Capítulo 7 – O calor de estranhos familiares


 Havia quatro apartamentos no quarto andar do prédio. A família Zhong morava na unidade 904. Quando Song JinXing estava prestes a digitar a senha da porta do 904, ela se abriu com um clique por dentro, e um homem de meia-idade com aparência cansada saiu.

Ele parecia um pouco mais velho do que Zhong Ruanxing havia descrito. Embora ainda se pudesse vislumbrar traços de uma beleza passada, os anos e a vida haviam deixado marcas demais, fazendo com que ele se apagasse na multidão. Com o cheiro constante de óleo impregnado por anos na cozinha, ele era Zhong Anping, pai de Zhong Ruanxing, que trabalhava como chef há mais de trinta anos e atualmente era o chef principal de um restaurante especializado em banquetes chineses.

Os dois se entreolharam e congelaram por um momento, pegos de surpresa.

Zhong Ruanxing havia dito que seu pai era calado e não sabia se comunicar muito bem. Nos termos modernos, ele era um pouco socialmente inepto e falava pouco até mesmo com os próprios familiares.

Song JinXing achou que isso era até bom, já que ele também não queria muita interação. Tinha a intenção de cumprimentar Zhong Anping primeiro, mas a palavra “Pai” travou em sua garganta e simplesmente não conseguiu sair.

Fazia vinte anos desde a última vez que ele chamara alguém assim.

Zhong Anping foi o primeiro a se recompor.

— Voltou? — Ele pegou a sacola com os sapatos de salto alto da mão de Song JinXing. — Já tomou café da manhã?

— Não. — respondeu Song JinXing.

Zhong Anping tirou os sapatos que acabara de calçar e voltou para dentro.

— Então vou fazer um macarrão pra você antes de ir pro trabalho.

Song JinXing o seguiu até dentro da casa. O apartamento de três quartos e duas salas era do tamanho ideal para uma família de quatro pessoas. Zhong Ruanxing já tinha lhe mostrado fotos na noite anterior, então ele estava familiarizado com a disposição dos cômodos. Estava indo direto para o “seu” quarto quando a porta do quarto infantil se escancarou de repente e uma garotinha de cabelos bagunçados pulou em sua perna.

— Mana!

Usando um vestidinho e com as pernas de fora, a criança vestia um pijama sem mangas. A pele das duas se tocou, e Song JinXing, que não era acostumado com contato físico, reagiu como se tivesse levado um choque, arrepiando-se inteiro.

Ficou parado como uma estátua e tinha acabado de empurrar a criança quando ela se agarrou novamente, se enroscando em sua perna como um macaquinho. Esfregou a cabeça contra ele.

— Mana, a Youyou sentiu taaanta saudade! Muita saudade, muita saudade! Beijo, muamua~

Embora Zhong Ruanxing já o tivesse avisado que a irmã mais nova era grudenta com ela, ele ainda se sentiu um tanto sobrecarregado com tanto afeto.

Depois que ela se esfregou bastante e finalmente largou, Song JinXing soltou um suspiro de alívio. Mas antes que pudesse terminar de respirar fundo, Zhong You pegou sua mão e o puxou para o quarto dela, sussurrando com ar de mistério:

— Mana, eu tenho uma nova amiga que só vou apresentar pra você.

O quarto cor-de-rosa, decorado como um palácio de princesa, mostrava o quanto Zhong Ruanxing valorizava a irmãzinha de quatro anos. Havia uma tigela virada sobre a escrivaninha branca. Zhong You o levou até lá e levantou cuidadosamente a borda.

— Minha nova amiga tá aqui embaixo...

Um grilo saiu de debaixo da tigela. Como Song JinXing estava perto, o braço encostou na escrivaninha. Assustado com a súbita liberdade, o inseto rapidamente subiu pelo seu braço.

Se fosse a verdadeira Zhong Ruanxing ali, Zhong You levaria uma surra hoje.

Com o rosto inexpressivo, Song JinXing pegou o grilo que já tinha alcançado sua clavícula e o colocou de volta na tigela. Depois, pôs um livro em cima.

— Cuide bem da sua nova amiga.

Zhong You o olhou com admiração.

— Tá bom!

Ela e os amiguinhos do prédio haviam levado horas para pegar esse bicho ontem! A mana pegou de primeira. Ela era mesmo a irmã mais incrível do mundo!

Enquanto Zhong You brincava com o grilo, Song JinXing voltou ao quarto e trocou de roupa, colocando algo mais leve e casual. O quarto de Zhong Ruanxing também era bem feminino, refletindo o complexo de princesa que ambas as irmãs pareciam compartilhar. O armário arrumado, ainda que pequeno, era organizado com as roupas separadas por tipo e visíveis à primeira vista. Havia também algumas bolsas e joias de marca, mas claramente modestas demais para uma celebridade.

Song JinXing pegou um elástico de cabelo preto da penteadeira e foi até o banheiro.

Lutou por muito tempo tentando amarrar os longos cachos pretos, sem sucesso. Estava com o rosto todo franzido de concentração. Zhong You ficou observando por um tempo, com a cabeça inclinada.

— Mana — chamou a garotinha.

Ela correu até ele.

— Você não sabe amarrar o cabelo? — Largou o coelhinho de pelúcia de lado. — A Youyou ajuda você!

Song JinXing se agachou em silêncio e lhe entregou o elástico.

Zhong You era muito mais habilidosa que ele. Rapidamente fez um rabo de cavalo bem preso e então correu até o quarto para buscar uma presilha rosa em formato de borboleta, que prendeu no cabelo. Bateu palminhas, satisfeita.

— Prontinho!

Song JinXing conteve o impulso de arrancar tudo.

Quando chegou à sala, viu duas tigelas fumegantes de macarrão com nabo sobre a mesa de jantar. O pai Zhong já devia ter saído para o trabalho.

Song JinXing pegou a grudenta Zhong You no colo como um filhote de coala e a colocou na cadeirinha infantil ao lado da mesa.

— Vamos comer.

Zhong You se comportava bem durante as refeições. Manejava os hashis de forma atrapalhada para levar os fios de macarrão à boca, enquanto lançava olhares furtivos para quem estava ao seu lado. Depois de um tempo, soltou de repente:

— Você não é minha irmã.

Song JinXing quase se engasgou com o macarrão.

Engoliu calmamente a comida e olhou para ela.

— Então quem eu sou?

Zhong You franziu a testa, fez bico e o analisou por um bom tempo antes de bufar e voltar a comer, sem responder.

Quando estavam no meio do café da manhã, a porta do segundo quarto se abriu e Zhong Mãe, Lin Mishu — muito parecida com Zhong Ruanxing — apareceu. Usava uma blusa florida e calça preta, com chinelos de jade macia nos pés. O cabelo de comprimento médio estava trançado em duas maria-chiquinhas, fazendo-a parecer bem mais jovem que o pai Zhong.

— Ruanxing — chamou ela. — Hora de ir com a mamãe colher canola pra vovó. Vamos?

A avó de Zhong Ruanxing já havia falecido há muitos anos.

Três anos atrás, a mãe Zhong foi diagnosticada com Alzheimer, e desde então sua condição vinha piorando. Na noite anterior, quando Zhong Ruanxing falou sobre isso, não parecia abatida.

Ela sempre parecia aceitar com otimismo qualquer provação que a vida colocasse em seu caminho.

“Não se preocupe. Temos uma cuidadora que vem de manhã e à noite. O papai chega do trabalho à noite pra assumir.”

Song JinXing se levantou e foi até a cozinha, onde havia de fato uma porção de macarrão deixada pelo pai Zhong para a mãe. Levou até a mesa e a fez sentar.

— Come primeiro, depois a gente vai.

A mãe Zhong o olhou com olhos infantis. Depois de um tempo, perguntou de repente:

— Ruanxing, tá doendo?

Levantou-se para pegar o kit de primeiros socorros no armário, voltou, segurou o braço da filha e assoprou de leve no machucado do cotovelo de ontem, como quem consola uma criança.

— Deixa a mamãe passar um remedinho.

Song JinXing permaneceu um pouco rígido enquanto ela cuidadosamente aplicava iodo no ferimento com um cotonete.

Mesmo tendo perdido a memória e a lucidez, uma mãe ainda sabia cuidar do seu filho.

Depois de comer, a mãe Zhong esqueceu completamente a ideia de colher canola para a avó.

Parecia ter se lembrado de outra coisa e se sentou na escrivaninha do quarto, desenhando e escrevendo. Song JinXing se certificou de que portas e janelas estavam seguras e sem riscos antes de fechar a porta com cuidado, para não atrapalhá-la.

Ao se virar, viu Zhong You parada ali, segurando uma pistola de brinquedo e olhando para ele com expressão séria.

Ao notar o olhar dele, ela imediatamente apontou a arma.

— Você não é minha irmã! É um vilão!

Song JinXing estendeu a mão para ela. Zhong You ficou em alerta.

— O que você quer, seu malvadão?

— Quer sorvete? — disse ele.

Dez minutos depois, a garotinha lambendo um picolé de morango no colo dele se agarrava com carinho:

— A Youyou ama a mana mais que tudo!

Song JinXing empurrou a cabecinha dela pra longe com expressão inalterada.


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