se lembrou, então, do que seu avô — médico descalço a vida inteira — lhe disse quando se formou: que onde quer que estivesse, sua vida deveria ser entregue às pessoas. Nos grandes hospitais, não faltavam médicos. Mas lá no interior, ele fazia falta.

No fim, Meng Yazi estendeu a mão e tocou suavemente a ponta dos dedos do Doutor Meng Da, que chorava descontroladamente, através do vazio.

E a música de encerramento começou…

Alguns percorrem caminhos e perdem o coração. Outros caminham e caminham, e passam a habitar o coração dos outros. Por isso, nunca foi uma questão de escolha.

Ji Muye interpretou com perfeição tanto o humor simples de Meng Yazi quanto o vazio por trás da vida impecável de Meng Da. Um papel duplo difícil de alternar. A reação do público foi excelente.

Jiang Zheng estava com os olhos marejados — chorava não só pela história comovente, mas também pelo talento arrebatador do Irmão Mu.

Quando a canção final começou, todos se levantaram e aplaudiram de pé. Ji Muye, os outros atores e o diretor subiram ao palco e fizeram uma reverência.

Os fãs gritavam o nome de Ji Muye com lágrimas nos olhos.

Jiang Zheng soluçou:

— O Irmão Mu atua tão bem! É inacreditável.

De repente, sentiu um olhar vindo do lado.

Virando lentamente o rosto, viu um homem com crachá da imprensa olhando para ela com desconfiança.

Foi então que Jiang Zheng se deu conta de que, empolgada, havia deixado escapar sua voz verdadeira.

Imediatamente, ela começou a tossir de forma exagerada e disse com a voz rouca:

— Tá olhando o quê? Nunca viu uma fã doida, não?

O homem, repreendido, perdeu a suspeita na hora e até deu alguns passos para o lado, mantendo distância daquela "louca fã".

O organizador chamou todo mundo ao palco para tirar uma foto em grupo. Era uma chance rara, e todos correram para participar. Jiang Zheng se escondeu atrás de uma árvore, observando Su Yue e os outros espremidos ao lado de Ji Muye.

Ela apontava o dedo de forma lamentável, querendo ir, querendo muito ir.

Foi então que Jiang Zheng percebeu que o repórter que a encarava antes… estava olhando de novo.

Jiang Zheng tossiu duas vezes, levantou-se imediatamente de trás da árvore, endireitou a postura e caminhou em direção ao palco... Não parecia apressada, mas estava suando por dentro. Por sorte, todos gritavam o nome de Ji Muye e ninguém prestava atenção nas laterais, então ela conseguiu pular discretamente para o canto da última fileira da multidão da foto, bem na hora.

Ao ver essa cena, o repórter provavelmente a classificou como uma fã com problemas mentais — e perdeu o interesse de vez.

O fotógrafo gritou que ia tirar o último clique. Todo mundo se esforçou para posar da forma mais bonita possível, tentando guardar aquele momento perfeito.

Jiang Zheng estava vestida toda de preto — óculos escuros pretos, chapéu preto, máscara preta, roupas pretas — quase se camuflando na escuridão da noite. Quem não olhasse com atenção pensaria que ela fazia parte do fundo.

Depois de pensar um pouco, ela tirou os óculos escuros em silêncio. Pelo menos queria aparecer um pouco. Afinal, só um deus a reconheceria daquele jeito.

Depois que o fotógrafo tirou a foto, Ji Muye pegou o bastão de selfie da mão de Jing Meini e usou o celular para fazer uma selfie em grupo com todos.

Foto em grande angular, capturando a cena inteira.

Quando Ji Muye tentou enquadrar até as pessoas nos cantos, seus olhos de repente encontraram um par de olhos muito familiares, brilhando intensamente no escuro.

Jiang Zheng, alheia ao fato de ter sido descoberta, interagia animadamente com as pessoas ao redor e fazia poses com os dedos, com muito cuidado.

Assim que a selfie acabou, Ji Muye jogou o celular de volta para Jing Meini. Seus olhos não desgrudavam da figura que tentava sair de fininho.

Jing Meini não entendeu nada quando, de repente, Ji Muye deixou os figurões da indústria para trás e correu, apressado e meio desesperado.

Jiang Zheng andava com a cabeça baixa, acelerando o passo em direção ao estacionamento. De repente, ouviu uma comoção atrás de si e, ao olhar por cima do ombro, viu Ji Muye cercado por um grupo de fãs no meio da rua.

Ele era protegido por vários seguranças, e seguia avançando aos poucos, pedindo desculpas aos fãs enquanto tentava se esquivar com educação.

Subitamente, ele levantou os olhos — e encarou diretamente Jiang Zheng…

Ela ficou paralisada por um instante. E correu.

Corria ofegante, quase chorando. Preciso ir embora! Mas que droga é essa!

Chegando ao estacionamento, entrou em pânico e esqueceu onde tinha estacionado o carro.

Depois de dar duas voltas, finalmente encontrou o veículo, mas, no instante em que abriu a porta, alguém segurou seu braço esquerdo.

Jiang Zheng levou um susto tão grande que ficou sem ar. Virou a cabeça devagar — e deu de cara com Ji Muye, que a olhava com um sorriso de canto de boca.

Ele abriu levemente os lábios e disse:

— Srta. Jiang? Tá correndo por quê? Viu fantasma, foi?

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Notas:


[1]: Foto do barco:



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