Capítulo 43 Parte 2 – Desculpa, Perdi a Compostura (II)
Depois de meia hora de compras, Fuyi se jogou numa cadeira de madeira dentro de uma loja de joias, completamente esgotada. Num dia tão quente, como Lin Xiaowu ainda conseguia ter energia para fazer compras sem suar uma gota?
— Eu não aguento mais! — gemeu, levantando-se depois de Lin Xiaowu ter lhe perguntado pela centésima vez qual presilha de cabelo era mais bonita. — Querida, escolha com calma — vou ali ao lado tomar um frozen cream.
— Em poucos dias partiremos para o Palácio de Verão. Todas nós, garotas solteiras, ficaremos em pátios adjacentes, então é claro que precisamos reforçar os acessórios! — Lin Xiaowu girava um ornamento de cabelo ornamentado entre os dedos. — Não me lembro de você ser tão desligada assim antes.
— Aquilo era antes. Agora é agora — disse Fuyi, abanando-se com o leque. — Encontrei um propósito mais elevado.
— Que propósito elevado? — perguntou Lin Xiaowu, desconfiada.
— A paz e a prosperidade do país e de seu povo — respondeu Fuyi com um sorriso, beliscando a bochecha macia da amiga. — Divirta-se escolhendo seus enfeites. Eu volto já.
— Você só quer uma desculpa pra fugir — resmungou Lin Xiaowu, esfregando a bochecha. — Vá, mas não esqueça de me buscar depois.
Fuyi puxou um lenço e ajudou Lin Xiaowu a enxugar o suor da testa.
— Espere aqui — vou trazer algo docinho pra você.
Ao sair da loja de joias, as ruas já estavam visivelmente menos movimentadas, com as pessoas fugindo do calor. Ao chegar em sua barraca habitual de sobremesas geladas, Fuyi notou um novo ajudante atrás do balcão.
— Chefe, contratou mais gente?
— Ah, senhorita Yun! O de sempre? — O dono sorriu de orelha a orelha e empurrou o assistente para o lado, preparando pessoalmente o frozen cream.
— O de sempre — respondeu Fuyi, se abanando. — Com mais gelo e menos calda.
— Pode deixar. — O dono apertou bem o gelo picado num copo de bambu e então despejou calda doce e frutas por cima. Com receio de ter colocado frutas demais, ainda prensou tudo com firmeza.
O novo assistente observava com atenção e encaixou um canudo de bambu no copo.
— Senhorita Yun, estaremos esperando sua próxima visita — disse o dono, entregando-lhe o copo.
— Vai demorar dois meses até eu voltar — Fuyi entregou o pagamento. — Estou deixando a capital por um tempo.
— Então vou guardar um pouco de gelo pra você. Quando voltar, terei um pronto te esperando. — O chefe fez uma pausa e sorriu. — Nessa época, os frutos de espinheiro já estarão maduros — sabor azedinho, perfeito para refrescar.
— Obrigada, Chefe — disse Fuyi com um sorriso nos olhos. — Vou te visitar assim que voltar.
Ela notou que o novo ajudante a observava curioso, lançando olhares repetidos e disfarçados.
— Claro, claro — o dono assentia sem parar.
O assistente também sorriu, aparentemente de bom humor.
Fuyi cutucou o gelo picado com o canudo, mas não chegou a tomar um gole. O olhar do assistente acompanhava cada movimento de sua mão.
— Chefe, quando esse novo ajudante começou a trabalhar aqui?
— O movimento aumentou muito com o calor e eu não estava dando conta sozinho. Ele começou há três ou quatro dias — respondeu o dono, achando que ela só estava curiosa. — É rápido, bom com números também.
Fuyi sorriu e se virou para sair, quando de repente uma criança surgiu correndo e esbarrou nela, derrubando o copo no chão.
Ao ver que tinha derrubado a guloseima gelada de uma moça rica, o menino ficou tão assustado que congelou no lugar, sem conseguir dizer uma palavra.
Estocar gelo não era tarefa fácil, e frozen cream era um luxo para os plebeus — poucas famílias estavam dispostas a gastar com algo assim.
— Ficou assustado, foi? O chão está quente — levante-se — disse Fuyi, ajudando o garoto a se pôr de pé. — Vá pra casa. Tome mais cuidado ao andar.
— Obrigado, irmã bonita! — Ao perceber que Fuyi não estava brava, o garoto sorriu aliviado e saiu pulando. Desastrado como era, parecia uma criaturinha educada.
Ela se virou para o novo assistente, que agora limpava as mesas com afinco, esfregando até os cantinhos mais difíceis. De fato, parecia um rapaz trabalhador.
Fuyi já se preparava para comprar outro frozen cream quando ouviu alguém chamar seu nome.
— Fuyi.
Ela se virou e viu o Príncipe Herdeiro, montado a cavalo. Naquele instante, Fuyi teve a sensação de estar diante de uma brisa fresca de montanha — sua presença varreu até o calor do verão. Sob o sol forte, sua pele brilhava como jade luminosa.
— Está tão quente hoje. Por que não está em casa? — Sui Tingheng notou o suor em sua testa, os fios de cabelo grudados à têmpora, as bochechas pálidas levemente coradas. Ela parecia bem abatida.
Ele desmontou, pegou um guarda-chuva de papel de óleo com um atendente e o abriu acima da cabeça dela.
— Por que ninguém está te acompanhando?
— Xiayu e Qiushuang foram fazer compras pra mim. Eu não estava me sentindo bem na loja de joias, então vim comprar frozen cream — Fuyi olhou para a guloseima meio derretida no chão e se inclinou para observar o rosto de Sui Tingheng.
A mão que segurava o guarda-chuva enrijeceu levemente, mas ele se esforçou para manter a compostura, permitindo que ela o examinasse à vontade.
— Um dia tão abafado e, mesmo assim, Vossa Alteza Imperial nem parece suar — comentou Fuyi, admirada. Seu príncipe herdeiro parecia uma divindade entre mortais — intocado pelas trivialidades da vida.
— Eu não suo com facilidade — explicou ele, vendo sua curiosidade. — Mesmo no verão, minhas mãos costumam permanecer frias.
Fuyi fixou o olhar na mão que segurava o guarda-chuva — a meio braço de distância. Era branca e lisa como jade, com dedos longos e finos e unhas bem aparadas.
— Vossa Alteza Imperial, esta filha súdita tem um pequeno pedido indecoroso — disse ela, erguendo o dedo indicador. — Posso tocar o dorso da sua mão?
Sui Tingheng ficou em silêncio por um instante.
— Pode.
As cigarras de verão zumbiam nas árvores, fazendo seu coração vibrar com inquietação.
A ponta do dedo dela roçou suavemente o dorso da mão dele, tão leve quanto uma nuvem — e logo se foi, como uma brisa. Ele nem chegou a sentir o calor de seu toque.
— É realmente fria — murmurou Fuyi, estendendo a mão mais uma vez. — Se alguém não soubesse, poderia achá-lo uma entidade celestial.
Que mãos lindas… e tão frescas nesse calor — devem ser maravilhosas de segurar, pensou Fuyi. A futura Princesa Herdeira é mesmo uma mulher de sorte.
O guarda-chuva acima dela vacilou. Sui Tingheng virou o rosto e respirou fundo. As cigarras zumbiam ainda mais alto — tão alto que ele sentia a mente turvar.
Baixou os olhos, sem querer que Fuyi visse a agitação em seu olhar. Fixou-os na poça de gelo derretido no chão, como se isso bastasse para recuperar o controle.
As formigas, atraídas pelo aroma doce, já haviam se agrupado ao redor do frozen cream derramado. Algumas subiam pelo canudo de bambu. Sui Tingheng se pegou pensando em quantas delas alcançariam o topo.
— Aliás, Vossa Alteza Imperial, gostaria de sentar-se para um chá—?
— Fuyi! — Sui Tingheng agarrou seu braço com força, tanta que doeu.
Assustada, ela o encarou. Aquele rosto sempre sereno e etéreo agora estava tomado pelo pânico e pela impotência.
— Chamem o médico imperial! — Ele largou o guarda-chuva no desespero, os dedos tocando sem querer a mão dela. A temperatura era gélida — tão fria que Fuyi sentiu como se tivesse encostado num bloco de gelo.
— Chamem o médico! — repetiu, a voz trêmula, gritando para os guardas atrás dele.
— Imediatamente!
Percebendo o perigo, os guardas cercaram rapidamente a área, e um deles saltou sobre o cavalo, galopando para buscar ajuda.
— Vossa Alteza Imperial? — Vendo as mãos dele tremerem violentamente, Fuyi achou que tivesse adoecido de repente. Sem se importar com convenções, segurou seu braço para ampará-lo. — O que houve?
Para seu espanto, foi puxada para um abraço apertado. O príncipe parecia temer assustá-la e tentou falar com doçura, mas sua voz tremia sem controle:
— O frozen cream… estava envenenado. Quanto você comeu?
— Não tenha medo, não tenha medo — ele repetia. Não dava pra saber se tentava acalmá-la ou a si mesmo. — O médico está a caminho. Você vai ficar bem. Vai ficar bem.
Fuyi o encarou, atônita. Jamais imaginara que aquele homem de outro mundo a olharia com uma expressão daquelas.
Lembrou-se de quando havia caído de um penhasco anos atrás — seus pais a olharam do mesmo jeito, com dor e terror infinitos nos olhos.
— Vossa Alteza Imperial. — Fuyi recuou um passo e disse rapidamente: — Não precisa se preocupar — eu nem cheguei a tomar. Derramou antes disso.
No chão, as formigas ainda se banqueteavam com o doce derretido. As que estavam no canudo já haviam caído na água e morrido.
Ela se virou para a barraca de bebidas. O novo assistente, ao notar seu olhar, virou-se e saiu correndo.
Ao ver a fuga, Sui Tingheng imediatamente montou o cavalo e sacou o arco. Com um único disparo, a flecha atravessou as costas do homem.
Ele largou o arco. As pontas dos dedos ainda tremiam.
— Desculpe… perdi a compostura. — Sob o sol escaldante, voltou o rosto pálido para Fuyi e sorriu — gentil e gracioso, como sempre. — Estou apenas feliz que você esteja bem.
Capítulo 44 Parte 1 – Um Peão em Suas Mãos (I)
Seu olhar pousou nela por apenas um breve momento antes de desviar rapidamente, como se nada tivesse acontecido.
Fuyi olhou para a poça pegajosa de gelo derretido no chão e se abaixou para pegar o guarda-chuva caído, mas Sui Tingheng foi mais rápido.
Ele voltou a segurá-lo sobre ela, com toda sua atenção focada no assassino que havia sido atingido pela flecha, sem mais olhar para Fuyi.
A força da flecha tinha sido tremenda, atravessando o assassino num único golpe limpo. Quando os Guardas Jinwu o arrastaram, ele se contorcia de dor. O dono da barraca de sobremesas ficou tão apavorado que desabou no chão, tremendo descontroladamente, incapaz de dizer uma palavra.
— Quem mandou você assassinar a Junzhu Yun? — Sui Tingheng perguntou friamente ao homem, que mal se mantinha vivo. — Você conhece bem os hábitos dela — tanto que sabia até onde ela poderia aparecer. Com certeza há mais como você nesta rua.
Ele levantou a mão que não segurava o guarda-chuva e balançou levemente o dedo indicador.
— Investiguem. Todas as lojas que a Junzhu Yun frequenta — investiguem cada uma delas a fundo.
— Conforme ordenado! — Os Guardas Jinwu se dispersaram rapidamente, e vários guardas ocultos também desapareceram. Em poucos instantes, a rua mergulhou num silêncio total. Ninguém ousava se mover.
— Chefe, volte para dentro da sua loja e aguarde — disse Fuyi, vendo que o dono estava em estado de choque. — Não tenha medo. Desde que fique claro que você não está envolvido, nada acontecerá.
— Obrigado, Senhorita Yun. — O comerciante assentia freneticamente. Com medo demais para se levantar, rastejou de volta para sua loja, cambaleando.
— Vossa Alteza Imperial. — Fuyi olhou para a sombra a seus pés e chamou de novo: — Vossa Alteza Imperial?
A mão que segurava o guarda-chuva apertou levemente. Quando Sui Tingheng finalmente se virou para ela, sua expressão era normal.
— O que foi?
Fuyi pegou o guarda-chuva de sua mão e o ergueu mais alto.
— O sol está forte. Você não está se protegendo.
Sui Tingheng desviou o olhar.
— Está tudo bem. Não estou com calor.
Fuyi o fitou em silêncio, mas não abaixou o guarda-chuva.
— Fuyi! Fuyi! — Uma voz desesperada rompeu o silêncio da rua. Lin Xiaowu saiu correndo de uma loja próxima, erguendo a saia enquanto corria, com dois Guardas Jinwu atrás dela. Sua criada lutava para acompanhá-la.
— Você está bem? Se machucou?! — Ela agarrou a mão de Fuyi, o rosto coberto de suor. — Ouvi dizer que houve um atentado contra você?!
— Estou bem. — Ao ver o medo no rosto da amiga, Fuyi desviou levemente o olhar. — Com Sua Alteza Imperial aqui, nada de ruim vai acontecer.
Seguindo a dica de Fuyi, Lin Xiaowu finalmente notou a figura ao lado delas e fez uma reverência.
— Saudações, Vossa Alteza Imperial.
— Sem formalidades, prima — respondeu Sui Tingheng com um leve aceno de cabeça.
Lin Xiaowu ficou atônita. Sua avó materna era meia-irmã do falecido imperador, o que fazia de sua mãe prima do atual imperador. Por parentesco, de fato, ela era uma prima distante do príncipe herdeiro — mas essa era a primeira vez que ele a chamava assim. Para ser sincera, aquilo parecia estranhamente desconcertante.
E enquanto ainda digeria a “promoção” a prima real, Lin Xiaowu notou, a poucos passos de distância, um Guarda Jinwu segurando um homem com uma flecha cravada no peito. O sangue escorria lentamente para o chão, e ela sentiu o couro cabeludo formigar de pavor.
— Não tenha medo — ele ainda está vivo — disse Fuyi, cobrindo os olhos da garota e se voltando para Sui Tingheng: — Vossa Alteza Imperial, poderia mandar alguém escoltar a Xianzhu Lin de volta ao seu solar?
— Não, eu vou ficar com você…
— Seja boazinha. Você nunca suportou ver essas coisas. — Fuyi manteve a mão sobre os olhos da amiga. — Em poucos dias teremos bastante tempo para nos divertir no Palácio de Verão. Por enquanto, seja obediente e fique em casa.
— Mas—
— Nada de “mas”. Sua Alteza Imperial ainda está aqui. Com ele por perto, não há por que se preocupar. — Fuyi olhou para o lado e viu que suas duas criadas também tinham chegado. Chamou Qiushuang e pediu que acompanhasse Lin Xiaowu para casa com os guardas.
— Não se preocupe, prima — disse Sui Tingheng. — Este príncipe garantirá que a Junzhu Yun volte em segurança. Vá na frente, para que ela não fique aflita.
Já que até o príncipe herdeiro havia falado, Lin Xiaowu não insistiu mais e partiu obedientemente sob escolta.
— Xiayu, corra para casa e avise o pai e a mãe para não se preocuparem — disse Fuyi com um sorriso. — Com Sua Alteza Imperial aqui, não há nada com que se preocupar.
— Sim, senhorita. — Xiayu se curvou respeitosamente ao Príncipe Herdeiro e se retirou.
Talvez fosse o calor — as orelhas de Sui Tingheng estavam visivelmente vermelhas, e ele nem percebera. Vendo que Fuyi ainda segurava o guarda-chuva erguido, disse:
— Deixe-me segurá-lo.
Ele era meia cabeça mais alto que Fuyi, então, para mantê-lo na sombra, ela precisava manter o braço constantemente levantado. Devia estar cansativo.
Mo Wen, que estava prestes a avançar para segurar o guarda-chuva pela Junzhu, recuou três passos em silêncio quando seu senhor falou, abaixando a cabeça.
Sem ter para onde olhar, fixou os olhos em sua própria sombra, começando a se perguntar se o sol tinha fervido seu cérebro. O que mais explicaria aquela suspeita inexplicável de que o Príncipe Herdeiro nutria sentimentos secretos por Yun Junzhu?
Afinal, era só que Sua Alteza Imperial frequentemente enviava presentes à família Yun, só que vivia convocando a Junzhu ao Palácio Chengxi, só que tinha lhe dado aqueles livros de histórias que nunca deixava ninguém tocar…
Mo Wen hesitou. O calor era sufocante, as cigarras cantavam alto demais, e seus pensamentos estavam todos embaralhados.
Como foi que chegamos a isso?
O Príncipe Herdeiro e a Junzhu Yun nunca tinham sequer conversado antes. Ele realmente não conseguia entender quando Sua Alteza começou a sentir algo por ela.
Quando os Guardas Jinwu ajudaram vários médicos imperiais a descer dos cavalos, seus braços e pernas tremiam da viagem agitada. Ao verem que o Príncipe Herdeiro estava ileso, todos suspiraram aliviados antes de fazerem uma reverência apressada.
— Estes humildes súditos saúdam Sua Alteza Imperial, o Príncipe Herdeiro. Podemos saber quem adoeceu?
— Chegaram em boa hora, senhores. Peço que analisem esta substância e nos digam que tipo de veneno foi usado — disse Fuyi, apontando para a poça de água com gelo a seus pés, que já tinha secado quase por completo. Restava apenas uma camada pegajosa de açúcar cristalizado misturado à sujeira, de aparência bem desagradável.
Os médicos lançaram um breve olhar ao assassino ensanguentado, mas sabiamente se calaram, voltando toda sua atenção para a poça secando. Como médicos imperiais, sua perícia não se limitava à medicina — saber quando ficar em silêncio também era uma habilidade essencial para sobreviver.
— Vossa Alteza Imperial, o calor está sufocante. Vamos esperar no salão de chá — sugeriu Fuyi, lançando um olhar para as orelhas de Sui Tingheng, agora intensamente rubras. — Está começando a esquentar demais.
— Está bem. — Sui Tingheng fechou o guarda-chuva e virou-se para entrar na casa de chá. Ao cruzar o batente, sua mão roçou de leve o pulso de Fuyi — mas ele rapidamente recuou.
Como príncipe herdeiro, Sui Tingheng não tinha falta de auxiliares competentes. Não demorou para que alguém trouxesse uma bacia com gelo e chá fresco. O assassino alvejado pela flecha foi detido do lado de fora pelos Guardas Jinwu, esforçando-se para erguer a cabeça e lançar um olhar de ódio para Fuyi, os olhos transbordando rancor.
Fuyi pensou, intrigada:
Por que esse homem me odeia mais do que ao príncipe herdeiro, que foi quem atirou nele?
Lá fora, ouvia-se de tempos em tempos o som de gotas — o som perturbador de sangue pingando no chão.
Sui Tingheng não deu ordem para estancar o sangramento, e Fuyi também não se mexeu. Chegou até a erguer uma xícara e tomar um gole de chá com tranquilidade.
Meia hora depois, mais três pessoas — dois homens e uma mulher vestidos como plebeus — foram trazidas pelos Guardas Jinwu. Protestavam sua inocência aos berros, mas ao verem o assassino ensanguentado, silenciaram na hora.
— Parece que sua informação estava certa — realmente há mais assassinos — disse Fuyi, pousando a xícara com expressão satisfeita. — Vossa Alteza Imperial, em consideração ao seu relatório útil, devemos tratar os ferimentos dele primeiro?
O primeiro assassino, já por um fio, arregalou os olhos em incredulidade ao ouvir aquilo. Eu não disse nada! Por que está me acusando falsamente?!
Tentou se explicar aos companheiros, mas um guarda segurou a flecha cravada em seu corpo, e a dor foi tanta que ele perdeu os sentidos na hora.
— Ele pode ter ganhado um pouco de tempo, mas vocês três não — disse Fuyi, passando os dedos pelo entalhe decorativo da xícara enquanto lançava um olhar ao primeiro assassino sendo arrastado dali.
Capítulo 44 Parte 2 – Um Peão em Suas Mãos (II)
— Ele pode ter ganhado algum tempo, mas vocês três não — disse Fuyi, passando os dedos pelo entalhe da xícara enquanto olhava para o primeiro assassino sendo arrastado. Em seguida, encarou os outros três. — Se me derem alguma informação útil, eu posso interceder por suas vidas.
— Poupe sua falsa bondade. Se quer nos matar, que mate logo. Não vamos engolir esse seu teatrinho — retrucou friamente o assassino líder, inexpressivo. — Mais cedo ou mais tarde, alguém virá arrancar sua cabeça…
Clang!
Uma xícara de chá voou e se espatifou contra a cabeça do homem, abrindo-lhe o couro cabeludo e cobrindo-o de sangue.
— Como ousa falar com tamanha insolência com uma Junzhu. — Sui Tingheng limpou os dedos com um lenço e disse com calma: — Arrastem-no e executem-no por lingchi¹.
Os outros dois assassinos recuaram, apavorados. Jamais imaginaram que o suposto príncipe gentil ordenaria um castigo tão cruel sem pestanejar!
Que nada daquele "príncipe virtuoso"! Tudo mentira! Mentira!
— Este príncipe sabe que vocês são juramentados. Mesmo sob tortura, não revelarão o nome do mandante — Sui Tingheng falou sem demonstrar emoção. — Têm uma hora. Se não falarem até lá, terão o mesmo destino.
— Não precisa esperar uma hora. Pode nos executar agora. — A assassina, com o rosto pálido, riu com escárnio. — Só me pergunto: se nos fizerem em pedaços hoje, quem ainda vai elogiá-lo como um príncipe virtuoso amanhã?
— Este príncipe mostra benevolência apenas ao povo de Grande Long. Assassinos de origem duvidosa como vocês não merecem misericórdia nem compaixão — respondeu Sui Tingheng sem olhar na direção de Fuyi, a voz gélida como gelo. — Que pensem o que quiserem — este príncipe não se importa.
— Ratos de esgoto que rastejam nas sombras não têm direito algum de falar do nosso Príncipe Herdeiro — disse Fuyi, firme, levantando-se e parando diante dos dois assassinos restantes. — Como diz o ditado: canalhas temem o poder, não a virtude. Gente como vocês, que só sabe conspirar e enganar, não é digna da misericórdia de Sua Alteza Imperial.
Ela se inclinou e sussurrou ao ouvido da assassina:
— E além do mais… quem disse que foi o Príncipe Herdeiro quem ordenou o lingchi? Todos na capital sabem que eu, Yun Fuyi, sou mesquinha e vingativa. Se acham que podem jogar isso nas costas do Príncipe, estão redondamente enganados.
— Você… — A assassina a olhou com ódio, depois abriu a boca para mordê-la — mas Fuyi agarrou seu maxilar com firmeza.
— Seja lá quem for o mandante, o ódio com que tentam me matar — essa obsessão em me eliminar — me lembra alguém do passado.
As pálpebras da assassina tremularam.
Fuyi riu suavemente.
— Naquela época, a Nobre Consorte Zeng também mandou gente para me matar várias vezes. Que pena — por mais poderosa que fosse, fracassou miseravelmente. O que faz vocês, um bando de fracassados patéticos, acharem que podem tirar minha vida? — Ela empurrou a assassina para o lado e limpou as mãos com um lenço. — Vossa Alteza Imperial, por favor, execute-os imediatamente.
— Muito bem.
Após dar a ordem, Sui Tingheng pediu que trouxessem água para Fuyi lavar as mãos.
Quando a água escorreu, ele notou os dedos de Fuyi mexendo levemente na bacia, mas desviou o olhar rapidamente.
— Dos assassinos que atacaram a família Yun naquela época, dois grupos foram enviados por um dos príncipes rebeldes.
O som da água cessou na hora. Fuyi pegou o pano que Mo Wen lhe estendeu, secou as mãos e virou-se para olhar Sui Tingheng, sentado à mesa. Após um momento de silêncio, finalmente disse:
— Agradeço, Vossa Alteza, por me contar.
Ela voltou ao seu assento.
— Na época, o Segundo Wangye tentou conquistar meu pai. Mas ele percebeu a crueldade e o desprezo daquele homem pelo povo, e recusou-se a se associar com ele. Foi então que começou o ressentimento contra nossa família Yun.
— E o filho dele… também mandou assassinos.
— Está falando do herdeiro? Ah, esse era um devasso. Uma vez, embriagado no palácio, tentou agredir uma criada. Esta filha-súdita o impediu. Depois disso, ele tentou intimidar outras pessoas diversas vezes, e todas as vezes foi impedido por mim. Não me surpreende que tenha guardado rancor.
Gente de caráter tão vil certamente não teria nenhum pingo de magnanimidade. Não era de se admirar que pai e filho tenham mandado assassinos contra a família Yun, mesmo após o exílio.
— Podem até estar mortos agora, mas ao menos Vossa Alteza me confirmou que de fato quiseram prejudicar minha família — disse Fuyi, tamborilando os dedos sobre a mesa. Amanhã, farei uma visita adequada aos túmulos deles — dar-lhes o “respeito” que merecem.
— Mas… de onde veio essa informação? — perguntou Fuyi, com curiosidade. Nos seis meses desde que retornaram à capital, sua família investigou a origem das dezessete ondas de assassinos, mas tudo que descobriram foi que alguns tinham vínculos com o clã do Segundo Wangye — quantos, exatamente, não sabiam.
— Após a rebelião dos dois príncipes, o Pai-Imperador me incumbiu de investigar o caso quando assumiu o trono — Sui Tingheng abaixou a cabeça, olhando os desenhos da xícara de chá. — Encontrei isso durante a investigação.
— Entendo. — Fuyi sorriu. — Obrigada, Vossa Alteza.
— Se ainda deseja buscar a verdade por trás daqueles assassinos, posso ajudá-la — disse Sui Tingheng. — A família Yun tem sido leal por gerações. Jamais deveria ter sofrido tamanha desgraça.
E você também não deveria ter suportado tanta dor e tormento.
A sala mergulhou no silêncio. Após um longo tempo, Fuyi soltou uma risada suave.
— Obrigada, Vossa Alteza, por tamanha bondade.
Ela se levantou e fez uma reverência profunda.
O sol poente atravessava o trançado da janela, tingindo suas vestes de laranja quente. Sui Tingheng fitou sua silhueta envolta naquela luz, a cabeça curvada em um arco gracioso. Ele queria muito saber se, naquele momento, ela realmente acreditava nele.
— Permita-me acompanhá-la até em casa. — No fim, ele nada perguntou. Levantou-se e ofereceu-lhe a mão para ajudá-la a se erguer, mudando de assunto: — O Palácio Changyang tem uma paisagem belíssima — é perfeito para ler e pintar. Se seu irmão não se incomodar, será bem-vindo para ficar lá por um tempo também.
— Agradeço imensamente pela generosa oferta, Vossa Alteza. Se meu Irmão mais velho souber que poderá acompanhá-lo ao palácio, ficará encantado — Fuyi se ergueu com ele. — Esta filha-súdita irá contar a ele essa boa notícia o quanto antes.
Ao ver o sorriso em seus lábios, a expressão de Sui Tingheng suavizou com ternura.
…
A notícia da tentativa de assassinato contra Fuyi se espalhou pela capital em um instante, chegando até o Solar de Ning Wang. Ning Wang ficou paralisado diante de sua pintura inacabada, agora manchada por uma enorme mancha de tinta. Por muito tempo, não disse uma palavra, mergulhado em um torpor, sem conseguir entender o turbilhão de pensamentos que o invadia.
Então, sem aviso, saiu disparado de seu estúdio e, quando voltou a si, já avistava os portões da família Yun.
Quando a carruagem suntuosa adornada com o inconfundível emblema do dragão dourado parou diante da mansão Yun, Ning Wang enfim saiu de seu transe. Ficou ali, em silêncio, observando Sui Tingheng ajudar Yun Fuyi a descer da carruagem, suas figuras banhadas pelo brilho dourado do pôr do sol.
Toda a cena se desenrolava como uma peça ridícula; seu rosto permaneceu impassível mesmo ao ver Sui Tingheng, sorrindo gentilmente, conduzir Fuyi até dentro de sua casa.
— Vossa Alteza Imperial. — Fuyi parou no limiar e se virou. — Esta filha-súdita está bem agora. Por favor, não se preocupe; um susto desses não é nada.
Sui Tingheng sorriu de leve.
— Não é “nada”, mas entendo sua intenção. Vá descansar — já mandei Mo Wen avisar. O que aconteceu hoje não foi sua culpa; seus pais não irão culpá-la.
Fuyi encarou Sui Tingheng por um momento, depois abaixou a cabeça e retirou o pingente de jade da cintura, colocando-o na palma da mão dele.
— Por favor, fique com isto. Pode ajudá-lo a afastar o choque.
O pingente frio rolou levemente na palma de Sui Tingheng. Ele observou a figura de Fuyi se afastar, depois fechou lentamente os dedos em torno do jade, apertando-o com força.
Era a primeira vez que Fuyi não permanecia parada à porta, despedindo-se com reverência formal.
Com cuidado, ele embrulhou o pingente em um saquinho de seda e o guardou em seu robe interno. Virando-se para o horizonte distante, um leve sorriso surgiu em seus lábios.
— Tio Imperial — Sui Tingheng deu alguns passos em direção a Sui Ruijing. — O que o traz aqui?
Sui Ruijing o encarou. Após um longo silêncio, esboçou um sorriso frio.
— Este Wang soube que a Junzhu Yun anda procurando quem está por trás do massacre de sua família. Parece que o Príncipe Herdeiro é exatamente o ajudante de que ela precisava.
Sui Tingheng nada respondeu.
— Você é o exaltado Príncipe Herdeiro — o futuro imperador de Grande Long. Naturalmente, aos olhos dela, é a escolha mais adequada, mais útil — Sui Ruijing zombou. — Meu caro sobrinho, não se deixe tornar tão facilmente um peão nas mãos de uma mulher.
— Tio Imperial. — Quando ele terminou, Sui Tingheng finalmente falou, com calma e firmeza. — O senhor é apenas um Junwang, e eu sou o Príncipe Herdeiro. Por que não se curva diante de mim?
¹ Lingchi (凌迟), ou “morte por mil cortes”, foi um método de execução utilizado na China imperial e regiões vizinhas até sua abolição em 1905, envolvendo a remoção gradual da carne como punição para crimes graves como traição.
Capítulo 45 Parte 1 – Pêssegos Secos (I)
— Saudações... — Sui Ruijing juntou as mãos e fez uma reverência rígida. — Saudações, Sua Alteza Imperial, o Príncipe Herdeiro.
Era a primeira vez que ele era forçado a se curvar diante de Sui Tingheng fora de uma ocasião formal. A humilhação e a vergonha, a fúria e a insatisfação indescritíveis — tudo silenciou no instante em que curvou o corpo.
Em sua memória, a imagem de Sui Tingheng sempre fora vaga. Um garoto calado, intimidado, ignorado, sentado sozinho num canto...
Jamais parecera alguém elevado ou acima dos outros.
Sui Tingheng não lhe deu atenção. Virou-se e entrou na carruagem, com os últimos raios do sol poente alongando sua sombra — longa, muito longa.
Depois de um bom tempo, Sui Ruijing endireitou o corpo, o olhar perdido fixo nos portões da Mansão Yun, absorto em pensamentos.
Por fim, após um longo silêncio, virou-se e partiu.
O pôr do sol estava magnífico. As pessoas, que haviam sofrido com o calor durante todo o dia, saíam de casa para aproveitar o frescor da tarde. As ruas estavam cheias de movimento. Sui Ruijing dispensou o atendente que o acompanhava e caminhou sem rumo entre a multidão.
— Vossa Alteza, Príncipe Ning. — Uma carruagem parou ao seu lado, e Nan Huai desceu, cumprimentando-o com um ar amistoso.
— Neto real do Reino Nanxu? — Sui Ruijing lançou-lhe um olhar e se afastou, retomando o passo.
— O Wangye parece perturbado. Que tal participar de uma pequena reunião para distrair a mente...?
— E que qualificações tem um mero neto real de um reino insignificante para convidar este Wang? — Sui Ruijing retrucou com frieza e desprezo. De fato, estava em má fase, mas não a ponto de se rebaixar ao ponto de bajular um ninguém.
Sem sequer lançar outro olhar a Nan Huai, virou-se com arrogância e foi embora.
Nan Huai não esperava por tamanha humilhação em público. Ficou ali parado, atônito, por um bom tempo antes de recuperar os sentidos.
Já ouvira dizer que o Príncipe Ning era arrogante e desinibido... mas não imaginava que seria tão rude assim.
...
Ao saber que Fuyi havia sido alvo de um atentado, a imperatriz ordenou que ela comparecesse ao palácio logo na manhã seguinte. Após a audiência matinal, o imperador e o príncipe herdeiro também foram ao Palácio Zhaoyang.
— Não precisa se curvar. Sente-se à vontade — disse o imperador, impedindo Fuyi de fazer as reverências formais. — Zhen já transferiu o caso para o Tribunal de Revisão Judicial e para o Ministério da Justiça. Aqueles assassinos não escaparão da justiça.
— Se me permite, Vossa Majestade, essas duas instituições têm pessoal limitado. A capital é vasta, e é difícil para os oficiais identificarem criminosos disfarçados de civis comuns — Fuyi disse, lançando um leve sorriso a Sui Tingheng antes de voltar-se ao imperador. — Esta filha súdita tem uma sugestão — o senhor se interessaria em ouvir? Mesmo que não possamos capturar o mandante, podemos obrigá-lo a sofrer grandes perdas.
— Que sugestão? — perguntou o imperador, curioso, sempre disposto a ouvir os esquemas engenhosos que pareciam brotar sem fim da mente dela.
— Ninguém conhece uma vizinhança melhor do que quem vive nela — Fuyi piscou. — Por que não começar por aí, Vossa Majestade?
— Você quer dizer... — O imperador teve um estalo e bateu na coxa, rindo alto. — Zhen entendeu!
Naquela tarde, a notícia espalhou-se por toda a capital.
— Ficou sabendo? Inimigos infiltraram nossa capital disfarçados de cidadãos comuns, tentando matar nosso povo de Grande Long!
— Sim, ouvi! Dizem que algum adivinho real previu que a fortuna nacional de Grande Long está em ascensão, então eles estão tentando sabotar a gente. Assassinato, incêndio, profanação de túmulos — esses desgraçados fazem de tudo!
— Ontem à tarde, vi soldados revistando lojas em armadura. Será que estavam atrás deles?
— Droga! Agora entendi por que os meus nabos secos que pendurei do lado de fora sumiram hoje de manhã! Aposto que foram esses canalhas!
Em poucos dias, o pânico espalhou-se pela capital. Estimulados pela comoção, os cidadãos uniram-se às autoridades e denunciaram diversas figuras suspeitas.
Com a promessa de generosas recompensas em prata por informações úteis, o entusiasmo cresceu. Para o povo, todo mundo parecia uma mina ambulante de prata. Os furtos diminuíram drasticamente — nem o menor crime passava despercebido pela vigilância popular, e seus autores acabavam na prisão.
— O poder das massas é realmente impressionante — disse o imperador, sorrindo enquanto lia a lista de capturas na carruagem rumo ao Palácio de Verão Changyang. — Até um pirata fluvial foragido há mais de dez anos foi pego! O povo de Grande Long é mesmo capaz.
Sui Tingheng estava concentrado num tabuleiro de xadrez e não respondeu.
— Todas essas peças pretas e brancas me dão dor de cabeça — reclamou o imperador. — Por que não volta para sua carruagem para estudar isso?
— Lá está quente — respondeu Sui Tingheng.
— Quente? — O imperador se surpreendeu. — O pessoal do Departamento da Casa Imperial ousa negar-lhe gelo?
— Ninguém negou nada — Sui Tingheng virou mais uma página do manual de xadrez. — Estava abafado demais na estrada, então este filho compartilhou o gelo com as damas da comitiva. As mulheres são mais frágeis; não ficaria bem se adoecessem por causa do calor.
O imperador abriu a boca, depois a fechou, hesitou, e por fim estalou a língua.
— Tem objeções, Pai Imperador? — Sui Tingheng pegou uma peça de xadrez e ergueu o olhar. — Aqueles distribuindo recompensas ainda não foram longe. Este filho pode chamá-los de volta?
— Deixa pra lá. Esta carruagem é espaçosa o bastante. Uma pessoa a mais não faz diferença — o imperador puxou o manto imperial e enxugou o suor sem elegância. — O Departamento de Astronomia disse que choverá amanhã à noite. Assim que chover, a capital deve esfriar bastante.
Lançou um olhar para as vestes impecáveis do filho, sem um fio de cabelo fora do lugar, e puxou a bacia de gelo para mais perto. ‘Heng’er talvez não se importe com o calor, mas eu sim!’
...
Fuyi abraçou a bacia de gelo trazida por um eunuco e suspirou, satisfeita:
— Mãe, vamos gelar umas frutas.
— Não exagere no frio — disse Liu Qiongzhi. Vendo Fuyi agarrada ao gelo, pegou a bacia das mãos dela. — E não fique segurando isso tão colado no corpo.
O imperador, por natureza frugal, surpreendentemente mostrara-se generoso naquele dia. A família Yun havia retornado à capital apenas naquele ano e, ao contrário de outras residências, não havia armazenado gelo em sua adega com antecedência. Com o calor sufocante na carruagem, aquela bacia de gelo entregue era uma verdadeira bênção.
— Sua residência está próxima da família imperial, e os criados de nossa casa não poderão servi-la lá. Você deve ser ainda mais cautelosa.
— Não se preocupe, mãe. Conheço bem o Palácio de Verão.
A viagem foi longa e entediante. Após horas na estrada, a carruagem finalmente chegou ao Palácio de Verão Changyang na segunda metade da noite. O local estava completamente iluminado, pronto para recebê-los. Por acaso — ou talvez não —, Fuyi foi novamente designada para o Pavilhão Yi’an, os mesmos aposentos onde sempre ficara nas visitas anteriores. Com sua paisagem encantadora e localização privilegiada, continuava sendo um lugar excepcional.
Ao retornar após três anos, Fuyi sentiu como se tivesse entrado em outra vida. A mobília havia mudado bastante, mas o arco e a espada que usara ainda pendiam da parede, e até mesmo o papagaio que ela mesma havia confeccionado três anos atrás estava cuidadosamente preservado.
Apenas o papagaio havia perdido sua cor, já não tão vibrante como no dia em que foi feito. Ela estendeu a mão para pegá-lo, mas o papel desbotado tornara-se frágil e rasgou-se com facilidade, abrindo um buraco.
— Minha senhora... — A criada do palácio empalideceu ao ver o papagaio danificado.
— Não se assuste — disse Fuyi, percebendo que a menina tinha apenas quatorze ou quinze anos. Entregou-lhe o papagaio rasgado. — Eu fiz esse papagaio há três anos. Não tem problema que esteja estragado. Pode descartá-lo.
A serva o recebeu com cuidado, sem ousar fazer perguntas, e retirou-se com uma reverência.
— Espere um momento — Fuyi a chamou de volta. — Onde estão Sanbao e Sanfu, que costumavam servir aqui?
Sanbao e Sanfu eram irmãos eunucos. Quando ela os conhecera, tinham apenas sete ou oito anos. Ao longo dos anos, sempre haviam aguardado sua chegada no Pavilhão Yi’an, mas naquela noite não estavam em lugar algum.
— Perdão, minha senhora. Esta criada nunca ouviu esses nomes — respondeu a jovem, temerosa de desagradar Fuyi. — Esta criada está alocada no Pavilhão Yi’an há pouco tempo. Deseja que eu chame o mordomo?
— Vá chamá-lo. — Fuyi já estava sonolenta, mas por mais que tentasse, não conseguia dormir. Com o queixo apoiado na palma da mão, ficou ali, fitando o vazio na direção da porta.
Capítulo 45 – Parte 2 – Pêssegos Secos (II)
Quando o intendente soube que a dama hospedada na Residência Yi’an queria vê-lo, correu com toda a pressa. A Residência Yi’an era um lugar especial, mesmo dentro do Palácio de Verão. Quem podia residir ali certamente não era qualquer um.
Mas no momento em que pisou no pátio e viu quem o aguardava, suas pernas cederam, e ele caiu de joelhos no ato.
Quem poderia imaginar que a moça outrora desprezada pelo falecido imperador retornaria depois de três anos — e ainda residiria naquele lugar prestigiado?
— Este servo indigno saúda minha senhora.
— Lembro que você costumava ser o eunuco encarregado da limpeza aqui na Residência Yi’an — disse Fuyi, observando o rosto apreensivo do intendente. — O que aconteceu com Sanbao e Sanfu?
— No segundo ano após a partida de Vossa Alteza da capital, Sanfu e Sanbao ofenderam uma pessoa nobre e foram enviados para o departamento de gestão de dejetos como punição — respondeu o intendente, surpreso por a primeira pergunta da Senhorita Yun ser justamente sobre aqueles dois. Um lampejo de inveja surgiu em seu coração. Aqueles dois realmente tinham sorte — mesmo depois de tantos anos, ela ainda se lembrava deles.
— Sanbao e Sanfu me servem na Residência Yi’an desde que eu tinha cinco anos, quando vim ao Palácio de Verão pela primeira vez. Agora que eles se foram, me sinto bastante incomodada — disse Fuyi, notando o rosto do intendente empalidecer ainda mais. — Pois bem, pode trazê-los para mim dentro de uma hora?
— Sim! — O intendente não ousava contrariá-la. — Este servo irá buscar Sanbao e Sanfu imediatamente.
Só quando deixou a Residência Yi’an percebeu que suas costas estavam encharcadas de suor frio. Quatro anos antes, um eunuco a serviço da Nobre Consorte Zeng irritou Yun Junzhu e, sem se importar com o prestígio da consorte, ela ordenou que o homem fosse açoitado trinta vezes ali mesmo.
Se até a consorte mais favorecida do falecido imperador teve que ceder diante dela… que chance ele teria?
…
Sanbao e Sanfu haviam acabado de voltar da limpeza das latrinas. Ouvindo a agitação à distância, Sanbao não se conteve:
— Ah, se a Senhorita Yun estivesse aqui…
Sanfu tirou o robe imundo e fétido sem dizer palavra. Mesmo que a Senhorita Yun estivesse ali, o que poderia fazer? Um novo imperador traz novos favoritos, e qualquer um com o mínimo de juízo saberia que não é hora de chamar atenção pedindo por antigos servos.
Além disso, já se passaram três anos — talvez ela nem se lembrasse mais deles…
— Eunuco Sanbao, Eunuco Sanfu — chamou o intendente do Escritório de Gestão de Dejetos, entrando com um sorriso largo, seguido por vários eunucos carregando água quente e roupas limpas. — Vim parabenizá-los.
O coração de Sanfu se agitou, mas ele não deixou escapar nenhuma emoção.
— Uma nobre dama deseja vê-los. Tratem de se banhar e trocar de roupa rápido, ou vão deixá-la esperando.
— É a Senhorita Yun? — Sanbao agarrou a mão do intendente, empolgado. — Foi ela quem nos chamou?
Mesmo com a mão suja de Sanbao sobre si, o sorriso bajulador do intendente não se desfez.
— Como alguém como eu saberia quem é a nobre? Parabéns para vocês dois. Se tiverem chance, lembrem-se de dizer uma boa palavra por nós.
Afinal, quem escolheria voluntariamente permanecer num lugar como o Escritório de Gestão de Dejetos, a menos que não tivesse saída?
Sanbao e Sanfu se lavaram em um piscar de olhos. Temendo que qualquer odor persistente pudesse ofender a dama, o intendente ainda acendeu um incenso perfumado antes de mandá-los embora às pressas.
Conforme os passos os levavam de volta à Residência Yi’an, Sanbao já não conseguia esconder o sorriso no rosto. Tem que ser a Senhorita Yun. Só pode ser ela!
Ao dobrarem a última esquina, viram a jovem parada na entrada da Residência Yi’an.
— Senhorita Yun. — Os olhos de Sanbao e Sanfu se encheram de lágrimas quando se ajoelharam, com a voz embargada.
— Levantem-se — Fuyi se abaixou e deu um tapinha no ombro de cada um. — Olhem pra vocês dois… chorando por quê?
Ao ouvir sua voz, os dois choraram ainda mais. Fuyi se lembrou de um verão, treze anos atrás, quando encontrou dois eunucos mirrados e chorosos num canto e os trouxe de volta consigo para a Residência Yi’an.
Desde então, sempre que ela subia em árvores para pegar pássaros, eles seguravam a escada; quando ela corria atrás dos cães, eles fechavam as saídas; quando arrumava confusão, eles faziam a vigilância.
Infelizmente, ela era apenas filha de um oficial da corte e não podia tirá-los do Palácio de Verão.
— Levantem-se e comam uns docinhos — disse Fuyi, empurrando dois pratos de bolinhos para as mãos deles. — Eu não consegui terminar, então agora são de vocês.
Os irmãos seguravam os pratos com os olhos marejados. Três anos haviam passado, mas a Senhorita Yun continuava a mesma — gentil como sempre.
— Depois que comerem, vão dormir um pouco. A partir de agora, vão servir aqui na Residência Yi’an novamente — disse Fuyi, bocejando enquanto se levantava para voltar para dentro.
— Senhorita — Sanfu a chamou —, somos gratos por sua bondade, mas… não queremos lhe causar problemas…
— Já se passaram só três anos e vocês já não me obedecem mais? — Fuyi sorriu. — Não se preocupem. É um assunto pequeno. Ninguém vai me incomodar por causa disso.
Sanfu assentiu, atordoado, com o prato nas mãos.
Está tudo bem… A Senhorita Yun está bem.
Poder vê-la novamente era o melhor presente que os céus poderiam lhes dar.
…
— Alteza — uma velha momo se aproximou de Sui Tingheng, segurando uma pipa de papel. — O que deve ser feito com esta pipa?
— Yun Junzhu mandou trazê-la? — Sui Tingheng notou um rasgo novo no papel e estendeu a mão para alisá-lo, depois remendou cuidadosamente.
— Sim — respondeu a momo, lançando um olhar ao príncipe herdeiro, que cuidadosamente varria as asas da pipa com um pincel. — Ela também transferiu dois eunucos do Escritório de Dejetos para a Residência Yi’an.
— Eunucos? — Sui Tingheng ergueu os olhos.
— Um se chama Sanfu, o outro Sanbao — disse a momo. — Yun Junzhu os trouxe à Residência Yi’an quando tinha cinco anos e foi ela mesma quem lhes deu esses nomes.
— Se servem a ela há tanto tempo, é justo que permaneçam com ela — disse Sui Tingheng, pondo o pincel de lado e ordenando que a pipa fosse guardada cuidadosamente no aposento interno. — Tudo na Residência Yi’an deve ser decidido por Yun Junzhu.
…
Na manhã seguinte, Fuyi levou Sanbao e Sanfu para um passeio e soube que o príncipe herdeiro havia morado na Residência Yi’an.
— Por que vocês nunca me contaram isso? — ela se virou para os irmãos.
Sanbao e Sanfu balançaram a cabeça ao mesmo tempo.
— Senhorita, fomos mandados para o Escritório de Dejetos há três anos. Como poderíamos saber?
— É verdade — Fuyi assentiu. Eles nunca foram muito espertos mesmo — perguntar uma coisa dessas era um pouco injusto.
Sanbao acrescentou:
— Senhorita… isso quer dizer que a senhora ficou com a residência do príncipe herdeiro?
Fuyi: …
— Fuyi! — Lin Xiaowu apareceu correndo com um cesto de pêssegos. Escolheu o maior e mais maduro para ela, radiante. — Lembro que você adorava os pêssegos de Changyang. Já se passaram três anos — você devia estar morrendo de saudade!
Fuyi pegou um lenço, limpou o pêssego e deu uma mordida.
— Ainda não faz três anos. Você não me mandou pêssegos secos pelas caravanas mercantes nesses dois últimos anos? — Ela fez sinal para que Sanbao e Sanfu pegassem alguns. — Pêssego seco não é tão bom quanto o fresco, mas quebra o galho.
— Pêssegos secos? Que pêssegos secos? — Lin Xiaowu franziu a testa, confusa. — Esta é a primeira vez desde a coroação de Sua Majestade que somos autorizadas a vir ao Palácio de Verão. Como eu teria mandado pêssegos pra você?
Não foi Lin Xiaowu? Mas a caravana mercante claramente dizia estar entregando em nome dela — e os itens enviados eram todos coisas que eu amava.
— Talvez o mercador tenha se enganado — Fuyi encarou o pêssego meio comido em sua mão, franzindo o cenho.
— Impossível. Nunca mandei pêssegos secos — Lin Xiaowu respondeu com firmeza. — Você deve ter se lembrado errado.
— Do que é que você se lembrou errado?
Fuyi se virou e viu Sui Tingheng parado sob a sombra de uma árvore, alto e imponente, com um leve sorriso no olhar enquanto encarava o pêssego em sua mão.
Nota da autora:
Irmão Sui: “Mais um dia de encontros coincidentemente bem-sucedidos~”
1: Momo é uma serva idosa de alto escalão, geralmente em cargos de supervisão.
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