Algo se aproximava. Sem pensar duas vezes, Xia Ge lançou um olhar rápido para o caminho que as marionetes haviam aberto. Assim que seus dedos estavam prestes a tocar em Guilongyu, ela viu um veado-sika de membros esguios, coberto de discretas flores de ameixeira azuladas, vindo em sua direção num trote lento e gracioso.
— O caminho se perdeu, não sei como voltar.
O veado-sika era belíssimo, belo como um sonho fantástico do qual era impossível acordar.
Enfeitiçada, Xia Ge ficou a contemplá-lo, todo o resto sumindo de sua mente.
— Oo, oo...
O veado soltou um balido suave antes de roçar afetuosamente a bochecha de Xia Ge com o lado de seu rosto peludo. Só então ela notou que os olhos dele também eram de um violeta profundo.
Um violeta lindíssimo.
Vivo, encantador — aqueles orbes violetas pareciam conter todas as estrelas do céu em sua profundeza. Mesmo que o veado-sika não soubesse falar, Xia Ge sentia que o compreendia por completo.
Um qi demoníaco pairava no ar.
O sistema se alarmou:
— [Hospedeira!! Hospedeira, fuja imediatamente!! É um Veado Perdido!! Não olhe nos olhos dele——]
Sem nem compreender direito o alerta do sistema, a mente de Xia Ge estava em branco, todo julgamento desaparecido.
— O veado-sika perdeu seu caminho. Ele não sabe como voltar.
Um veado perdido.
...Então é isso. Não era “um caminho perdido”, e sim... um veado.
— Venha comigo.
— ...jade...
Quanto mais Xia Ge olhava nos olhos do veado, mais o violeta em seus próprios olhos começava a desaparecer lentamente. Levando uma das mãos aos cabelos, ela tentou resistir instintivamente:
— ...Gui...
— Oo, oo...
Uma galáxia brilhava nos olhos violetas do veado-sika.
— Oo, oo...
— Você não precisa mais disso.
— Você vai desistir disso.
— Siga-me e eu levarei você a um lugar especial.
Atônita, Xia Ge se pôs de pé mecanicamente. Jogou a foice nas costas e seguiu o veado perdido, passo a passo, adentrando ainda mais a montanha dos fundos.
Galhos tristes pendendo para baixo roubaram discretamente a fita verde da jovem.
Livre, o cabelo negro como tinta escorreu sobre seus ombros delicados e, sob a fraca luz do luar, conferiu a Xia Ge um traço feminino e melancólico.
— Os ossos dos mortos lamentam, esperando o retorno de seu soberano.
= = =
Algo... ou alguém... a fez despertar novamente.
Mas Gu Peijiu já estava acostumada. Esfregando as têmporas, levantou-se da cama.
Desde que as flores de pessegueiro haviam murchado, agora havia apenas raminhos de capim em seu pequeno vaso de porcelana branca. Ao redor da base, agrupavam-se espinhosos frutos vermelhos de espinheiro, adicionando um ar de delicadeza. E, de forma bastante incomum, havia também uma taça e uma jarra de vinho de flor de pessegueiro sobre a mesa.
Gu Peijiu se aproximou e serviu-se de uma taça.
Sua mão tremeu. O vinho escorreu da jarra, e uma súbita e inexplicável inquietação tomou conta de seu peito.
Ela pousou a taça e afastou a cortina verde. Do lado de fora, soprava a brisa da noite, e o aroma das flores-de-jasmim noturnas vinha misturado a... algo estranho.
Apesar de tênue, Gu Peijiu sentia claramente qi demoníaco no ar.
Vindo daquela direção...
De novo... a montanha dos fundos!
Gu Peijiu vestiu-se, escondeu sua ayara[1] na manga e partiu voando rumo à montanha.
O qi demoníaco se adensava no ar.
Gu Peijiu encontrou os discípulos de Jianfeng — que deveriam estar em turno de vigia — todos dormindo, sem exceção.
Não havia dúvidas. Algo havia mudado!
Com o olhar gélido, ela ignorou os discípulos adormecidos e avançou pelas profundezas da montanha dos fundos.
A montanha dos fundos era o local de descanso dos ancestrais da Seita Lingxi — os mestres da era de ouro da marionetagem.
Mas, atualmente, marionetes demoníacas e Yimei vagavam por lá, espalhando o caos. Por isso, a entrada e a saída eram terminantemente proibidas!
Então quem... havia entrado?
Gu Peijiu se lançou até o ponto com a maior concentração de qi demoníaco!
Havia grandes pinheiros derrubados por toda parte. Um deles, com o tronco cortado exatamente ao meio, fora abatido com uma técnica clara e precisa. O solo em frente da árvore dividida parecia ter sido dilacerado por armas — e ali, entre a grama, jazia uma marionete demoníaca partida em duas. Um cenário lamentável. Os dois pedaços de sua máscara sinistra também estavam no chão, partidos de maneira igualmente limpa.
...Alguém definitivamente esteve aqui.
Quem?
Com o qi demoníaco movendo-se com o vento, Gu Peijiu parou por alguns segundos antes de seguir numa direção específica.
Chegando a uma clareira não muito distante, Gu Peijiu avistou algo pendurado em um galho. Balançava levemente com a brisa, e ela se aproximou alguns passos. Mas se surpreendeu ao pisar em algo duro.
Gu Peijiu recuou um passo e seu olhar varreu o solo sob a fria luz do luar. Ao ver o que havia pisado, suas pupilas se contraíram levemente.
Era um jade em forma de dragão — muito familiar — com o canto direito quebrado, refletindo suavemente o brilho pálido da lua. Sua ayara rolou e envolveu a peça com delicadeza, fazendo o jade saltar direto para a palma de Gu Peijiu.
O jade estava levemente aquecido ao toque. Erguendo a cabeça de modo quase rígido, Gu Peijiu olhou mais uma vez para a fita pendurada no galho próximo — lembrando-se de um jovem de cabelos negros presos com uma fita verde, um jade de dragão quebrado preso à cintura, uma taça de vinho na mão, e um sorriso iluminando suas feições finas e delicadas.
Gu Peijiu fechou a mão em torno do pingente, o coração repentinamente apertado.
Quem esteve aqui?
Sim... só podia ser...
Xia Wuyin!?
Notas Explicativas:
[1] Ayara – Um item espiritual ou instrumento mágico presente no universo da novel. Pode funcionar como uma ferramenta multifuncional (como mover objetos à distância ou proteger o portador), frequentemente guardado em mangas ou oculto entre as roupas.
[2] Guilongyu – Um importante jade em forma de dragão pertencente a Xia Ge, ligado à identidade ou poder espiritual do personagem. É possivelmente uma âncora entre Xia Ge e seu sistema.
[3] Veado-sika – Também conhecido como cervo-do-japão, é uma espécie real (Cervus nippon), chamada em chinês de “veado flor de ameixeira” (梅花鹿, méihuālù) devido às manchas que lembram pétalas. No contexto do capítulo, a figura do veado perdido é simbólica, mágica e hipnótica, carregando forte conotação sobrenatural e possivelmente metafórica.
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