116
Segundo a lenda, centenas de anos atrás, havia um literato despreocupado que usava uma túnica larga e mantinha os cabelos soltos. Contudo, por causa de seu talento extraordinário, era aclamado como uma celebridade — e chegou a ser chamado de “estudante louco”. Mas que homem com o cabelo desgrenhado poderia realmente parecer bonito?
Shi Jin sempre fora comportado desde criança, e nem mesmo conseguia entender por que comportamentos indisciplinados em outros homens eram vistos como admiráveis.
Embora ele e Rong Xia estivessem em lados opostos, precisava admitir: Rong Xia era uma figura rara na capital. Agora, vendo-o naquele estado humilhante, Shi Jin não sentiu prazer ou escárnio — apenas um sentimento complicado e impossível de expressar.
Pensava, por um lado, que talvez não tivesse sido bom o bastante com a Princesa Fule. E, por outro, que talvez o amor entre ela e Rong Xia fosse mesmo até o fim da vida.
Lançando um olhar para a pessoa que Rong Xia carregava nos braços, Shi Jin ergueu a mão, sinalizando para seus subordinados deixarem o caminho livre para ele.
Rong Xia fez um aceno de cabeça e subiu na carruagem que havia sido estacionada às pressas do lado de fora.
— Marquês de Cheng An — Shi Jin se aproximou da carruagem —, como está a Princesa Fule?
— Agradeço a preocupação, Lorde Shi — respondeu Rong Xia, erguendo a cortina com uma expressão fria —, minha esposa não corre risco de vida. Podemos partir.
— Despeço-me — Shi Jin recuou dois passos, observando a carruagem com o brasão da família do Marquês de Cheng An afastar-se.
Ele então se virou, e viu a pequena criada que havia sido trazida mais cedo ser escoltada para fora, seguida pelo príncipe e pela princesa herdeira, ambos com expressões sombrias.
— Alteza — Shi Jin se aproximou do príncipe —, esta criada é mesmo quem envenenou a Princesa Fule?
— Embora tenha sido ela quem agiu, há alguém por trás disso — disse a princesa herdeira. — O Marquês de Cheng An já partiu?
— Acabou de sair às pressas.
A princesa herdeira franziu os lábios e voltou-se para o príncipe. A preocupação no rosto dele era tão intensa que parecia impossível dissipá-la. Ela segurou o braço do príncipe com delicadeza.
— Alteza... deveríamos enviar algumas ervas medicinais de que a princesa possa precisar?
— Obrigado, princesa herdeira — o príncipe assentiu, e logo se dirigiu ao pavilhão onde os cortesãos estavam reunidos.
A princesa herdeira ficou olhando, sem expressão, para as costas do príncipe. Havia tempos em que ele a chamava por seu apelido íntimo, e ela costumava alertá-lo que aquilo era contra a etiqueta. Se alguém ouvisse, ririam de você, dizia ela.
Agora que ele não a chamava mais por aquele nome, de repente, ela se sentia vazia.
Deve ter sido porque o Marquês de Cheng An chamou Ban Hua pelo apelido dela. Por isso estou assim, tão inquieta.
A princesa sorriu de si para si, em silêncio. Ela é diferente de mim. Por que me comparar com ela?
— Princesa herdeira — Shi Jin a observava com preocupação —, está tudo bem?
— Está sim — ela balançou a cabeça. — Só estou um pouco cansada.
Vendo que ela não queria falar mais, Shi Jin se despediu com um cumprimento e se afastou.
Fogo. Um incêndio em chamas vivas.
Ban Hua sentia como se estivesse sobre um monte de lenha. As chamas eram tão intensas que tingiam o céu de vermelho. Ela abriu os lábios secos, mas tudo o que viu foi o céu escuro. Logo depois, flocos de neve começaram a cair. E a neve só aumentava.
Ela tremia de frio, sem ter onde se abrigar.
Morrer queimada ou morrer congelada?
Baixando os olhos, viu as roupas em seu corpo. Era um traje grosseiro de linho, sem qualquer elegância. Ao tocar os cabelos, percebeu que estavam secos, embolados — piores que um ninho de galinha.
Não... não posso morrer assim.
A neve já alcançava suas panturrilhas, e cada passo era uma tortura. Ela inspirou fundo e procurou a direção da Mansão Jingting.
Depois de alguns passos, a estrada mudou — fogo de um lado, neve do outro. Ban Hua parou, desesperada.
Mas, ao baixar os olhos e ver as roupas que vestia, retomou a coragem e seguiu adiante, com dificuldade.
No fim da estrada, havia inúmeras tumbas. Nenhuma tinha nome ou ervas crescendo. Apenas se erguiam, frias e silenciosas, arrepiando até a alma.
Ban Hua parou, e de repente se lembrou de um sonho que tivera. Alguns dos mortos enterrados sob a Lâmina da Supressão eram bandidos de fato — mas muitos eram vítimas de catástrofes, forçados ao limite. Ela fechou os olhos e tentou atravessar aquele chão.
Ouviu choros de crianças, lamentos de mulheres, os gritos dos homens. Cerrando os dentes, não se atreveu a olhar para trás, tampouco a responder aos que a chamavam.
Seu avô lhe dissera uma vez: se alguém te chamar em um cemitério, nunca responda, e jamais olhe para trás.
— Huahua — uma voz forte e familiar a chamou.
Um velho robusto, vestido com uma túnica verde, sorria diante dela.
— O que está fazendo aqui? Por que não volta comigo?
Vovô?
Ban Hua olhou fixamente para o homem, confusa, querendo chamá-lo.
Não... algo está errado.
Antes de morrer, seu avô já estava fraco e abatido, a dor o havia consumido. Mesmo assim, dia após dia, sustentou a avó até o último momento — até dizer, segurando sua mão, que queria que ela cuidasse bem da avó.
Vovó...
As lágrimas escorreram dos olhos de Ban Hua. Ela se sentia culpada. Não tinha acompanhado bem sua avó. Não a protegera.
— Huahua... — a voz de Rong Xia ecoou, desesperada.
Ele correu até a cama e, vendo o rosto de Ban Hua corado de febre e lágrimas escorrendo por suas bochechas, segurou sua mão e gritou:
— Huahua, o que está acontecendo com você?! Huahua?!
— Marquês de Cheng An — disse o médico imperial que acabara de terminar a acupuntura, ao vê-lo daquele jeito —, a princesa está em coma. Ela não pode ouvir sua voz agora.
— Como ela está? — Rong Xia apertava a mão de Ban Hua com força. A temperatura escaldante a deixava ainda mais inquieto. — Vocês não disseram que a quantidade do veneno era pequena e que ela não corria risco de vida?!
— Logicamente, sim... mas a princesa vomitou muito sangue e voltou a ter febre alta. Essas situações são, de fato, perigosas. — vendo que Cheng Anhou permanecia calado com o rosto sombrio, o médico imperial falou com cautela —:
— Por favor, não se preocupe, este oficial fará o possível para curá-la.
Rong Xia assentiu em silêncio.
— Obrigado.
Ele se virou e tentou enxugar as lágrimas no rosto de Ban Hua.
O médico imperial, ao ver o desespero estampado em seu semblante, balançou a cabeça em silêncio. Estava prestes a falar algo quando um criado entrou apressado.
— Hou... Lorde Hou! O senhor Jing Ting, a senhora Jing Ting e o filho mais velho chegaram! — o criado, ofegante, curvou-se diante de Rong Xia. — O senhor Jing Ting não quis esperar o anúncio e veio correndo para cá!
— Entendido. — Assim que Rong Xia respondeu, a voz de Ban Huai ecoou do lado de fora:
— Como está Huahua?!
— Quem a envenenou?! Que médicos imperiais foram chamados?!
A família Ban entrou em disparada, e o médico percebeu que, além dos três principais membros, também havia alguns parentes colaterais. Vieram tumultuar? pensou ele, franzindo o cenho.
— Sogro, sogra. — Rong Xia curvou-se diante dos dois, mas os idosos da família Ban não tinham cabeça para formalidades.
Yin aproximou-se da cama e tocou a testa quente de Ban Hua.
— O culpado já foi capturado?
— Eu mesmo conduzirei o interrogatório. — respondeu Rong Xia, inclinando-se mais uma vez.
Yin assentiu, limpando o suor da testa de Ban Hua com um lenço.
— Sabemos que, com você, podemos ficar tranquilos.
Rong Xia curvou-se profundamente mais uma vez e permaneceu em silêncio.
— Se eu soubesse que algo assim ia acontecer, teria ido a Yutian. — Ban Huai estava arrependido e furioso. — Qual desgraçado ousou fazer nossa filha passar por uma coisa dessas? Eu juro que vou matar ele!
O médico imperial não conseguiu evitar o pensamento: Senhor Jing Ting é mesmo um general veterano... suas palavras são diretas e afiadas.
— Quando descobrirmos quem está por trás disso, não vamos perdoar! — Ban Heng rosnou entre os dentes. Aproximou-se de Yin, olhou para a irmã em sofrimento, e voltou-se para o médico:
— Qual foi o veneno que usaram nela?!
— Acônito.
— O quê?! — Ban Heng quase perdeu o equilíbrio. Usaram uma coisa tão cruel assim?
Minha irmã...
Minha irmã...
— Por favor, acalme-se. A princesa não foi gravemente envenenada. Desde que supere essa febre alta, ficará bem.
Ban Heng continuava com o peito apertado. Como ela pôde passar por isso? “Desde que supere”? Estamos falando de um envenenamento, não de fome ou sede!
Mas quem a odeia tanto a ponto de querer vê-la morta?
Xie Wanyu, concubina de Ning?
Princesa herdeira Shi?
Xie Qilin, segundo filho da família Xie? Ou Shen Yu, que apanhou da minha irmã?
Deixando os três primeiros de lado, mesmo que Shen Yu a odiasse... ele teria capacidade de armar algo assim durante o Festival da Colheita? Se fosse tão competente, teria perdido reputação e cargo?
Sabendo de suas limitações, Ban Heng compartilhou suas suspeitas.
— Não pode ter sido Shen Yu — Yin afirmou com convicção. — Ele já voltou para sua cidade natal, Dongzhou.
— Eu imaginei... Não o vi mais. Então, ele voltou pra casa depois de ser dispensado — Ban Heng olhou para Rong Xia. — Cunhado, por favor, descubra quem foi o verdadeiro culpado.
— Descobrirei — disse Rong Xia com firmeza. — Não deixarei Huahua sofrer tudo isso em vão.
A notícia do envenenamento de Ban Hua logo chegou aos ouvidos do Imperador Yunqing. Ao escutar, ele mal conseguiu acreditar.
— Como isso entrou nos campos imperiais?! — Desta vez, ele havia enviado o príncipe em seu lugar para cultivar. Pediu pessoalmente ao Ministério dos Ritos que providenciasse tudo com padrão imperial. Cada alimento, cada item, tudo havia sido inspecionado. Era quase impossível haver erro.
A menos que os eunucos e donzelas que serviam em Yutian já tivessem sido subornados... caso contrário, isso jamais teria acontecido.
O comandante Yang já suspeitava de algo, mas não ousou falar diretamente.
— Investigaremos tudo o mais rápido possível — prometeu.
Inesperadamente, o imperador perguntou:
— Você acha que foi o Príncipe Ning ou a concubina Ning?
O comandante Yang congelou.
— Eu... não sei...
— Não sabe ou não se atreve a dizer? — retrucou o imperador. Com a ajuda de Wang De, foi até a mesa imperial. — Me traga o tinteiro.
O príncipe Ning é impulsivo por natureza... isso é culpa minha, por mimá-lo demais. Agora que estou velho, ele ainda age sem pensar. Isso me entristece profundamente.
Hoje, o Príncipe Luo será destituído de seu título e rebaixado a rei de condado. Que ele se arrependa...
O comandante Yang suava frio ao ver o conteúdo do decreto. Sua Majestade está prestes a cortar o título de príncipe de Ning?
Mas, após terminar de escrever, o Imperador Yunqing pousou o pincel, suspirou e, mesmo contrariado, decidiu não promulgar o decreto.
Ainda assim, naquela noite, voltou a ter pesadelos. Sonhou com antigos amigos dilacerando seu corpo, e quase foi arrastado com eles para o abismo.
Na masmorra, a criada Xiao Yu encolhia-se num canto. Um rato empoeirado correu perto dela, pegou um pedaço de pão amanhecido caído do nada, e se escondeu na grama seca com cheiro de mofo.
Xiao Yu tentou se afastar, mas não havia para onde ir — atrás dela, só havia a parede grossa e gelada.
— Saia daí — disse um carcereiro ao se aproximar da cela, a voz fria e impessoal —. O Marquês de Cheng An quer interrogá-la. Rápido.
Xiao Yu saiu timidamente da cela. Com algemas nos pés, mal conseguia andar. Sua sombra longa se estendia na parede manchada, lembrando-lhe as histórias de fantasmas que ouvira quando criança.
Ao passar pelos corredores escuros, viu presos com expressões vazias — ou completamente enlouquecidos.
No lugar onde as luzes eram mais intensas, Xiao Yu viu o Marquês de Cheng An sentado numa cadeira de madeira. Ele usava uma túnica de brocado escura, o rosto estava pálido e havia hematomas suaves ao redor dos olhos.
— Senhor Hou, a prisioneira foi trazida.
Xiao Yu viu que ele finalmente ergueu os olhos para olhá-la, mas o olhar era tão vazio de emoções que ela caiu de joelhos instintivamente.
— Levante-se e responda — a voz de Rong Xia era inesperadamente calma. Xiao Yu lançou um olhar furtivo a ele, e viu que sua expressão permanecia serena, como se o frio que ela sentira antes tivesse sido pura ilusão. Tremendo, ela se levantou, sentindo tamanha culpa que sequer conseguia erguer a cabeça.
Afinal, ela era apenas uma criada de treze ou quatorze anos, e seu coração ainda não era firme o suficiente.
— Não entendo. A primeira xícara de chá estava fortemente envenenada, e foi você quem a preparou. Por que desistiu no último instante? — Rong Xia perguntou como quem faz uma pergunta simples, sem emoção na voz.
— Este... este servo... o irmão mais velho desta serva trabalha no palácio e já recebeu a bondade da princesa. Ele era apenas um eunuco encarregado de serviços brutos, mas por causa de algumas palavras dela... um simples aquecedor de mãos... a vida dele no palácio se tornou muito melhor. — As lágrimas começaram a escorrer, e a menina não conseguiu mais se controlar —. Ele sempre falava bem da princesa para mim... mas eu não conseguia passar por cima do medo em meu coração...
O Rei Ning a havia ameaçado com a vida de sua família, e ela não teve escolha a não ser obedecer. Mas não esperava que a Princesa Fule fosse tão boa. Ela derramou o chá, e mesmo assim a princesa não a culpou, apenas lhe entregou um lenço e pediu que tivesse cuidado. Como eu poderia assistir uma pessoa tão boa morrer envenenada?
Nem ela mesma entendeu por que, naquele momento, desistiu de tudo. Derramou o chá como se estivesse tonta.
Talvez não quisesse retribuir bondade com veneno. Talvez tenha sido o sorriso de Fule, tão bonito, que a fez perder o juízo. Mas, não importava o motivo... naquele instante, ao jogar fora o chá, ela se sentiu incrivelmente aliviada.
— Sua família já está sob custódia. Se estiver disposta a entregar o mentor por trás disso, mandarei alguém protegê-los. Se não quiser falar — Rong Xia abaixou os olhos —, então só me resta permitir que sua família parta com você.
— É sério? O senhor enviou alguém atrás da minha família? — Xiao Yu olhou surpresa para Rong Xia. — O senhor não está mentindo?
Rong Xia respondeu sem qualquer expressão:
— A escolha é sua.
— A serva vai falar — Xiao Yu curvou-se até o chão diante dele. — A serva vai contar tudo.
— É só uma criada...
— Marquês de Cheng An! — Jiang Luo entrou com passos largos e lançou um olhar para Xiao Yu. — O senhor é realmente impressionante. Sua esposa está inconsciente em casa, e ainda assim tem tempo livre para julgar uma criadazinha sem importância.
Ele virou-se novamente para Xiao Yu:
— Até que é bem tenra... e parece saborosa.
Xiao Yu empalideceu de medo e não ousou sequer levantar os olhos para Jiang Luo.
— Não preste atenção a pessoas irrelevantes — Rong Xia continuou ignorando Jiang Luo completamente, sem sequer se levantar para saudá-lo. Apenas manteve os olhos fixos em Xiao Yu. — Esta é sua última chance.
— S-sim... — Xiao Yu lançou outro olhar apavorado para Jiang Luo, cujos olhos sombrios a encaravam. Tremendo, ela fechou os olhos e disse:
— Quem ordenou a serva... foi Sua Alteza, o Rei Ning.
— Você pode comer o que quiser, mas não pode falar qualquer besteira — Jiang Luo zombou. — Quando esta alteza a viu? Você é só uma criada que nem merece aparecer em público. Sem beleza, sem graça... Este rei é cego por acaso? Eu jamais notaria você.
— Marquês de Cheng An, esta criada caluniou a família imperial e deve ser executada — Jiang Luo declarou em voz alta. — Guardas! Levem esta insolente imediatamente! Ela está arruinando o nome deste rei com mentiras!
— Príncipe Ning — Rong Xia se virou e olhou para os guardas que vinham apressados —, este é o calabouço da capital. Se vossa alteza quiser levar alguém daqui, precisará de mandados do Templo Dali e da Prefeitura de Jingzhao.
— Que mandados? O que são o Templo Dali e Jingzhaoyi para mim? Se eu quiser levar alguém, quem ousaria me impedir?
Rong Xia cruzou as mãos nas costas e respondeu lentamente:
— Sua alteza está tão ansioso assim para matar alguém?
— E qual o problema? — Jiang Luo fez um gesto, ordenando que seus guardas a capturassem imediatamente. — Marquês de Cheng An deveria tomar mais cuidado com as palavras.
— Na minha opinião, quem deveria ser mais cauteloso é vossa alteza — Rong Xia ergueu a mão direita. E então, no calabouço quase vazio, surgiram guardas de todos os lados: homens do Templo Dali e da Prefeitura de Jingzhao.
— Enquanto eu estiver aqui, ninguém a levará.
— Marquês de Cheng An, pretende me afrontar?
— O imperador é o único a quem devo lealdade — Rong Xia olhou para Jiang Luo com um sorriso frio. — Se vossa alteza deseja me dar ordens, talvez ainda seja cedo demais.
O rosto de Jiang Luo escureceu de tal forma que parecia prestes a escorrer tinta. Ele rangeu os dentes:
— Rong Xia, não seja descarado!
A única resposta que recebeu foi a risada sarcástica de Rong Xia.
Sob a fúria de Jiang Luo, os dois lados acabaram se enfrentando. Mas, claramente, ambos estavam contidos e não ousaram realmente iniciar um confronto sangrento — as armas em mãos apenas os fizeram hesitar.
Os guardas da Mansão de Ning não queriam agravar a situação e correr o risco de serem acusados de traição ou crimes sérios. Já os homens do Templo Dali e da Prefeitura hesitavam por causa da identidade de Jiang Luo.
Ao ver aquilo, Jiang Luo ficou ainda mais furioso. Sem pensar, estendeu a mão para agarrar a criada ajoelhada no chão. Mas antes que pudesse se abaixar, Rong Xia o impediu com firmeza:
— Rei Ning, está tentando se rebelar? Isto aqui é um calabouço. Mesmo sendo um príncipe, não pode agir como quiser!
— Saia da frente! — Jiang Luo tentou empurrar Rong Xia, mas este nem sequer cedeu um passo. Jiang Luo então gritou furioso: — Rong Xia, você é só um bastardo acolhido pela casa do meu avô! Não se ponha diante de mim! Este rei não tem o menor interesse em sua fachada de cavalheiro!
BOOM! De repente, a porta atrás deles foi arrombada.
Um grupo de jovens com bastões de madeira irrompeu pelo corredor. Antes que os guardas de Jiang Luo ou os de Rong Xia reagissem, os recém-chegados agarraram os homens da Mansão do Rei Ning — e começaram a espancá-los sem piedade.
O lamento era constante por um tempo, e todos ficaram atônitos diante daquele grupo de jovens desconhecidos e ameaçadores.
Os homens do Templo Dali ficaram um pouco nervosos no início, mas, ao verem que aqueles jovens obviamente estavam mirando apenas os guardas pessoais do Rei Ning e começaram a espancá-los, logo se tranquilizaram. De quem são esses criados para terem tanta coragem?
Depois de espancarem os guardas pessoais do Rei Ning, os jovens não hesitaram. Pegaram seus bastões grossos de madeira e saíram apressadamente. Se não fossem os gritos dos homens de Ning ainda rolando no chão, quase se pensaria que tudo aquilo não passava de uma ilusão.
— Eu acho... — disse um oficial do Templo Dali — devemos chamar um médico primeiro?
O que essas pessoas pensam que são os calabouços do Templo Dali? Como puderam entrar e sair com tamanha pressa, sem que ninguém do templo tivesse dado permissão? Pensando nisso, o oficial lançou um olhar para o Marquês de Cheng An, que permanecia em silêncio ao seu lado, e sabiamente escolheu não dizer mais nada.
No fim, o Rei Ning não conseguiu levar a criada. Duas horas depois de retornar à Mansão do Rei Ning, ele recebeu um decreto imperial vindo do palácio.
Seu título foi rebaixado. De príncipe, passou a ser apenas rei de condado.
Como segundo filho do imperador, ser reduzido a um simples rei de condado era um golpe vergonhoso. Como poderia manter sua posição na capital daqui em diante? Ao imaginar os olhares zombeteiros dos outros — especialmente do altivo príncipe herdeiro —, Jiang Luo sentiu a cabeça prestes a explodir.
Ele destruiu toda a roupa de cama do quarto e mandou arrastar os criados para serem espancados. Mas nem isso foi suficiente. Havia um fogo ardendo em seu peito, uma raiva que precisava de uma saída.
Foi então que notou uma criada tremendo num canto. Ele a puxou para a cama e despejou nela toda a fúria e brutalidade que lhe corroía o coração.
— Princesa... — o mordomo da Mansão do Rei Ning aproximou-se de Xie Wanyu — Uma criada caiu e morreu no pátio do príncipe. Agora é necessário transferir outras para cuidar das tarefas.
— Caiu e morreu? — Xie Wanyu pareceu ouvir a piada mais absurda do mundo. — Existe algum penhasco ou armadilha secreta no pátio para alguém cair e morrer?
O mordomo baixou a cabeça, sem coragem para responder.
— Chega — Xie Wanyu riu com desdém —. Já entendi. Cuide dos assuntos do palácio e não me venha com relatórios.
O mordomo riu secamente e se retirou.
A relação entre o príncipe e a princesa era péssima, e os criados eram os que mais sofriam com isso. Nenhum dos dois era uma pessoa fácil, e tampouco alguém que se podia ofender. O que os criados podiam fazer era apenas improvisar entre um lado e outro, tentando sobreviver em meio ao caos.
Ao pensar na pobre criada morta, o mordomo estremeceu. O temperamento do príncipe está cada vez mais violento. Parece uma pessoa completamente diferente.
Embora o príncipe sempre tenha sido impulsivo, antes ele era apenas simplório e agia sem muita cautela. Agora, parecia um lunático tirano, que via todas as pessoas ao seu redor como meros insetos.
— Meu senhor — disse um eunuco, servindo uma xícara de chá a Jiang Luo —, acalme sua raiva. Embora o título tenha sido rebaixado temporariamente, o senhor ainda mantém boa relação com o comandante do gabinete de infantaria. Isso é algo que o príncipe herdeiro não tem.
— O comandante do gabinete de infantaria... — Jiang Luo repetiu.
Apesar do nome não soar imponente, o gabinete de infantaria controlava metade das forças militares da capital. Os guardas imperiais protegiam o imperador de perto, mas seu número era, afinal, limitado.
Jiang Luo virou-se repentinamente para o eunuco:
— Diga-me, Rong Xia é filho bastardo do meu pai?
— Meu senhor, o senhor está colocando este servo em situação difícil. Como este servo poderia ver com os próprios olhos o imperador e o Marquês de Cheng An? — A voz do eunuco soava levemente aguda, o que fez Jiang Luo franzir a testa com irritação.
— No entanto, embora eu nunca tenha visto nada pessoalmente, é inegável que Sua Majestade trata Rong Xia muito bem. Não é de se estranhar que haja tantos rumores entre os nobres da capital.
— Na minha opinião, isso não é apenas um rumor — Jiang Luo murmurou.
Se fosse apenas boato, por que o imperador rebaixaria meu título por causa de Rong Xia? Por que não investigou quem eram os homens que invadiram o Templo Dali?
— Já que foram tão cruéis comigo, não me culpem por não ser justo com eles.
Ao longo dos séculos, quantos imperadores não tingiram as mãos de sangue em busca do trono?
Meu irmão mais velho é um covarde, e o imperador está debilitado... por que eu não poderia ser o senhor deste mundo?
Enquanto isso, Ban Hua continuava andando em seu sonho. Caminhou por tanto tempo, que finalmente viu a palavra “Capital” no portão de uma cidade à sua frente.
Seus pés, antes pesados, tornaram-se leves — tão leves que parecia que poderia voar.
Mas, justamente quando estava prestes a entrar pelo portão, uma mão agarrou a sua.
117
Ban Hua virou a cabeça de repente e viu um homem vestindo roupas negras. Ele usava uma coroa de nove contas com dragões sobre a cabeça e um pingente de dragão na cintura. Suas sobrancelhas arqueadas pareciam voar, e seus olhos brilhantes se alinhavam perfeitamente com o nariz reto. Era um rosto que ela conhecia muito bem.
Ela havia dividido a cama com ele, sussurrado palavras íntimas e prolongadas. Era o homem mais próximo dela, depois de seu pai e irmão mais novo.
— Rong Xia...
A capital desapareceu atrás dela, o cemitério aterrador sumiu sem deixar rastro, e o mundo inteiro se tornou um vasto branco. Só restavam ela e Rong Xia, de roupas negras.
— Huahua? — Rong Xia ouviu Ban Hua chamando seu nome enquanto ainda estava inconsciente e se lançou ao lado da cama, agarrando a mão dela. — Huahua?
Ban Hua abriu os olhos lentamente, encarando com perplexidade o homem à sua frente:
— Rong... Xia?
— Sou eu — Rong Xia viu que sua expressão estava estranha e pensou que ela ainda se sentia mal após acordar. Virou-se rapidamente e ordenou:
— Venham aqui! Chamem o médico imperial, rápido!
Ele usava uma túnica de brocado clara e não portava pingentes de jade. Seu semblante era um pouco abatido, completamente diferente da figura imponente que Ban Hua vira há pouco.
— Não tenha medo. O médico imperial disse que seu corpo não tem grandes problemas, só precisa de um tempo para se recuperar — Rong Xia tocou sua testa —. Como está se sentindo? Sente algum desconforto?
— Estou com sede... — Assim que abriu a boca, Ban Hua percebeu que sua voz estava áspera e desagradável. Arregalou os olhos em pânico. O que está acontecendo?
— Não se preocupe, o médico imperial disse que sua garganta foi afetada, mas ficará bem em alguns dias — Rong Xia beijou sua testa, enquanto uma criada trazia uma sopa morna.
O corpo de Ban Hua estava incrivelmente fraco. Sua cabeça doía, girava, como se algo puxasse de dentro de sua mente.
Depois que Rong Xia lhe deu algumas colheradas da sopa, tirou a tigela. Ban Hua o encarou, incrédula. Quanto tempo estive desacordada para que Rong Xia não me deixasse comer?
O olhar magoado dela o deixou angustiado e sem saber o que fazer.
— O médico disse que, ao acordar, você não pode comer muito. Seu estômago ainda está fraco, não pode ser sobrecarregado — ele explicou com paciência —. Daqui a dois quartos de hora, eu te dou mais.
Vendo a determinação no rosto de Rong Xia, Ban Hua soube que não adiantaria discutir. Enfiou o rosto no cobertor e ficou em silêncio.
O quarto estava muito quieto. Se não tivesse certeza de que Rong Xia ainda estava ali, teria pensado que estava sozinha.
— Huahua, ainda bem que você está bem.
Depois de muito tempo, ela ouviu Rong Xia dizer isso.
Ban Hua ergueu a cabeça devagar, vendo que ele sorria de um jeito tão gentil que era impossível descrever com palavras. Seu coração tremeu levemente. Ela apertou o lençol debaixo do cobertor, abriu a boca e disse:
— Eu não teria um acidente tão facilmente assim.
— É... — Rong Xia virou o rosto rapidamente e só depois de um tempo se virou de novo —. Estou muito feliz.
Ban Hua viu um brilho d’água nos olhos dele. Ele... chorou?
— Você... — Ela tossiu duas vezes. Rong Xia lhe deu um copo com água morna e salgada para enxaguar a boca. Mesmo com a voz rouca e feia, ela perguntou:
— Tem criadas aqui. Por que você mesmo está fazendo tudo isso?
— Não tem problema — Rong Xia limpou os cantos da boca dela com um lenço.
Só quando viu Huahua abrir os olhos, falar, beber água, seu coração finalmente se acalmou.
Ele sempre planejou tudo com precisão. Cada palavra, cada ação, sempre calculada. O único acidente em sua vida foi ter se casado com a mulher diante dele. E ele não era alguém que se punia nem se forçava a desistir de algo bom.
Estava feliz por ter se casado com ela.
Nessa jornada rumo à glória, queria alguém ao lado para compartilhar os méritos, os benefícios e as paisagens conquistadas. Se ele obtivesse tudo no mundo, mas não tivesse com quem dividir a felicidade, que sentido haveria em tudo?
— Rong Xia — Ban Hua acabara de acordar, estava de mau humor e ainda sonolenta. Com a cabeça girando, disse com voz preguiçosa —, alguns dias atrás mandei o ateliê fazer umas roupas novas. Quando eu melhorar, você veste pra eu ver.
— Claro — Rong Xia a cobriu cuidadosamente com o cobertor —. Quando você estiver bem, pode me mandar vestir o que quiser. Se quiser que eu não vista nada, também aceito.
— Sem vergonha — murmurou Ban Hua antes de adormecer novamente.
Rong Xia riu baixinho, roubou um beijo no canto de sua boca, levantou-se e foi até a porta. Disse à criada que esperava do lado de fora:
— Cuidem bem da princesa. Eu vou sair por um momento e já volto.
— Sim — as criadas se curvaram, o rosto corado, sem ousar encarar diretamente o rosto do Marquês.
Mesmo estando do lado de fora, haviam escutado sem querer algumas palavras trocadas entre ele e a princesa.
Rong Xia saiu do pátio principal e disse ao criado que estava na entrada:
— Vá chamar o Sr. Wang Qu à biblioteca.
— Sim! — O criado correu imediatamente.
Du Jiu, que havia acabado de chegar às pressas, viu a cena com expressão grave:
— Senhor Hou, o que Wang Qu fez?
Ele conhecia o Marquês há anos. Quando a expressão de Rong Xia estava calma demais, era sinal de que já havia tomado uma decisão.
Desde que ele e a Princesa Fule marcaram a data do casamento, o Marquês passou a confiar menos em Wang Qu. Raramente o deixava entrar na biblioteca. Agora, de repente, o mandava chamar... Du Jiu não acreditava que fosse por coisa boa.
Rong Xia não respondeu, apenas se virou e caminhou até a biblioteca. Du Jiu hesitou por um momento, depois o seguiu.
Fazia um pouco de frio na Mansão do Marquês naquele início de primavera. Wang Qu chegou à porta da biblioteca, viu que estava entreaberta e fez uma reverência:
— Este subordinado, Wang Qu, pede para ser recebido.
A porta se abriu por completo. Quem a puxou foi Du Jiu.
Wang Qu lançou-lhe um olhar. Du Jiu, com expressão impassível, afastou-se em silêncio.
O coração de Wang Qu bateu mais forte. A palma de sua mão ficou gelada.
— Senhor Hou. — Ele caminhou obedientemente até o centro do cômodo e fez uma reverência com as mãos para Rong Xia.
Rong Xia ergueu as pálpebras para encará-lo e só depois de um longo silêncio abriu a boca para perdoá-lo:
— Há quanto tempo você está comigo?
— Respondendo ao Senhor Hou, já se passaram seis anos desde que este subordinado foi agraciado por vossa senhoria, quando ainda estava na pior. Este subordinado está disposto a morrer pelo Senhor Hou, sem arrependimentos. — O coração de Wang Qu se acalmou um pouco. — Só não sei por que o Senhor Hou parece não querer mais reutilizar este subordinado ultimamente.
O tom de Rong Xia estava tão frio que não continha um pingo de calor:
— Você interceptou as informações da Mansão do Príncipe Ning?
Desde o último atentado com assassinos, ele havia intensificado a vigilância sobre a Mansão do Príncipe Ning. Desta vez, o Príncipe Ning mandara a criada envenenar Huahua — aquilo não era um movimento pequeno. Mas Rong Xia não recebeu qualquer aviso antecipado, o que só podia significar que havia algo errado com seus subordinados.
O rosto de Wang Qu empalideceu de forma drástica. Ele hesitou por um instante, depois ergueu a túnica e se ajoelhou diante de Rong Xia:
— Senhor Hou, este subordinado sabe que seu crime é imperdoável, mas antes que vossa senhoria o castigue, peço apenas uma coisa... em consideração aos anos de lealdade entre senhor e servo, por favor, permita que este subordinado termine de falar.
— Já que sabe que é servo, como ousa agir por conta própria? — Du Jiu não esperava que aquilo estivesse relacionado a Wang Qu, e não conseguiu conter a raiva —. O que você fez não é diferente de trair seu mestre!
— Tudo que fiz foi pelo mestre, pelo domínio do mestre sobre o mundo. — Apesar de ajoelhado, Wang Qu manteve as costas retas, sem demonstrar arrependimento —. A senhorita Fule não é digna de ser a dona desta casa. O Senhor Hou foi enfeitiçado pela beleza dela.
— Du Jiu — Rong Xia fechou os olhos —, leve-o.
— Mesmo que o mestre deseje minha morte, eu ainda preciso dizer — Wang Qu encostou a testa no chão —, Ban Shi tem o rosto de uma feiticeira destruidora de impérios. Mestre, não se deixe enganar. Pense em quanto esforço você dedicou a este mundo corrompido. Como pode destruir tudo isso por causa de uma mulher?
Rong Xia abriu os olhos.
— Wang Qu, você sabe que tipo de pessoa eu mais detesto?
— Autoconfiante, presunçoso... este subordinado não é digno de tal julgamento — respondeu Wang Qu, tenso.
Rong Xia abaixou os olhos.
— Em consideração à nossa relação de mestre e servo, não tirarei sua vida. Até designarei duas pessoas para cuidar de você.
O rosto de Wang Qu ficou lívido. Ele conhecia bem os métodos do mestre quando enfurecido.
— Mestre, este subordinado só deseja morrer.
Rong Xia o ignorou. Dois criados com roupas comuns entraram e arrastaram Wang Qu para fora.
Um dia depois, espalhou-se que o Qingke* Wang Qu, criado pela Mansão do Marquês de Cheng’an, havia bebido demais. As velas do cômodo queimaram até causar um incêndio, e ele sofreu queimaduras graves no rosto, ficando irreconhecível. Também perdeu parte da visão. No entanto, o bondoso Marquês de Cheng’an, mesmo assim, não apenas não o abandonou, como também providenciou um pequeno pátio para que se recuperasse.
* Qingke (青客) refere-se a um tipo de cliente residente ou assessor erudito nas casas das famílias nobres na China antiga. Normalmente eram estudiosos ou indivíduos talentosos que, sem status oficial, viviam sob o patrocínio de nobres, oferecendo conselhos, serviços administrativos, literários ou intelectuais.
Ao ouvirem isso, os demais Qingke de outras residências não conseguiram deixar de exclamar como o Marquês de Cheng’an era generoso, disposto a sustentar um inválido para o resto da vida.
Ban Hua ouviu a notícia no dia seguinte, enquanto tomava algumas colheradas de sopa de legumes dadas por Ruyi.
— Esse Wang Qu é o Qingke de quem você estava falando?
— É ele mesmo — respondeu Ruyi. Com medo de que a princesa ficasse entediada, vinha trazendo notícias externas para entretê-la sempre que podia. — Ouvi dizer que esse senhor Wang era muito querido por Lorde Hou. Apesar de não gostar de garotas, ele bebia um pouco de vinho de vez em quando... mas quem diria que isso causaria uma tragédia tão grande.
Ban Hua tossiu algumas vezes e levou a mão à garganta dolorida:
— Provavelmente foi azar.
— Isso não é azar. Se fosse azar, ele não teria conhecido um mestre tão bom quanto o Senhor Hou. Isso não é azar. Se fosse, algo assim não teria acontecido — Ruyi disse, colocando a tigela de lado. — O Senhor Hou saiu de casa antes mesmo do amanhecer hoje. Parece que está investigando o caso do envenenamento em seu nome, minha senhora.
Ao dizer isso, Ruyi aproveitou para tecer alguns elogios a Rong Xia, pois vira com seus próprios olhos o quanto o Marquês de Cheng’an se dedicava à sua senhora.
— Depois que você caiu em coma, o Senhor Hou mal descansou. Ele não mostrou muito por fora, mas nesses dois dias em que você esteve desacordada, esse servo sentia como se os olhos dele fossem bolas de gelo, gelando até a alma.
Ban Hua sorriu:
— Vocês não viviam dizendo que ele era um cavalheiro? Como então os olhos dele podem ser tão assustadores?
— Este servo não sabe responder — Ruyi riu baixinho —, mas se puder arriscar um palpite... talvez seja porque o Senhor Hou se importa demais com você.
— Escolha palavras mais agradáveis — Ban Hua fechou os olhos, o rosto calmo e tranquilo —. Vou dormir um pouco.
— Sim.
Ruyi se levantou, baixou a cortina de gaze ao redor da cama e saiu discretamente para o cômodo externo.
Rong Xia foi até o palácio, mas quem o recebeu não foi o imperador Yunqing, e sim o príncipe herdeiro de Jianguo.
— Senhor Hou, será que há algum mal-entendido nesse assunto? Como o segundo irmão poderia fazer algo assim? — Depois de ler a confissão da criada Xiaoyu, o príncipe estava atônito. — Isso...
Shi Shi, que estava sentada ao lado do príncipe, não disse nada. Mas, em sua opinião, o Príncipe Ning era perfeitamente capaz de fazer qualquer coisa. Que tipo de pessoa seria capaz de enviar tropas para reprimir vítimas inocentes de uma catástrofe? Mesmo que o Príncipe Ning não fosse o culpado neste caso, ele ainda deveria ser punido. Sob os joelhos do imperador, havia apenas dois filhos. Se o Príncipe Ning fosse esmagado, ninguém mais ameaçaria a posição do príncipe herdeiro.
Mas ela não podia dizer isso, pois já era casada com o príncipe há tantos anos e sabia que ele era uma pessoa de coração mole, muito tolerante com o Rei Ning, seu irmão mais novo. Se ele soubesse o que ela pensava, certamente ficaria zangado.
Pensando nisso, ela olhou para o Marquês de Cheng’an, esperando que sua atitude fosse mais firme.
— Alteza, eu sou ainda mais relutante que Vossa Alteza em acreditar nisso. Penso que, embora o Rei Ning e a princesa tenham alguns desentendimentos ocasionais, ainda são primos. Mesmo que haja um grande conflito, não chegaria a ponto de matar alguém. — Ao ver a hesitação do príncipe, o tom de Rong Xia permaneceu inalterado. — A princesa é inocente e meiga, e eu realmente não entendo que tipo de ódio o Rei Ning poderia ter para mandar uma criada envenená-la.
O príncipe ficou sem palavras. De um lado, estava seu irmão mais novo; do outro, sua prima favorita. A palma e o dorso da mão são ambos carne.[¹] Suspirava repetidamente, sem coragem para encarar Rong Xia.
[¹] Expressão chinesa usada para descrever um dilema onde ambos os lados são igualmente preciosos ou difíceis de sacrificar.
“Inocente e meiga”?
A princesa consorte zombou em silêncio. O Marquês de Cheng’an ainda tinha coragem de dizer isso? O que Ban Hua tinha de inocente e delicada? Na visão dela, era óbvio que a moça era arrogante e descontrolada.
O príncipe herdeiro colocou a confissão de lado.
— A moça Hua está bem agora?
— Embora a vida dela tenha sido salva, o corpo ainda precisa de cuidados por um tempo. O médico imperial disse que ela não poderá ter filhos por dois anos — Rong Xia abaixou os olhos. — Eu não me importo com filhos, mas a saúde da princesa foi danificada. Pensar que alguém cometeu um crime tão grave contra ela me deixa desconfortável.
— Eu sei... — suspirou o príncipe. — Eu... eu sei...
O príncipe não acreditava nessa história de que Rong Xia não se importava com ter descendentes. Ele mesmo estava casado com a princesa consorte há anos e só tinha uma filha, nascida de uma concubina. Por isso, inúmeros ministros já o pressionavam para tomar mais concubinas. Agora, mesmo que não fosse por desejo pessoal, ao menos um filho a mais garantiria mais apoio dos cortesãos.
Pensando nisso, sentiu-se ainda mais culpado.
— Senhor Hou, deixe que eu pense sobre o assunto. Certamente lhe darei uma resposta.
— Alteza, não preciso que Vossa Alteza me dê uma resposta. Só preciso que o Rei Ning dê uma explicação à princesa — a atitude de Rong Xia permanecia inabalável. — Se Vossa Alteza não puder fazer isso, terei que procurar Sua Majestade.
— Senhor Hou, por que levar isso tão longe...?
— Alteza — a princesa consorte, vendo o semblante do Marquês de Cheng’an cada vez mais frio, percebeu que, se o príncipe insistisse, acabaria apenas irritando-o mais, então o interrompeu —, este assunto é sério. Acho que deveríamos relatá-lo a Sua Majestade.
— Isto é um assunto entre mim e meu segundo irmão, não precisa dizer mais nada — retrucou o príncipe, com o rosto carregado.
A expressão da princesa consorte mudou ligeiramente, mas mesmo assim voltou a falar:
— Alteza, Vossa Alteza é o príncipe herdeiro do reino, e o Rei Ning é um príncipe. O que o Rei Ning fez já não é mais um assunto particular, mas sim um caso grave que envolve a corte.
Um príncipe nobre mandou envenenar uma princesa, e quando seus subordinados foram capturados, ainda tentou invadir o cárcere para resgatar a criminosa. Se ao menos tivesse conseguido calar a criada... mas nem isso. Foi desmascarado publicamente. Esse tipo de atitude vergonhosa e desonrada... pessoas normais não seriam capazes de fazer algo assim.
Se o príncipe herdeiro ainda insistisse em proteger o Rei Ning, não apenas o Marquês de Cheng’an se sentiria decepcionado, como também todos os ministros da corte.
Como herdeiro, se ele não soubesse distinguir o público do privado, como poderia passar confiança aos cortesãos? Se ela mesma fosse ministra e não princesa consorte, também se sentiria desiludida com esse tipo de príncipe.
Ao ouvir isso, o príncipe ficou de rosto sombrio, mas não respondeu. Devolveu a confissão a Rong Xia.
— Senhor Hou, você... ah.
Rong Xia lançou um olhar ao príncipe, pegou a confissão de volta e a guardou no peito.
— Este ministro se despede.
— Senhor Rong — o príncipe o deteve ao vê-lo chegar à porta. — Peço que poupe um pouco da reputação do Rei Ning.
[2] Literalmente, o príncipe pede a Rong Xia que “salve a face” de seu irmão mais novo, ou seja, que preserve a honra pública dele diante da corte e da população.
Rong Xia olhou para ele com uma expressão difícil de decifrar.
— Alteza, o que o Rei Ning queria... era a vida da minha esposa.
Depois de dizer isso, saiu do Palácio Leste com passos firmes, sem se virar. Sua atitude era clara: não voltaria atrás.
A princesa consorte sentiu um calafrio no coração e sorriu amargamente. O príncipe finalmente havia perdido o apoio do Marquês de Cheng’an. Ela se levantou, olhou para o príncipe ainda atônito, fez uma reverência silenciosa e saiu.
Ele era um bom homem, de coração suave. E ela era uma mulher que valorizava interesses. Não conseguia entender a bondade do príncipe, assim como o príncipe passava a desprezar cada vez mais sua sede por poder.
Não sei qual de nós está errado.
— Majestade — Wang De entrou no salão interno com passos leves —, o Marquês de Cheng’an pede audiência.
O imperador Yun Qing, reclinado no divã imperial, abriu os olhos. Acenou para dispensar a criada que massageava suas pernas e disse com voz fraca e sonolenta:
— Ele veio pelo caso do envenenamento da moça Hua?
Wang De curvou ainda mais a cabeça:
— Não sei.
O imperador Yun Qing olhou para suas panturrilhas murchas e finas.
— Que entre.
Wang De saiu do salão e fez uma reverência para Rong Xia, que esperava do lado de fora.
— Senhor Hou, Sua Majestade o convida a entrar.
Rong Xia entrou, com Wang De seguindo atrás com reverência. Depois de alguns passos, Wang De virou-se para trás e viu Shi Jin patrulhando com os guardas imperiais fora do Palácio da Lua. Parou, virou-se e fez uma saudação a Shi Jin.
Shi Jin retribuiu o gesto.
— Vice-comandante — comentou meio em tom de brincadeira, meio sério, um dos líderes de esquadrão que o acompanhava —, esse Wang De olha pro Marquês de Cheng’an como se ele fosse o próprio céu. Isso é bem raro.
Ele quase disse que talvez o Marquês fosse filho ilegítimo de Sua Majestade, mas não ousou pronunciar tal coisa dentro do Palácio da Lua.
Shi Jin nunca acreditou nesse boato e respondeu diretamente:
— Não fale besteira.
Se Rong Xia fosse mesmo filho ilegítimo de Sua Majestade, como a imperatriz deixaria que sua própria família tomasse conta dele? Neste mundo, existe alguma mulher que cuide sinceramente dos filhos que seu marido teve com outra?
— Jun Po, eu entendo os seus sentimentos. Mas a família imperial não pode permitir que coisas tão embaraçosas venham à tona — disse o Imperador Yun Qing, olhando para Rong Xia. — Compensarei você e a menina Hua. Também lidarei com o segundo filho. Mas este assunto não deve ser levado adiante.
Rong Xia ajoelhou-se diante do imperador:
— Vossa Majestade, a princesa quase morreu por causa deste incidente.
— Eu sei — o imperador jogou a confissão no braseiro. — Mas, nesse caso, não posso fazer justiça a vocês dois.
— Eu entendo — Rong Xia encostou a testa no chão em reverência. Ao erguer os olhos, fitou o rosto cansado e envelhecido de Sua Majestade. — Fiz Vossa Majestade se preocupar. Peço que cuide bem do corpo do dragão.
— Entendi — respondeu o imperador com um leve aceno de cabeça. — Pode se retirar.
Rong Xia se levantou e saiu do salão em passos firmes e calmos.
O imperador Yun Qing lançou um olhar para a confissão, agora reduzida a cinzas no braseiro, e disse a Wang De:
— Há muitos jovens talentosos na corte, mas Rong Xia é o mais adequado para mim.
Saber o que fazer, saber o que não fazer, e saber quando não fazer nada. Essas atitudes parecem simples, mas, na prática, são das mais difíceis de executar.
Olhando para o braseiro onde restavam apenas cinzas, Wang De sorriu:
— Vossa Majestade está certo.
Na mansão do Príncipe Ning, Xie Wanyu girava em mãos a caixinha de rouge já pela metade, depois a entregou à criada de enxoval que estava atrás dela.
— Não gosto mais desse rouge. Vamos usá-lo todo esta noite.
A mão da criada que segurava a caixa tremeu ligeiramente:
— A criada acha que esta caixa já não parece tão boa...
— Então queime — disse Xie Wanyu, com indiferença. — Queime, e tudo estará limpo e terminado.
Ela se levantou, abriu a janela e olhou o céu azul ensolarado.
— Ouvi dizer que Ban Hua acordou?
— Sim, princesa.
— Heh — Xie Wanyu soltou um risinho de desdém. — Praga vive mil anos. Mesmo com sorte, ela não morreria tão fácil.
Praga vive mil anos: Provérbio chinês que indica que pessoas más ou incômodas parecem sempre escapar da morte e viver por muito tempo.
— Enfim, isso não tem mais nada a ver comigo — ela se virou e olhou para a criada com o rouge. — Pode ir.
A criada fez uma reverência e saiu às pressas.
Do lado de fora do Palácio Imperial de Daye, Rong Xia cavalgava pelas ruas. Ao passar por uma barraca de doces artesanais, lembrou-se de que Ban Hua gostava dessas bobagens. Embora achasse infantil, o pensamento dela o enterneceu.
— Du Jiu, vá buscar alguns artesãos populares habilidosos e traga-os à mansão do marquês. Deixe que distraiam a princesa.
Naquela tarde, quando Ban Hua acordou novamente, encontrou sua mesa coberta de objetos variados.
Ela olhou desconfiada para Rong Xia:
— Você comprou tudo da loja?
— Não comprei. Convidei o dono da loja — respondeu Rong Xia, sorrindo enquanto a alimentava com caldo de legumes. Agora Ban Hua já podia tomar sopa com um pouco de carne moída, mas ainda não podia comer demais. Rong Xia era muito rigoroso quanto à alimentação. Por mais manhosa que Ban Hua fosse, não adiantava discutir. — Pedi que façam o que você quiser.
— Eu gosto de comer naquele restaurante de macarrão a que você me levou da última vez.
— Em alguns dias, ele fará para você.
— Quantos dias?
— Dois ou três.
Ban Hua fez uma careta:
— Isso dá pelo menos vinte ou trinta horas!
— Quando estiver curada, eu como com você o que quiser, minha flor — disse Rong Xia, alimentando-a com mais uma colher de sopa de carne e legumes. Em seguida, bebeu o restante da tigela de uma vez, diante dela, o que a irritou e a fez lhe dar um soco.
— Já tem força até pra me bater... parece que amanhã já pode comer um pouco de macarrão com legumes — disse Rong Xia, rindo. Abraçou Ban Hua e acrescentou: — Não se mexa muito, ou a cabeça vai doer de novo.
O médico imperial dissera que era normal ter tontura e dor de cabeça após ingerir aconitum. Nos livros médicos, constava que quem tomasse essa substância por engano poderia sobreviver, mas com risco de enlouquecer. Felizmente, Huahua vomitou o remédio a tempo. Fora o sangue perdido e a debilidade, o único efeito restante era a impossibilidade temporária de ter filhos.
Depois de deixar Ban Hua contente, Rong Xia recebeu uma carta secreta.
— Mestre, devemos informar a Sua Majestade?
Com um leve sorriso, Rong Xia lançou a carta numa bacia de cobre e acendeu o fogo, observando-a queimar pouco a pouco.
— Que relatório? — perguntou a Du Jiu, erguendo o olhar. — Eu não sei de nada.
Du Jiu se curvou:
— Este subordinado também não sabe de nada.
Na hora de Zishi (23h–1h) do início da primavera, o frio parecia inverno. O som do vento fora da janela despertou o imperador Yun Qing.
Ele olhou para as sombras do lado de fora e chamou:
— Tem alguém aí?
O salão amplo permaneceu em silêncio. Esperou um pouco, mas ninguém entrou.
— Tem alguém aí! — repetiu, com a voz mais forte.
Rang.
Ouviu o som da porta sendo aberta pelo vento, mas como sua visão estava obstruída pelas cortinas pesadas, não sabia quem havia entrado.
O vento atravessava a porta do salão, fazendo as cortinas balançarem. De repente, o imperador sentiu um medo instintivo e recuou para trás da cama, agarrando o edredom.
— Quem está aí?!
Tac, tac, tac.
O som dos passos era pesado. Não pareciam os passos leves das criadas ou eunucos com sapatos de sola macia.
Quem está lá fora?
O imperador arregalou os olhos, observando a última cortina ser levantada. E então... a lâmina afiada nas mãos da figura à frente brilhou com um frio cintilante.
118
— Pai... por que esqueceu que seu filho já não é mais príncipe, mas sim um rei de condado? — Jiang Luo encostou a espada no pescoço do Imperador Yunqing. Mesmo sendo filho, liderava tropas dentro do palácio para matar o próprio pai. Não sentia qualquer peso psicológico por cometer um ato que seria condenado por milênios. Na verdade, havia um sorriso enlouquecido em seu rosto.
— Seu bastardo, você quer matar seu próprio pai?! — o imperador arfava, olhando seu filho enlouquecido com os olhos arregalados. — Está louco?!
— Já enlouqueci há muito tempo. Enlouqueci quando você favoreceu o príncipe e deu a ele todas as coisas boas — o sorriso distorcido de Jiang Luo se transformou em um ressentimento sem fim. — Eu e o príncipe somos irmãos... desde pequenos, tudo de bom era pra ele. Você alguma vez pensou que eu também sou seu filho?!
O Imperador Yunqing o encarava, sem ousar dizer nada.
— Tudo bem, isso foi na infância. Depois, quando o príncipe se casou, você fez com que ele se unisse à famosa e virtuosa família Shi. E eu? — Jiang Luo rosnou, tomado de inveja. — A família Xie é tão desprezível que não se sustenta diante dos outros, e mesmo assim você me obrigou a me casar com ela. Mesmo sem querer, fui forçado. E, pouco antes do casamento, você ainda mandou rebaixar o cargo de Xie Dalang. Estava tão ansioso pra que o mundo inteiro soubesse que seu segundo filho é uma piada, não é? Pra você, eu sequer existo.
O Imperador Yunqing não imaginava que seu segundo filho guardava tantas mágoas. Durante anos, ele escolheu criar apenas o príncipe e manter distância dos demais filhos ilegítimos, esperando que isso os desmotivasse de disputar o trono e evitasse repetir o trágico caminho dele com o antigo imperador. Achava que isso evitaria as dores do passado... mas não previa que criaria um inimigo tão perigoso.
— Se você desistir agora, seu pai não irá responsabilizá-lo.
— Não vai me responsabilizar? Ha! — Jiang Luo soltou uma risada sarcástica. — Acha que ainda sou uma criança de dez anos atrás, que acreditava em tudo o que você dizia?!
Ele gostava de pequenos brinquedos de países vizinhos, e o pai havia prometido dar a ele. Mas porque o príncipe fez uma boa lição de casa e olhou duas vezes para os brinquedos, eles acabaram nas mãos dele. Mais tarde, o príncipe, fingindo generosidade, enviou os brinquedos para ele. Jiang Luo ficou tão furioso que os quebrou — e acabou sendo repreendido pelo pai. Tantas e tantas pequenas mágoas que ele nem queria lembrar mais.
— Chega de conversa. Quero que escreva agora o decreto de abdicação — Jiang Luo pressionou a espada, abrindo um ferimento longo e vermelho no pescoço do imperador. Vendo o sangue, em vez de se arrepender, seus olhos até brilharam. — Se não quiser escrever, não tem problema. O príncipe está em minhas mãos. Se eu perder a paciência, mando que ele vá te esperar no inferno. Assim vocês andam juntinhos e não ficam sozinhos.
— Jiang Luo, eu sou seu pai, e o príncipe é seu irmão mais velho! — o imperador já não ousava se mover. Percebia que Jiang Luo não blefava. Ele realmente os mataria.
— De que adianta pai e irmão, se não tiver poder? — Jiang Luo zombou. — Quando era pequeno, eu admirava você. Mas quando foi que você se lembrou de mim? Agora vem falar dessas relações de sangue como se fossem importantes... já não me importam mais.
— Chega de palavras — Jiang Luo puxou o imperador da cama, e ordenou a dois jovens eunucos que o ajudassem a sentar-se diante da mesa imperial. — Escreva.
— Bastardo! — o imperador estava só com roupas de baixo, tremendo de frio. Seus olhos percorreram os dois jovens eunucos, que se ajoelharam de medo.
— Pai... em pleno momento como esse, ainda tenta fazer pose diante de dois eunucos? — Jiang Luo enfiou o pincel imperial na mão do imperador. — Rápido, escreva. Se não tiver escrito até o incenso se apagar, mandarei cortar um dedo do príncipe.
— Jiang Luo... eu posso até escrever o decreto de abdicação, mas é preciso publicá-lo ao mesmo tempo, na presença dos seis ministros, e anunciar ao mundo — disse o imperador, encarando-o. — O que você quer que eu escreva agora... de que vai servir?
— Quem decide se serve ou não... sou eu, não você — Jiang Luo riu, zombando do tom teimoso do pai. — Parece que o príncipe não ocupa lugar algum em seu coração. O que você mais ama, afinal, não é o príncipe... é o trono.
— Cale a boca — rugiu o imperador, fitando Jiang Luo com fúria.
— Agora sou eu quem segura a faca, e você é o peixe prestes a ser cortado. Pai, é melhor ser dócil com seus súditos — Jiang Luo caminhou até a lateral da cama imperial e tirou debaixo do travesseiro um pequeno sachê. — Pai, você o escondia como se fosse um tesouro... Que sorte que Ban Hua é sua sobrinha. Caso contrário, eu suspeitaria de segundas intenções.
— Bastardo, como pode dizer tais absurdos?! — o rosto do imperador ficou vermelho de fúria ao ver o sachê nas mãos de Jiang Luo. Mas não ousou se levantar — dois guardas armados estavam ao seu lado, prontos para agir.
Ele sabia: para Jiang Luo agir com tanta ousadia dentro do palácio, era porque já havia tomado controle de todo o harém imperial.
— Onde está o Comandante Yang? E Shi Jin? — o imperador não conseguia acreditar que, com esses dois presentes, Jiang Luo teria conseguido tanto.
— Comandante Yang? — Jiang Luo ergueu as sobrancelhas, com um sorriso estranho. — Está falando do seu cachorro de estimação? Provavelmente já te espera no Caminho de Huangquan.*
*Nota: O "Caminho de Huangquan" é uma referência mitológica chinesa ao caminho que leva ao submundo, o equivalente ao "caminho para o além".
— Quanto a Shi Jin... — Jiang Luo bufou. — Ele não está de serviço hoje. Não sabia?
O imperador realmente não sabia. Olhou para Jiang Luo como se estivesse diante do maior erro de sua vida.
Jiang Luo não se importava com esse olhar. Vendo que o imperador ainda se recusava a escrever, virou-se:
— Tragam as coisas.
Um guarda com armadura de ferro trouxe uma bandeja coberta por brocado negro. Ninguém sabia o que havia dentro. Jiang Luo puxou o pano diante do imperador — havia três dedos ensanguentados ali.
O imperador quase vomitou, virando o rosto. Mas Jiang Luo não permitiu que ele desviasse:
— Estes são os dedos do chefe eunuco que servia ao seu lado. E os próximos... não serão dedos de eunucos.
— Jiang Luo... o que exatamente você quer?!
— Não disse já? Quero que escreva o decreto imperial de abdicação — Jiang Luo zombou. — Vai mesmo continuar perguntando ao imperador?
A mão do Imperador Yunqing, segurando o pincel, tremia tanto que logo manchou a folha do decreto com tinta.
— Pai... não trema tanto — Jiang Luo retirou a folha manchada e colocou outra à sua frente. — Com calma, escreva direitinho, para que não haja... incidentes.
O imperador levantou os olhos para o portão do salão. Do lado de fora, tudo era negro, tão silencioso quanto um túmulo.
Ele começou a escrever, palavra por palavra. Mas ao chegar ao terceiro ideograma — o de "transmitir" — sua mão parou de repente.
— Segundo filho... o que é este mundo para você?
— Claro que é poder supremo, oras — Jiang Luo respondeu com outra pergunta. — Ou acha que é o quê?
O imperador não conseguiu escrever a palavra seguinte.
— Já pensou... que pode haver um dia em que se arrependa?
— Arrependimento? — Jiang Luo riu com desdém. — Você deixou o espião envenenar o antigo genro da família De Ning, por acaso se arrependeu disso? E Cheng Âmbar... por que ele morreu pelas suas mãos?
O rosto do Imperador Yunqing mudou drasticamente. Ele perguntou com a voz rouca:
— Você... como sabe disso?
— Porque me escondi atrás do pilar do salão principal quando você ordenou a eliminação do genro de De Ning. Quanto ao Cheng Âmbar... — ele ergueu uma sobrancelha — Rong Xia não é seu filho ilegítimo? A causa da morte de Cheng Âmbar até hoje é um mistério. Ele morreu antes de receber o título, mas quando chegou a vez de Rong Xia, você não hesitou em lhe conceder o posto mesmo sem méritos visíveis. Não foi justamente pra deixar o título para ele?
— Você vive dizendo que gosta da Banhua, mas se ela souber que o avô dela foi morto por você e pelo antigo imperador, acha que ainda vai te respeitar? — Jiang Luo acendeu o pavio da vela e queimou o sachê que segurava nas mãos. — E a Princesa De Ning, será que ela ainda se orgulharia de ter arriscado a vida para te salvar, se soubesse de toda a verdade?
O rosto do imperador estava completamente pálido. Ele não conseguiu dizer uma única palavra.
— Você me chama de besta... mas na verdade, eu só estou aprendendo com você — Jiang Luo gargalhou enquanto via o sachê ser reduzido a cinzas. — Eu sou uma pequena besta. Você é uma grande besta. E o antigo imperador era uma velha besta. Nós, filhos da família Jiang, somos todos animais.
Nota: A menção a “besta” (animal) aqui se refere a um insulto grave — pessoas desprovidas de humanidade ou moral.
— O caso entre o príncipe e a concubina... também foi planejado por você?
— O quê? Só agora resolveu perguntar sobre isso? — Jiang Luo sorriu para o imperador Yunqing, com o cabelo desgrenhado e o rosto escurecido de frio. — Você realmente nunca confiou no príncipe... ou só fingia que confiava?
— Embora eu não goste desse temperamento afeminado do príncipe, ele é mais humano que você — Jiang Luo falou com orgulho. — Só é meio burro, isso sim.
O rosto do imperador empalideceu, e lágrimas turvas escorreram de seus olhos já opacos.
— Parece que o pai está desanimado... então vou mandar alguém ajudá-lo a se "despertar".
Trouxeram uma bacia de água gelada, com pedaços de gelo flutuando dentro. Jiang Luo apontou para os pés descalços do imperador:
— Vamos, sirvam Sua Majestade. Façam com que ele relaxe os pés.
Logo após a meia-noite, o grito miserável do Imperador Yunqing ecoou do Palácio da Grande Lua.
No palácio da imperatriz, ela estava confinada sob forte vigilância. Não conseguia enviar nenhuma mensagem para fora e tampouco sabia o que estava acontecendo além dos muros. Embora os soldados não a maltratassem, tratavam-na com rigidez. Não importava o que dissesse — ela não podia sair.
— Sua Majestade — disse a criada, amparando a imperatriz cambaleante —, a senhora deveria descansar um pouco.
A imperatriz balançou a cabeça, foi até a janela com expressão exausta, sem saber se esperava por reforços... ou por uma má notícia que temia ouvir.
O tempo passou, minuto a minuto. Quando o sol nasceu e os portões do salão da corte se abriram, o que os ministros viram não foi o príncipe herdeiro de Jian Guo, nem um imperador recuperado da enfermidade — mas sim o Rei Ning, vestindo uma túnica imperial.
A túnica de dragão caía perfeitamente no corpo de Jiang Luo, claramente feita sob medida. Ninguém sabia há quanto tempo havia sido preparada.
— Rei Ning, o que pretende? Vai rebelar-se?! — um ministro de espírito inflexível apontou para Jiang Luo, furioso. — Saia imediatamente desse trono!
— Insolente. A partir de hoje, eu sou o imperador de Daye — Jiang Luo ergueu o queixo. — Venham, leiam o decreto do Imperador Emérito.
— “Jiang Luo, com benevolência e justiça no coração, e talento para governar o mundo...”
Enquanto os ministros ouviam o decreto atônitos, muitos ainda se lembravam de que o próprio imperador havia rebaixado o título de Rei Ning. Como poderia, então, tê-lo nomeado como sucessor? O ministro Chao Chen não se conteve e tentou entrar no palácio para ver Sua Majestade com os próprios olhos. Mas os guardas estavam firmemente posicionados e, mal se aproximou dos portões, foi expulso.
Essa atitude apenas alimentou mais dúvidas: Terá acontecido algo dentro do palácio? Por que nem mesmo os portões podem ser cruzados? Normalmente, euncos iam e vinham com frequência para tratar de assuntos imperiais. Mas nos últimos dois dias... o palácio parecia mergulhado num silêncio total.
O Rei Ning havia tomado o controle do palácio.
Todos perceberam isso. Mas ninguém se atrevia a declarar abertamente. Por fim, os oficiais do grupo que apoiava o príncipe não conseguiram mais se calar — levantaram-se e começaram a questionar abertamente o Rei Ning. Este, que já tinha um temperamento explosivo como príncipe, agora como imperador tornou-se ainda mais implacável. Mandou prender todos os oficiais que ousaram questioná-lo.
A situação mergulhou em caos. A capital inteira estava tomada pelo medo.
No quinto dia de seu reinado, o Rei Ning apressou-se em conferir o título de Imperatriz Viúva à sua mãe e distribuir recompensas generosas às concubinas que lhe agradavam. No entanto, a Concubina Xie ainda não havia recebido o título de imperatriz. Permanecia no palácio, num estado constrangedor — nem totalmente aceita, nem descartada.
Todos os ministros que seguiram Jiang Luo foram regiamente recompensados. Quanto ao resto da corte... ninguém mais ousava abrir a boca.
Depois da cerimônia de concessões de títulos e recompensas, Jiang Luo começou a emitir decretos imperiais de punição. O primeiro nome na lista era Rong Xia, mas, devido ao prestígio elevado de Rong Xia entre os acadêmicos e a elite culta, os próprios aliados de Jiang Luo o convenceram a desistir.
No fim, ele teve que se contentar com um alvo mais fraco: emitiu três ordens seguidas para rebaixar Ban Huai.
A primeira rebaixava Ban Huai ao posto de marquês.
A segunda, ao de conde.
E a terceira cortava completamente seu título, confiscava a casa concedida pela família imperial e ainda ordenava uma devassa na propriedade.
A família Ban, próspera por séculos sob a dinastia Daye, ruiu de forma fulminante. Embora eles não morassem mais em Yurou, e por isso não tenham sido acusados formalmente de crime algum, o confisco de bens já era visto por muitos como um golpe severo e humilhante.
Alguns sentiram pena da família Ban, outros lamentaram mais por Ban Hua. Com a família materna arruinada, como ela poderia manter a cabeça erguida na casa do marido?
Contudo, o que ninguém esperava era que, no dia em que a casa dos Ban foi vasculhada, a família manteve uma calma surpreendente — como se já soubessem que aquilo iria acontecer. Os diversos servos e idosos mantidos pela família também já tinham sido pagos e discretamente encaminhados para outros lugares.
Nota: Yurou era uma das regiões de prestígio onde ficavam as propriedades nobres.
Recentemente, várias residências foram saqueadas. Comentava-se que qualquer um que tivesse ofendido Jiang Luo nos últimos anos seria punido, tivesse culpa ou não. Muitos choravam e se desesperavam. Em meio a tantos desesperados, a reação serena da família Ban parecia um sopro de dignidade.
Talvez pela crescente impopularidade de Jiang Luo, a atitude da família Ban gerou até admiração. Alguns letrados escreveram poemas exaltando a firmeza moral dos Ban e sua postura frente à tirania. Aqueles que liam os poemas os aplaudiam com fervor — esquecendo-se, talvez, de que os Ban um dia também estiveram entre os poderosos.
Nota: A frase “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” se aplica aqui — a família Ban tornou-se inimiga do tirano, e isso lhes rendeu apoio inesperado.
Depois do confisco, a família foi acolhida pelos servos da mansão do Marquês de Cheng’an. Mas, para não atrapalhar Rong Xia nem colocá-lo em situação delicada, recusaram-se a morar lá. No fim, Rong Xia mandou comprar uma casa espaçosa na capital e os instalou provisoriamente ali.
— Sogro, sogra — disse Rong Xia, olhando a nova residência com pesar —, sinto muito por tudo isso.
— Nada de formalidades entre família — respondeu Ban Huai com bom humor, tirando algumas notas de prata do cinto, que havia mandado costurar de propósito por dentro das roupas.
Ele enfiou as notas na mão de Yin sem hesitar:
— Querida, deixo isso com você, pra guardar.
Yin aceitou com naturalidade e olhou para Rong Xia:
— Agora não é conveniente irmos à mansão do Marquês, então peço que cuide bem da nossa Huahua.
— Pode ficar tranquila, sogra — disse Rong Xia, sempre respeitoso. — Prometo cuidar bem dela. Preparei alguns ingredientes leves e nutritivos; a carne pode esperar mais um pouco.
— Essa menina é enjoada desde pequena... você vai ter que ter paciência pra lidar com ela.
— Huahua é muito boa — Rong Xia sorriu. — É fácil agradá-la.
Diante da sinceridade do genro, Yin finalmente sentiu-se mais aliviada.
Depois de acomodar a família, Rong Xia voltou rapidamente para casa. Ele não sabia como contar a Ban Hua que sua casa havia sido saqueada. Temia que, com o corpo ainda frágil, ela fosse abalada demais por essa notícia.
— Você voltou? — Ban Hua estava deitada em uma chaise longue, enrolada num robe de brocado grosso, assistindo a artistas populares fazendo malabarismos. Ao ver Rong Xia, estendeu a mão para chamá-lo. O manto escorregava um pouco, revelando parte do braço quando ela se movia.
Rong Xia se aproximou e segurou sua mão, certificando-se de que não estava fria antes de perguntar:
— Beliscou algum docinho hoje?
— Acha que sou do tipo que não consegue controlar a boca? — Ban Hua virou o rosto com orgulho. — Não sou uma criança de dois ou três anos.
— Claro que não. Você é uma moça de dezessete, dezoito anos — ele sorriu e a abraçou. Levando-a de volta ao quarto, a colocou na cama com cuidado. — O que você quer comer no almoço? Vou mandar preparar.
— Hoje não estou com muito apetite. Mande fazer algo leve e refrescante. — Ela o encarou com desconfiança. — Você está escondendo alguma coisa de mim?
Aquela expressão de quem queria falar, mas não conseguia, claramente denunciava que havia algo errado.
— Huahua... — Rong Xia acariciou suavemente seu rosto — aconteceu uma coisa hoje. Mas você tem que me prometer que não vai se abalar.
— Oh? — Ban Hua arqueou as sobrancelhas. — O trono mudou de dono ou meu pai ofendeu alguém de novo?
Rong Xia: …
— Hã? — Ban Hua ficou ainda mais intrigada. — Não me diga que acertei?
Caso contrário, por que Rong Xia estaria em silêncio?
— Alguns dias atrás, o Imperador Supremo emitiu um decreto permitindo que o Rei Ning o sucedesse.
Ban Hua parou de abraçar o edredom e olhou para Rong Xia com os olhos arregalados:
— Você disse... Rei Ning?
Rong Xia assentiu em silêncio, com uma expressão serena, como se quem tivesse subido ao trono não fosse um príncipe com quem tivera conflitos, mas um estranho qualquer.
— E o príncipe herdeiro?
— Ninguém mais o viu. Shi Chonghai já foi destituído do cargo de primeiro-ministro e transferido para outro local como magistrado. Shi Jin também foi despachado para a fronteira.
— Jiang Luo enlouqueceu. Como ele pode deixar a família Shi, que apoia o príncipe, ir embora justo agora? — Mesmo que Ban Hua não fosse uma especialista em política, sabia que deixar a família Shi partir nesse momento era o mesmo que dar espaço para contra-atacar.
— Talvez o Rei Ning ache que isso humilhe ainda mais a família Shi.
— Só serve mesmo para provar o quão obtuso ele é.
— E tem mais? — perguntou ela.
Rong Xia ficou em silêncio por um momento antes de responder:
— Nos três dias desde que o Rei Ning ascendeu ao trono, ele emitiu três decretos imperiais denunciando seu pai. Hoje, o Palácio Jingting foi vasculhado...
— Vasculhado? — Ban Hua olhou para Rong Xia, atônita, depois assentiu devagar, como se tivesse compreendido algo. — Então era isso... isso...
Ela sempre sentira que seus sonhos estavam em desordem, sem lógica. Só agora percebia que a perda do título da família Ban não viria por um imperador rebelde e desconhecido, mas sim por alguém com quem os Ban tinham rixas antigas: Jiang Luo.
— Huahua, não fique triste. Enquanto eu estiver aqui, a casa dos Ban sempre terá um lugar seguro — Rong Xia, vendo que ela sorria e chorava ao mesmo tempo, temeu que a tristeza fosse demais para ela. — Acredite em mim. Nunca deixarei que seu pai e sua mãe sejam injustiçados.
— Eu não estou triste — Ban Hua sorriu para ele. — Eu acredito em você.
Rong Xia percebeu que ela falava a verdade. Os olhos de Ban Hua brilhavam como estrelas — havia neles um fulgor que ele não sabia definir. Aquela Huahua o deixava confuso e fascinado. Incapaz de resistir, ele a abraçou.
— Huahua, se tiver algo a dizer, diga. Não guarde para si.
— Então quero comer pés de ganso hoje. Mande alguém preparar.
— Está bem — Rong Xia respondeu prontamente, girando nos calcanhares para dar ordens aos criados que aguardavam do lado de fora.
Ban Hua se levantou da cama, foi até o armário, abriu a porta entalhada com flores duplas, se abaixou e pegou uma caixa de madeira que ficava no fundo.
— Huahua — Rong Xia se aproximou dela e a ajudou a colocar a caixa sobre a mesa. — O que tem aí dentro?
— Um conjunto de roupas — respondeu ela, acariciando com delicadeza a tampa da caixa. — Mandei fazer para você.
Ao abrir a caixa, revelou-se um suntuoso manto de brocado preto. Nuvens auspiciosas estavam bordadas em padrões escuros; cada ponto e linha exalava luxo contido.
Rong Xia não esperava que a caixa guardasse apenas um traje — um manto de brocado negro, guardado num estojo de madeira de nanmu dourado.
“traje de brocado” refere-se a um manto formal de alta qualidade, frequentemente usado por nobres e funcionários do alto escalão durante a dinastia imperial. O nanmu dourado é uma madeira nobre e rara, tradicionalmente usada em móveis e caixas de luxo.
— Eu nunca soube se devia mesmo lhe dar essa roupa para experimentar — disse Ban Hua, virando-se para ele com um sorriso —, porque você fica melhor com roupas claras.
Rong Xia sentia que ela queria dizer mais do que aquilo.
— Mas acho que nunca vi você usando preto... e me arrependi um pouco — Ban Hua retirou o manto da caixa e o entregou a ele com um sorriso. — Vista pra eu ver.
— Claro — respondeu Rong Xia, pegando o manto e indo para trás do biombo.
Ban Hua sentou-se à mesa, apoiou o queixo na mão e olhou para o vaso no canto do cômodo. Em sua mente, surgiu a lembrança do homem em seu sonho — aquele que lhe dera uma pele de raposa e dissera, antes de morrer, que ela era “a última pessoa viva de verdade na capital.”
Ela tinha sentimentos confusos em relação ao novo imperador que vira em sonho. Em parte, agradecia por ele ter cuidado de sua família; por outro lado, não o perdoava por ter tirado o título da família Ban.
O destino dela deveria ser esse: depois do divórcio com Shen Yu, não encontrar um genro adequado. No fim, perder o título e morrer atingida por uma flecha. Porém, ao acordar do sonho, a realidade e o sonho se distanciaram cada vez mais, e ela gradualmente parou de dar atenção àquele sonho.
Seja na alegria ou na tristeza, essa era sua sina — passar por este mundo uma vez, desfrutar da glória e da riqueza, e se acabar confiscada e morrer cedo, desde que sua família estivesse segura, ela não teria do que reclamar.
Depois de um tempo incerto, Ban Hua ouviu passos atrás de si. Olhou para trás e viu o jovem nobre vestido de preto se aproximando com graça, usando uma coroa de jade branca, de alta qualidade suet white jade, com um pescoço claro e um queixo tão perfeito que parecia irreal.
Exatamente igual ao homem do sonho.
Ban Hua riu de repente, e a risada ecoou para fora do quarto, fazendo com que a criada que guardava do lado de fora pensasse que Madame estava enlouquecendo por causa do incidente na família Ban.
— Huahua, do que você está rindo? — perguntou a criada.
— Estou rindo de um poema.
— Que poema?
— “Plantar flores intencionalmente nunca florescerá, mas plantar salgueiros sem querer dará sombra.” Eu li certo essa frase?
— Não — Rong Xia sentou-se ao lado dela. — Eu só não entendo como você lembra desse poema.
— Bom, provavelmente porque acho que você fica melhor de preto do que de claro.
— Sério? — Rong Xia olhou com suavidade para as roupas sobre o corpo dela. — Já que Hua Hua gosta, vou mostrar como usar todo dia.
— Isso não vai dar certo — Ban Hua balançou a cabeça. — Não quero que outras mulheres fiquem baratas e vejam sua beleza.
— Então vou usar só em casa?
— Bom.
Ban Hua assentiu sorrindo.
Ela estendeu a mão e tocou a coroa de jade branca de Rong Xia, e de repente disse:
— Rong Xia.
— Hã? — Rong Xia apertou a outra mão na palma e a mexia distraidamente.
— Vou te fazer essa pergunta só uma vez.
— Está escondendo algo de mim?
Nota: “suet white jade” refere-se a um tipo de jade branco translúcido, muito valorizado na cultura chinesa pela pureza e textura fina, tradicionalmente usado em joias e adornos imperiais.
119
Rong Xia não esperava que Ban Hua fizesse aquela pergunta de repente. Ele olhou para Ban Hua e ficou em silêncio de repente.
Ele não queria envolver Ban Hua nessa questão, e até intencionalmente a mantinha afastada disso, tentando arranjar uma saída para ela. Se desse errado, ele deixaria que Ban Hua “matasse os próprios parentes com justiça” [1]. Além disso, Huahua tinha parte do sangue da família Jiang, então ainda podia viver bem.
Por isso, ele evitava de propósito o poder e as conexões da família Ban, impedindo que eles se envolvessem em seus assuntos particulares. Agia com muita discrição, sem revelar nem metade de suas ambições. Ele não entendia como Huahua adivinhou aquilo, ou se não era exatamente aquilo que ela queria perguntar, ou talvez estivesse pensando demais. O que Huahua perguntou não seria exatamente o que ele pensava?
O silêncio tomou a casa.
Ban Hua pegou duas xícaras de chá delicadas, serviu uma na mão de Rong Xia e disse sorrindo:
— Pensa com calma, não estou com pressa.
— Huahua, o que você quer saber? — Rong Xia segurou a pesada xícara com um sorriso amargo e bebeu quase todo o chá.
— Pode falar o que quiser, pense no que você escondeu de mim, diga tudo o que quiser — Ban Hua ergueu a sobrancelha com um meio sorriso. — Você não precisa mais ser um capacho no tribunal, e eu não tenho nada para fazer, então pode falar devagar, eu ouço devagar.
Rong Xia tentou pousar a xícara com um sorriso amargo, mas foi impedido por Ban Hua:
— Não põe a xícara no chão, vai que você fica com sede de tanto falar.
Ao ouvir isso, Rong Xia pousou a xícara de novo:
— Então tá, você escuta devagar, eu falo devagar.
— Quando eu era jovem, não gostava da minha mãe, porque depois que eu nasci ela começou a engordar. Tentou vários métodos, mas não conseguiu voltar à aparência de antes — a voz de Rong Xia era neutra, sem ressentimentos contra a mãe, nenhuma reação negativa. — Por sorte, desde pequeno eu tinha uma aparência agradável, e minha mãe foi me tratando melhor aos poucos, mas era mais rígida comigo, achava que eu não era tão bom quanto meu irmão mais velho.
— Que besteira é essa? Não é escolha sua ter nascido ou não. Se ela quer culpar alguém por hipocrisia, que culpe ela mesma ou seu pai. Por que você, que não entende nada, ia ser culpado? — Ban Hua explodiu após ouvir o começo. — Ainda é injusto?!
Depois de xingar, Ban Hua se lembrou que era a falecida sogra dela. Será que ela estava sendo muito desrespeitosa?
Mas Rong Xia não se irritou. Vendo as bochechas vermelhas de raiva de Ban Hua, sorriu levemente:
— Não, já faz muitos anos.
Ban Hua, que foi mimada pelo avô, avó e pelos pais, não conseguia imaginar em que ambiente Rong Xia havia vivido na infância. Respirou fundo e finalmente conteve o impulso de xingar.
— Além disso, a carreira oficial do meu pai não ia bem, e o tempo que ele passava com minha mãe na mansão não era mais como antes. Minha mãe suspeitava que meu pai tivesse uma concubina, por isso ela me contava o quanto ela havia sofrido por causa da minha origem — Rong Xia riu de modo irônico. — Ela morreu depois, e dizem que foi de doença.
— Dizem?
— Sim, só boatos — Rong Xia baixou as pálpebras, a voz um pouco fria. — Ela morreu envenenada. Eu era pequeno e não sabia que veneno tinha sido usado, só descobri no ano passado: ela morreu por envenenamento por feijão de acácia, ou pelos feijões que meu pai lhe deu [2].
O coração de Ban Hua ficou gelado. A mãe de Rong Xia se suicidou ou foi assassinada?
Quem a matou?
A mulher com ciúmes dela ou... o pai de Rong Xia?
O clima na família Ban era muito harmonioso. Embora Ban Hua não tenha vivido as disputas internas da casa, algumas das irmãs ao redor tinham ouvido histórias de que a esposa principal humilhava a concubina, a concubina ignorava o marido e provocava a esposa principal de propósito, e outras confusões. Acúmulos de mágoas e rancores que dariam um roteiro de novela.
Ouvindo Rong Xia falar, o primeiro pensamento de Ban Hua foi sobre os segredos de família que ela já tinha ouvido antes.
Percebendo a expressão estranha dela, Rong Xia percebeu que ela estava pensando errado e continuou:
— Meu pai e minha mãe tinham uma boa relação. Meu pai não tinha quarto para concubinas, nem sequer uma concubina. Depois que minha mãe faleceu, meu pai passava o dia escrevendo poemas e letras, sentindo falta dela. Sabendo que ia morrer de doença, ele repetidamente pediu para ser enterrado junto dela.
Quando a vida é diferente, a morte deve ser no mesmo lugar.
Era claramente uma história de amor tocante, mas Ban Hua não se emocionou muito. O coração das pessoas é meio parcial. Ela se importava mais com a vida de Rong Xia após perder os pais do que com o amor dos seus pais.
— Mas, na verdade, meu pai não morreu naturalmente. Assim como minha mãe, ele também morreu por envenenamento por feijão de acácia — Rong Xia tomou um gole do chá frio. — Mas acho que ele provavelmente não queria mais viver. Não durou muitos anos.
— Depois, meu irmão mais velho também adoeceu. Foi emagrecendo dia após dia e morreu sem esperar o decreto imperial para herdar o título. Minha cunhada voltou para a casa da família durante o luto e acabou tendo um aborto — os olhos de Rong Xia caíram sobre o vaso no canto da parede. — Eu sou o único que restou na enorme família Rong.
— Agora que eu tenho você — Rong Xia levantou os cantos da boca — este lugar voltou a ser um lar, e não apenas uma mansão vazia e luxuosa.
— Eu... — Ban Hua desviou o olhar e disse: — Vamos parar por aqui.
Ela se sentia desconfortável só de ouvir aquilo, quanto mais imaginar as marcas no rosto de alguém que passou por tudo isso.
— Guardei tudo isso dentro de mim, não contei para ninguém — Rong Xia segurou a mão dela. — Huahua, você pode ficar um tempo aqui comigo?
Ban Hua cerrou os lábios e assentiu.
Rong Xia sorriu baixinho:
— Não precisa ficar triste, essas experiências talvez não sejam sortudas, mas ao menos eu tive sorte de te encontrar.
— Desta vez, não esqueça de ser legal.
— Não falo coisas bonitas, só digo a verdade.
— Quer falar de outra coisa? Se não quiser, eu vou dormir.
Rong Xia a puxou para os braços:
— Vou continuar, não vá.
— Depois que meu irmão mais velho morreu, descobri que alguns remédios que ele tomava todos os dias eram muito prejudiciais ao corpo. Pareciam ajudar a pessoa a se recuperar, mas na verdade eram medicamentos que não deveriam ser usados assim — Rong Xia sorriu de forma amarga. — Eu tinha pouco mais de dez anos na época, mesmo que achasse estranho, não ousava contar para ninguém, porque não sabia em quem confiar.
— Eu descobri cada vez mais coisas e, finalmente, descobri de onde veio a mão negra por trás dos bastidores — disse Rong Xia com sarcasmo. — É Sua Majestade.
Ele olhou para baixo, para Ban Hua, esperando que ela ficasse chocada ou defendesse o Imperador Yun Qing, mas o que não esperava era que ela apenas escutasse em silêncio, sem qualquer intenção de defendê-lo.
— Sua Majestade me favoreceu repetidas vezes, e até me tornou líder dos agentes secretos — os olhos estrelados e belos de Rong Xia estavam cheios de escárnio. — Todo o Império Daye me elogiava como um cavalheiro, mas eles não sabiam que eu fazia o que um espião faz.
A maioria das pessoas ficaria chocada ao ouvir uma notícia tão bombástica.
Banhua realmente ficou surpresa, mas por outro motivo:
— Já que sua esgrima parece brincadeira, tudo bem usar para enganar as pessoas, mas será que você pode ser líder dos agentes secretos?
— O líder dos espiões não é líder dos assassinos, por que ele teria que ser bom em kung fu? — Rong Xia balançou a cabeça e sorriu amargamente. — Não pode ser porque eu tenho o cérebro melhor?
— Também é possível — Ban Hua concordou de repente. — Seu cérebro realmente é melhor que o meu. Então, continue falando, eu vou ouvir.
— Quanto mais eu me tornava agente secreto, mais sentia que todo o Império Daye era como uma moldura vazia cheia de buracos feitos por traças, um verdadeiro desastre — Rong Xia balançou a cabeça e sorriu. — Naquela época, pensei: se eu apoiar um príncipe que tenha coragem de virar imperador, tudo bem também.
Banhua pensou nos filhos do Imperador Yunqing e disse com tom complicado:
— Então, você encontrou alguém?
Rong Xia:
— Achei que você não me faria essa pergunta.
Banhua: ...
— Huahua, eu não sou um cavalheiro, sou um homem ambicioso — disse Rong Xia. — Os lugares onde você e o Irmão Heng enterraram os tesouros duas vezes têm a ver comigo.
Banhua engoliu em seco:
— Você também enterrou coisas lá?
Rong Xia riu ao ouvir isso:
— Sim, algumas peças de ferro foram enterradas.
— Não é meio eufemístico chamar de peças de ferro? — Ban Hua pensou com atenção. Antes, não achava estranho ter encontrado Rong Xia por acaso, mas agora, com tudo revelado, sentia que tinha algo errado em tudo aquilo.
Uma vez foi de manhã cedo, outra vez já anoitecendo. Quem iria até as montanhas desertas sem motivo em horários tão estranhos?
Pensando nisso, sentiu um calafrio no pescoço. Rong Xia não a matou para silenciá-la, o que mostrava certa contenção.
— Você não me matou para me silenciar, Irmão Heng e eu temos uma conexão — disse ele.
— Se fosse outra pessoa, talvez eu tivesse optado por isso, mas você é diferente.
— Por eu ser tão bonito?
Rong Xia assentiu em silêncio.
O momento em que ela virou a cabeça realmente o surpreendeu, mas não foi essa a razão para mantê-los vivos. Ele tinha certeza de que os irmãos não descobriram seu segredo, nem tinham capacidade para isso.
Não vou contar essa ideia para Huahua, pensou. Se contar, ele vai dormir na sala de estudos hoje à noite.
— Entendo. — Ban Hua bateu no ombro de Rong Xia e continuou.
— Huahua — Rong Xia olhou para Ban Hua — não quero te envolver, nem a família Ban. Se eu fracassar, você não precisa saber. Já organizei o resto e nunca vou deixar você se envolver.
— Envolver ou não — Banhua falou com raiva — você é meu agora, e se eu sair dizendo que o que você fez não tem nada a ver comigo, será que alguém vai acreditar?
— Se o príncipe herdeiro subir ao trono, ele vai acreditar.
— O príncipe é covarde, como pode ser rei? — Ban Hua falou com raiva — Sem contar que você nem sabe se o príncipe está vivo ou morto, e já pensa tão à frente.
— Você não me culpa? — Rong Xia sentia que Huahua lhe dava uma sensação nova a cada dia. — O que eu quero é esse mundo.
— Não é ótimo? Se você virar imperador, eu serei a rainha — Ban Hua disse calmamente — Faça o que quiser, eu não vou te impedir.
— Sua Majestade...
— Não sou boba — Ban Hua disse com expressão desapontada. — Embora minha avó nunca tenha me contado sobre os acontecimentos da família Ban, nem sobre algumas antigas mágoas, eu tenho algumas suspeitas, só que não consigo acreditar.
O Imperador Yunqing foi capaz de envenenar até o próprio amigo de infância, então que surpresa haveria se ele matou tantos avôs dela?
— No dia que minha avó sofreu o acidente, fui visitar a mansão da princesa mais velha, e o velho dela me deu algo.
— Sua avó te deu algo? O que foi?
— Um Talismã do Tigre dos Três Exércitos.
— O que? — Ban Hua olhou horrorizada para Rong Xia. — O talismã do tigre não estava perdido há muito tempo? E o imperador não havia anunciado isso publicamente?
Então algo tão importante sempre esteve nas mãos da avó? Por que ela deu o talismã para Rong Xia? Se soubesse o que Rong Xia planejava, ainda assim entregaria o talismã? Isso significaria que ela guardava ressentimentos contra a dinastia Jiang?
Os sentimentos de Banhua pelo Imperador Yunqing eram muito complicados. Ela era grata pelo cuidado dele, mas o odiava por ser frio e cruel. Ele passou por cima de tudo, inclusive assassinou seu avô, que sempre a tratou muito bem desde criança, e cada memória relacionada ao avô era uma alegria.
Ela não podia ferir o Imperador Yunqing com as próprias mãos, mas também não podia fingir que o sofrimento do avô não existiu.
— Rong Xia — Ban Hua olhou firme para ele — você vai conseguir.
A dinastia Jiang vai, cedo ou tarde, enfrentar o dia da mudança.
A prosperidade decai, e dinastias mudam — algo inevitável desde sempre.
Rong Xia pensava que sua confissão traria uma tempestade, mas não esperava ser recebido apenas por uma brisa suave e chuva leve. Essa enorme diferença o fez entender o significado de “a felicidade vem de repente”.
— Então... — Ban Hua olhou para Rong Xia com um pouco de vergonha — fico curiosa, você pode me mostrar como é o talismã do tigre?
O talismã do tigre é feito de ouro, com uma postura bastante majestosa, mas a aparência é um pouco fofa. Ban Hua olhou várias vezes.
— O talismã do tigre parece poderoso, mas na verdade não é tão útil assim. Para despachar tropas, o general às vezes está disposto a te ouvir, e aí o talismã é útil. Mas às vezes ele é só um mascote — a coisa mais difícil de controlar é o coração humano.
— Eu sei que não dá para mobilizar tropas e punir generais só com um talismã do tigre — Rong Xia viu Ban Hua jogando o talismã como se fosse um brinquedo — mas ele também é útil em certos momentos.
— Não me venha com essas coisas que precisam usar cérebro — Ban Hua devolveu o talismã a Rong Xia. — Estou com fome, vamos comer.
Ela se levantou, apertou os olhos de repente e perguntou:
— Tem mais alguma coisa que você está escondendo de mim?
Rong Xia pensou por um bom tempo e então assentiu.
— Bom garoto — Ban Hua bateu na cabeça dele — teria sido melhor se fosse assim desde o começo.
Depois que o Rei Ning subiu ao trono, ele nomeou o país de “Fengning”, que originalmente significava boa colheita e paz, mas os dias da Dinastia Daye não foram nada pacíficos. Houve distúrbios civis por toda parte, e os oficiais da DPRK e da China trocavam de grupo várias vezes. O Rei Ning ouvia as calúnias dos vilões, perdia a paciência a todo momento e não dava um pingo de consideração aos cortesãos.
Mas todos os oficiais ligados ao príncipe não tiveram um final feliz. Além disso, servas do palácio eram frequentemente torturadas até a morte, e logo o comportamento tirano do Imperador Fengning se espalhou por toda a Dinastia Daye. Rumores sobre a origem duvidosa do trono de Fengning e o confinamento domiciliar de seu pai e irmão corriam soltos na internet; até mesmo nas prefeituras e condados mais afastados, as pessoas sabiam detalhadamente como o Imperador Fengning forçou a usurpação do trono, sua falta de limites com comida e bebida, e seus atos violentos no palácio.
A vontade do povo é algo muito estranho. A maioria dos plebeus é obediente e não ousa nutrir um coração rebelde. Mas quando os superiores ultrapassam a linha da dignidade, eles resistem com toda a força, mesmo que isso custe suas vidas — derrubam esse superior nojento.
Quando o Imperador Fengning estava furioso por causa da multidão, o povo de Xuezhou se rebelou. E não foram só os plebeus, mas os oficiais locais também se revoltaram junto.
Foi só então que todo mundo se lembrou de que a família Zhao havia sido enviada para outras prefeituras e condados pelo Imperador Fengning há muito tempo, e que o governador de Xuezhou era filho direto da linha principal da família Zhao — não é à toa que ele não suportava virar as costas para eles.
Xuezhou carregava a bandeira ao lado do imperador Qing; Dongzhou, Xizhou e outras importantes prefeituras e condados responderam em seguida, o exército imperial recuava passo a passo, e Jiang Luo, que esteve agitado o dia todo, já não conseguia mais ficar parado. Ele até enviou alguns capangas para lá, mas foram todos rejeitados. Os rebeldes venceram, e menos da metade do território de Daye acabou nas mãos deles.
Os cortesãos estavam desesperados; Jiang Luo reclamava sem parar, e só então se arrependeu de ter rebaixado para a fronteira os únicos poucos oficiais capazes de lutar — agora não tinha mais ninguém disponível.
— Vossa Majestade — disse o pequeno eunuco que servia Jiang Luo — na verdade tenho um bom candidato para recomendar, mas receio que Vossa Majestade não goste ao ouvir o nome dessa pessoa.
— Quem? — Jiang Luo, agora desesperado por socorro, perguntou rapidamente — esses inúteis falam demais no dia a dia, e na hora do vamos ver não prestam para nada.
— Cheng’an Hou Rong Junpo.
— Ele? — Jiang Luo franziu a testa. — É um literato, pode ir para o campo de batalha?
— Apesar de não ser bom nisso, a esposa dele veio de uma família de generais — respondeu o eunuco — Rong Xia sempre foi favorecido pela família do avô de Vossa Majestade, e também é marquês da Dinastia Daye. Neste momento crítico, mesmo que não queira, ele tem que derramar sangue pela grande causa.
— Pensando bem, se ele morrer por acidente na guerra, isso vai pesar na sua consciência. É um ganha-ganha.
— Faz sentido — Jiang Luo percebeu de repente. Ele queria que Cheng Anhou morresse, mas não conseguia alcançá-lo. Agora, se ele morresse em batalha, sacrificando-se pelo país, quem poderia reclamar?
— Certo, prepare um decreto.
— Ah, e que Rong Xia e Ban Hua saiam da cidade com tropas. A residência da família Ban deve ser fortemente vigiada, eles não podem sair da cidade.
— Sim.
Antes desse decreto ser publicado, Rong Xia já havia enviado gente para transferir os membros da família Ban para fora da capital. Os “membros da família Ban” que ficaram na cidade saíam pouco, então ninguém desconfiava de suas identidades. Quando os soldados da infantaria vigiaram o pátio da família Ban, “Ban Huai” e “Ban Heng” abriram a porta pela metade e ficaram gritando e xingando por um bom tempo, mostrando o temperamento ignorante da família Ban.
Enquanto a “família Ban” estava sob controle, o decreto imperial de Fengning foi enviado para a mansão de Cheng’anhou.
Como o Imperador Fengning esperava, ao ouvir que a família Ban estava bem protegida, Cheng Anhou e sua esposa mudaram de expressão e finalmente seguiram a cerimônia à risca. Duas centenas de milhares de tropas de expedição deixaram a cidade.
O Imperador Fengning odiava Rong Xia, então quando ele saiu da cidade, nem se deu ao trabalho de fazer alarde para se despedir — mandou apenas um oficial sem importância para acompanhá-lo e se livrou do assunto.
— O movimento dele gelou ainda mais os cortesãos, inclusive alguns oficiais que originalmente o seguiam.
Depois de sair dos limites da capital, o exército de expedição seguiu viagem para o sul sem ousar atrasar.
No caminho, os soldados incomodaram o povo e até destruíram plantações. Rong Xia ordenou que os soldados fossem punidos, mas eles ainda não ficaram convencidos. No fim, perceberam que não tinham chance contra Rong Xia no arco e flecha, e Ban Hua, mulher de mira certeira, os dominou, fazendo com que finalmente se comportassem.
— General, a fronteira é onde os rebeldes estão — o oficial da vanguarda chegou ao lado de Rong Xia a cavalo. — Por favor, me mostre, general.
— Todos os soldados se esforçaram bastante até aqui. Montem acampamento primeiro e descansem.
— Sim.
O oficial da vanguarda ficou radiante. Estavam exaustos. Se agora fossem convocar o batalhão, como poderiam enfrentar os rebeldes? Só que a comida e o pasto são limitados, então não podem demorar muito. Quando os mantimentos acabarem, sem dúvida perderão.
Depois de montar o acampamento, Rong Xia e Ban Hua passaram a viver no mesmo local. Os outros soldados já estavam acostumados, então não acharam estranho. No caminho, ficaram impressionados com a habilidade da princesa Fule. Apesar de mulher, não era comparável a muitos homens.
Uma pena que não fosse homem, senão a família Ban teria sucessores.
Mas, pensando que a família Ban agora está sendo mantida como refém por Sua Majestade na capital, os soldados sentiram um frio na espinha. Foi a crueldade do imperador que causou o caos no mundo, mas no fim forçou uma mulher a ir para o campo de batalha e ameaçou sua família. É feito para que pessoas rudes como eles não suportem mais.
Só sentiam pena do Marquês Cheng An e da princesa Fule, recém-casados, que acabaram enfrentando essas coisas terríveis.
— Pelas atitudes do general, parece que ele não quer enfrentar os rebeldes de frente — um general mais velho balançou a cabeça. Mesmo com muitas coisas na cabeça, não podia falar naquele momento.
— Quem quer enfrentar os rebeldes? — um general jovem, vestindo armadura prateada, falou irritado. — Somos soldados para defender as fronteiras do país e resistir aos inimigos estrangeiros, não para apontar armas para os próprios compatriotas e inocentes.
Os outros generais ficaram em silêncio, com o coração pesado. Sabiam que esses rebeldes se rebelaram porque estavam acuados, mas também sabiam que precisavam combatê-los. Quem poderia ficar feliz com isso?
— Maldição, por que não posso dar as costas para isso? — o general Yinjia xingou. — Trabalhar para um imperador tão estúpido é uma ofensa.
O jovem general Yinjia vinha de uma família de generais, embora não tão influente quanto a família Ban, com várias gerações. Tinha poucos anos de serviço no exército e não esperava que sua primeira batalha fosse contra seu próprio povo, não contra inimigos estrangeiros. Isso o deixava ressentido.
— Pare com essas besteiras! — o veterano repreendeu. — Se alguém ouvir isso, você vai morrer?
— Crack! — alguém pisou num galho seco.
Vários generais se viraram e viram a princesa Fule, vestida com armadura dourada e leve, parada não muito longe.
— O último general cumprimenta a princesa — as expressões dos generais mudaram drasticamente, todos se levantaram para saudá-la.
Ban Hua entrou no exército desta vez, com o título de “General da Direita”, mostrando que Sua Majestade estava decidido a envolver a família Ban nos problemas.
Alguns cortesãos se levantaram contra a ida de Ban Hua para o campo de batalha, dizendo que não havia precedentes para uma mulher ser general no Império Daye, mas o Imperador Fengning rebateu dizendo que já houve mulheres generais na história.
Se mulheres na história podem, por que a princesa Fule não poderia? Será que ela não tem responsabilidade pelo Império Daye? Como princesa da corte, não tem essa consciência?
Isso significava que, se Ban Hua se recusasse a ir para a guerra, seria considerada desleal ao Império Daye, e seu coração seria punido.
Todos sabiam que o Imperador Fengning estava enrolando, mas ninguém ousava se levantar para defender a princesa Fule.
Porque uma pessoa com espinha dorsal já não pode mais existir nesse tribunal. Restam apenas alguns capachos e ossos moles.
—
Não importa se as regras são seguidas ou não, o mundo já está em caos, então qual a importância de mandar uma mulher para o campo de batalha?
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Notas explicativas:
[1] “Matar parentes com justiça” — expressão que indica eliminar membros da família quando necessário para proteger alguém ou alcançar um objetivo maior, mostrando a dureza das relações familiares na trama.
[2] Feijão de acácia — veneno tóxico presente em algumas sementes, usado em envenenamentos em histórias históricas e ficcionais chinesas. Aqui, é a causa do assassinato por envenenamento dos pais de Rong Xia.
120
Os soldados estavam muito envergonhados. Não ousavam encarar Ban Hua nos olhos. Os mais velhos permaneciam diante dela como codornas que haviam feito algo errado.
Ban Hua usava pequenas botas de couro, uma armadura macia de ouriço prateada, e os cabelos estavam presos com uma deslumbrante coroa de jade. Seu porte era heroico e imponente. Se uma mulher que não soubesse seu gênero a visse, talvez se apaixonasse à primeira vista — e jamais a esqueceria.
Clap, clap.
Segurando o sabre na cintura, Ban Hua se aproximou dos generais e começou a rodeá-los.
— É tarde da noite. Senhores, em vez de dormirem, estão aqui falando sobre o quê?
O jovem general de armadura prateada era, afinal, impetuoso por ser jovem, e respondeu com certa impaciência:
— Princesa, estamos apenas lamentando pelo povo.
— Ah, entendi. — Ban Hua assentiu, surpresa, e então farejou o ar. — O que vocês estão assando aí?
— É... é uma coisa barata trazida de um pequeno país estrangeiro — explicou o jovem general de armadura brilhante. — Cresce com facilidade, mas comer demais disso causa... efeitos indesejáveis, então poucas pessoas cultivam. — Ele virou algo redondo sobre o fogo. — Mas, de vez em quando, até que é gostoso.
— Alguém dos seus antepassados serviu sob o comando do meu avô? — Ban Hua achou aquele jovem familiar, como se fosse de uma linhagem de soldados que já servira à sua família.
— Respondendo à princesa: o avô do último general teve a honra de ser oficial da vanguarda sob o comando do marechal. — Ao mencionar o avô de Ban Hua, os olhos do jovem general brilharam. — Não esperava que a princesa ainda se lembrasse?
— Quando eu era muito pequena, seu avô foi visitar a mansão Ban. — Ban Hua recordou-se. Era um velhinho enérgico, que trouxera para ela vários brinquedinhos do sul que nunca tinha visto antes. — Um general incrível.
Essas palavras de elogio fizeram o jovem de armadura prateada sentir-se como se estivesse bebendo mel. Instintivamente, estufou o peito, e seu sangue ferveu, pronto para lutar e matar no campo de batalha naquele instante.
— Mas agora estamos num campo militar. Senhores generais, não precisam mais me chamar de princesa, apenas me chamem de General Ban. — Ban Hua se agachou e estendeu a mão para descascar aquilo que exalava um cheiro adocicado. No entanto, estava quente demais, e ela não pôde evitar de soltar vários gritinhos de dor e sacudir as mãos. — Embora eu não seja como meu avô, ainda conheço as regras do exército. Por favor, não me julguem apenas por eu ser mulher.
Os generais a observavam cutucar o tubérculo quente com seus dedos brancos, como uma criança curiosa, e por isso não conseguiram chamá-la de “general” de imediato.
Mas, por causa desse momento, a tensão que sentiam por terem falado mal da corte começou a se dissipar aos poucos.
— General Ban — o jovem general de armadura prateada, que admirava o avô de Ban Hua, a chamou naturalmente pelo título. — As palavras e atos do último general não têm relação com os demais generais.
— Você tem razão. — Ban Hua provou um pouco da parte macia do doce, e descobriu que era muito gostoso. — Quem gostaria de atacar seus próprios compatriotas inocentes?
Os generais não esperavam ouvir algo assim dela. Olharam surpresos para Ban Hua, e só depois de um longo silêncio o general mais velho falou:
— A princesa está exagerando. Só estávamos desabafando um pouco. Jamais ousaríamos pensar em traição.
Ele temia que Ban Hua estivesse apenas tentando arrancar alguma confissão deles.
— Não importa o que vocês tenham a dizer. Afinal, aquele que está sentado lá em cima... — Ban Hua largou o doce e limpou a boca. — Desde criança nunca me suportou. As desavenças entre nós dariam conversa para três dias e três noites. Se quiserem xingar, fiquem à vontade. Ouvir vocês me alivia a raiva.
Ao ouvirem isso, os generais olharam para ela com simpatia.
Sua família estava sendo mantida refém na capital. Depois de tantos anos de prestígio, perderam os títulos de uma hora para outra — era natural que ela quisesse desabafar e até xingar.
— Já queria xingar faz tempo — o jovem general de armadura prateada disse irritado. — Sua Majestade mal subiu ao trono e já se entregou aos prazeres. Nestes dois anos, houve desastres por toda parte. O povo está sem lar, passando fome, e ele só pensa em desfrutar! Onde está o povo no coração dele?!
Tão indignado ficou, que socou o chão com força.
— É revoltante demais trabalhar para alguém assim!
Os outros ficaram em silêncio. Todos tinham consciência. Quem gostaria de ver o sangue do povo em suas lâminas?
Ban Hua olhou para aqueles generais enfurecidos e suspirou profundamente. Talvez fosse por isso que a família Ban escolheu, geração após geração, defender as fronteiras. Alguns podiam ser rudes, incultos, ou até cometer erros imperdoáveis... mas muitos tinham um coração fervoroso, disposto a se sacrificar pelo povo. Eles não entendem de poesia ou canções, mas sabem perfeitamente para onde suas espadas devem apontar.
Quando os generais são exauridos, quando as dinastias mudam e os países guerreiam, quem sofre mais são sempre as pessoas comuns.
Na época, ela não entendia por que seu avô falava com tanta emoção dos antigos companheiros de batalha — mas agora, talvez entendesse um pouco.
Se ele não tivesse sido traído no campo de batalha, não teria sofrido ferimentos tão graves. Talvez tivesse continuado por muitos anos a proteger as fronteiras, só se retirando quando não pudesse mais empunhar uma arma.
A batata-doce em suas mãos começava a esfriar. Ela a entregou ao jovem general:
— Como se chama isso?
— Não tem um nome oficial. Todos chamam de batata-doce. — O jovem general puxou mais algumas do fogo e distribuiu aos outros. Têm um apetite voraz, e o mingau da noite mal enche o estômago. Sempre dão um jeito de comer algo a mais — seja caça, seja gafanhoto.
Ban Hua sentou-se de pernas cruzadas com os generais, conversando sobre o clima e o relevo de diversas regiões.
Se as damas ricas da capital vissem isso, jamais acreditariam que Ban Hua faria algo assim.
A princesa Fule sempre prezou pelos prazeres da vida — todos sabiam disso. Comia e se vestia bem, viajava em carruagens caríssimas puxadas por cavalos de raça. Ver agora essa mesma mulher sentada no chão gelado, de pernas cruzadas, conversando com homens suados e fedidos — era como ver nevar em pleno verão.
Quando Rong Xia se aproximou, Ban Hua já havia comido a maior parte da batata-doce em suas mãos. Havia duas manchas acinzentadas em suas bochechas claras, deixando-a com um ar atrapalhado e adorável — mas, para Rong Xia, parecia que algo apertava seu coração. Era sufocante.
Ele se lembrou de que Huahua dizia admirar os soldados, mas não queria ser uma. Para ela, a vida de soldado era dura demais.
No entanto, agora ela usava uma armadura fria de prata, sem joias delicadas, sem maquiagem impecável, e até comia uma comida escura ao lado dos soldados... Isso o fazia sentir como se lhe faltasse o ar. Ele queria dar a ela o melhor, o mais nobre, o mais belo — não queria vê-la passar por privações.
— Rong Xia, você veio? — Antes mesmo de ele se aproximar, Ban Hua virou-se e o chamou com um aceno.
Os generais que estavam sentados de pernas cruzadas se levantaram para saudá-lo. No começo, tinham desprezado Rong Xia, achando que ele era apenas um estudioso que não sabia marchar nem lutar. Mas, com o tempo, todos mudaram de opinião. Os próprios soldados passaram a temê-lo e respeitá-lo.
Erudito é erudito mesmo, pensavam. Essa capacidade faz com que a gente não tenha escolha a não ser obedecer.
— Generais, fiquem à vontade. No exército, não é preciso tanta formalidade — Rong Xia imitou Ban Hua e sentou-se ao lado dela, com as pernas cruzadas.
Os generais trocaram alguns olhares e, então, se sentaram novamente.
— O que você está comendo? — Rong Xia viu Ban Hua comendo com gosto aquele pedaço meio queimado e estendeu a mão para pegar um pouco.
As batatas-doces já estavam um pouco frias, não tão macias quanto antes, mas o sabor doce permanecia.
— Isso... — Rong Xia mudou ligeiramente de expressão. — Como se chama? É fácil de cultivar?
— Isso se chama batata-doce — explicou o jovem general de armadura reluzente, coçando a cabeça com timidez. — Dizem que é fácil de plantar. Essas aí o general trouxe escondidas, só para matar a fome. Ele mesmo não sabe como se cultiva.
— Não tem problema — respondeu Rong Xia, sorrindo. Embora o regulamento do exército proibisse trazer coisas de fora, em campanha faltavam mantimentos. Desde que os soldados não saqueassem nem perturbassem o povo, fechar os olhos para um alimento trazido às escondidas era aceitável. — Já é bom saber o nome.
Aquilo tinha um gosto bom e, se fosse realmente fácil de plantar, poderia ajudar a matar a fome de muita gente.
Depois de comer, Rong Xia limpou os cantos da boca com calma:
— Generais, todos vocês são veteranos do exército. Já ouvi falar da integridade de cada um. Hoje, há algo importante que preciso dizer.
O general mais velho foi o primeiro a responder:
— Por favor, diga, Marechal.
Rong Xia levou a mão ao peito e retirou um selo dourado:
— O Rei Ning liderou tropas e forçou o palácio. Sua Majestade e o Príncipe Herdeiro estão encurralados. Eu, Rong, pretendo atacar o traidor e resgatar o Imperador e o Príncipe. Peço a ajuda de todos os generais para esta missão.
— O Talismã do Tigre das Três Forças?! — O general veterano juntou os punhos e declarou: — Ver o Talismã do Tigre é como ver o próprio Comandante Protetor da Nação. Este general está disposto a seguir as ordens do Marechal!
Ban Hua olhou desconfiada para o veterano. Agora há pouco, ele estava todo cauteloso, e bastaram algumas palavras do Rong Xia para ele correr a jurar lealdade? Esse velho foi contratado como figurante, é isso?
— Este general também está disposto a obedecer às ordens do Marechal! — exclamou o jovem general entusiasmado, o de armadura prateada.
— Este general obedece ao comando do Marechal!
Espera aí, pensou Ban Hua. Vocês estão prestes a derrubar o imperador que ainda está sentado no trono, e estão aceitando isso com facilidade demais, não?
O que Ban Hua não sabia era que, desde que o Rei Ning subira ao trono, ele vinha suprimindo os generais por todo o reino. Aqueles de patentes mais baixas nem estavam mais recebendo seus salários. Seus soldados, por sua vez, viviam alternando entre a fome e a miséria. No coração de todos eles, o Imperador Fengning já era um tirano sem salvação.
Além disso, Rong Xia já tinha se infiltrado e firmemente estabelecido dentro do exército. Era fácil controlar o campo militar. Esses soldados podiam não ter cultura, mas não eram tolos. Se Rong Xia se atrevia a dizer aquilo, era porque sabia que eles iriam concordar.
E, quanto a não concordar...
Ninguém queria pensar no que aconteceria se recusassem.
Na corte, o Rei Ning ouvia sonolento mais uma discussão interminável entre os Ministérios da Guerra e da Fazenda sobre comida e salários. Ele esfregou a testa, impaciente:
— É só comida e soldo. O exército passou por tantos lugares — que juntem o que puderem. Já que comeram e beberam, o que querem agora? Que eu mesmo vá levar para eles?
— Vossa Majestade! — O ministro Zhou Bing'an se apressou em advertir — Como poderia ser tão simples coletar comida e pagamento nos estados e condados por onde passam...
— Ministro Zhou, o mundo inteiro me pertence. Que mal há em o povo doar comida e forragem para os soldados? — Jiang Luo interrompeu friamente. — Ou será que você acha que minhas ordens não valem nada?
— Eu... entendi. — Zhou Bing’an deu um passo atrás e calou-se.
A corte caiu em um silêncio gélido. Os oficiais com consciência sentiram um arrepio. Com revoltas por toda parte, esse era o momento de apaziguar o povo. Mas Sua Majestade, ao invés disso, ainda coletava arbitrariamente comida e salários...
Será que os revoltosos ainda são poucos?
Se o governo tivesse tentado apaziguar as vítimas após a seca, em vez de enviar tropas para reprimi-las, como poderia ter chegado a esse ponto?
Como imperador, ele tratava o povo como nada. Que tipo de pessoa assim seria digna de ser soberana de um país?
Três dias depois, alguns oficiais planejaram entrar no palácio para resgatar o príncipe, mas foram delatados, e o imperador Fengning descobriu tudo. No mesmo dia, mais de dez funcionários foram decapitados, e outros tantos foram enviados para punição. Alguns corpos chegaram a ser pendurados na entrada do mercado de vegetais para servir de exemplo público, atraindo uma multidão de curiosos.
O Ministro Shangshu, Zhou Bing’an, alegou estar doente e pediu exoneração. O imperador Fengning não o reteve, nem sequer lhe concedeu um título honorário — apenas aceitou o pedido ali mesmo, diante da corte.
Com a saída de Zhou Bing’an, Zhang Qihuai e Zhao Weishen seguiram o mesmo caminho. Os últimos oficiais de consciência que restavam na corte retiraram-se, um a um. A dinastia Daye já era como um edifício prestes a ruir, à beira da destruição.
Mas Jiang Luo ainda se embriagava com os elogios dos traidores. Seu poder e libertinagem haviam destruído até o último resquício de sua sanidade. Era como aqueles reis decadentes da história.
Atualmente, não havia imperatriz no harém, e Xie Wanyu, que antes fora Princesa Ning, estava numa posição constrangedora. Embora no palácio a chamassem de imperatriz, ela não tinha título formal e vivia ali em silêncio, nem humilhada, nem honrada. As demais concubinas não se atreviam a provocá-la, pois ainda havia a Imperatriz Viúva acima de todas.
Mesmo sendo absurdo, Sua Majestade ainda precisava dar alguma consideração à Imperatriz Viúva. Esta, por sua vez, evitava qualquer contato com o imperador — passava os dias recitando sutras e comendo frugalmente no Palácio Funing, como se toda a glória de Sua Majestade nada tivesse a ver com ela. Até o edito imperial que a nomeava Imperatriz Viúva ela havia lançado fora, bem na porta do palácio.
Embora Xie Wanyu não fosse bem-quista por Sua Majestade, a Imperatriz Viúva, de tempos em tempos, ainda desejava vê-la. Somente por isso as outras concubinas, mesmo aquelas de baixo status, não ousavam mexer com ela.
— Sua Majestade — disse a criada que ajudava Xie Wanyu a se vestir, ao vê-la com roupas sombrias —, a senhora devia se arrumar mais, vestir-se com mais beleza.
Sua Majestade só gosta dessas flores e leques. A criada bufou em silêncio. A esposa legítima está nessa situação lastimável, é mesmo revoltante.
— Por que eu deveria me arrumar por causa dele? — Xie Wanyu sorriu com escárnio. — Eu acho que está ótimo assim.
— Sua Majestade! — Um pequeno eunuco entrou correndo, ajoelhou-se diante dela e chorou amargamente. — O jovem mestre Xie Da Lang... ele se foi.
As pálpebras de Xie Wanyu estremeceram. Suas bochechas empalideceram, mas nenhuma lágrima caiu. Ela tocou o rosto seco e disse, com voz trêmula:
— Entendi. Pode se retirar.
— Meus pêsames, Vossa Majestade. — O eunuco enxugou os olhos com a manga, cobriu o rosto e saiu.
Ouvindo os soluços no cômodo, Xie Wanyu disse bruscamente:
— Por que estão chorando? O que há para chorar? Parem com isso.
— Senhora! — A criada de dote de Xie Wanyu ajoelhou-se diante dela. — Não fique assim. Se está triste, chore.
Xie Wanyu balançou a cabeça lentamente:
— Não há nada pelo que chorar... é só...
Só podemos culpar a nós mesmos. Um passo errado, e tudo foi por água abaixo.
Ela virou-se para encarar o espelho e sorriu com amargura:
— Essas roupas estão perfeitas para hoje.
Apoiada na mesa, levantou-se. A saia cinza-escura varreu o banquinho como uma sombra longa e inesquecível, obscurecendo o coração da criada.
Xie Wanyu saiu do portão do palácio e, ao longe, ouviu o canto de uma mulher e o riso de um homem. Soavam felizes como um paraíso na Terra. Ela seguiu em direção ao som e viu Jiang Luo se divertindo sob as flores de pessegueiro com uma mulher.
Prosperar à luz do dia, usar a Terra como cama e o Céu como coberta... Se os céus realmente tivessem olhos, como poderiam permitir que esse bastardo fosse imperador?
Ela se virou e foi embora, sem olhar novamente para o homem e a mulher atrás de si.
— Sua Majestade, aquela não era a imperatriz? — A concubina nos braços de Jiang Luo falou com desdém. — Por que ela não se curvou ao vê-lo e saiu assim?
— Que imperatriz? Só uma coisa que não quero nem ver. — Jiang Luo aspirou o perfume no pescoço dela, deixando uma marca escarlate. — Melhor que nem venha, assim não me tira o apetite.
A concubina riu com escárnio. Ela ergueu o queixo com orgulho. E daí que era a esposa legítima? E daí que era uma nobre dama? Agora não passa de uma mulher inferior até mesmo às das vielas de prazer. É realmente ridículo.
Alguém da corte descobriu que, depois que o exército expedicionário chegou a Zhongzhou, parou de avançar. Os rebeldes estavam claramente à frente, mas não houve movimento. O que isso significava?
Assim que soube da notícia, um oficial correu até Jiang Luo para que ele lesse a carta enviada por Rong Xia. Jiang Luo ficou tão furioso que emitiu três decretos imperiais, repreendendo Rong Xia e insinuando que, caso ele não marchasse imediatamente, os membros da família Ban que permaneciam na capital seriam executados.
No entanto, antes que esses três decretos chegassem ao fronte, uma mensagem urgente chegou a Pequim — trazida a galope por oitocentas milhas:
O Marquês Cheng An havia se rebelado com um exército expedicionário de cem mil soldados. Erguia a bandeira da justiça, alegando que o imperador Fengning havia perseguido o Imperador Supremo e o príncipe. O herdeiro escolhido pelo imperador anterior nunca fora Fengning, e sim o príncipe.
O mais chocante: Rong Xia não apenas estava em posse do Talismã do Tigre das Três Forças, como também carregava o edito imperial que nomeava o príncipe como sucessor, assinado pelo próprio Imperador Supremo.
A corte foi pega de surpresa. Jiang Luo, tomado de raiva, queria imediatamente mandar matar toda a família Ban, mas foi persuadido por alguns ministros. Se Rong Xia realmente invadir a capital, a família Ban ainda poderá servir como moeda de troca.
— Que moeda de troca?! — Jiang Luo gritou, esmurrando os memoriais sobre a mesa imperial. — Aquele hipócrita do Rong Xia não se importa com a vida da família Ban! Por que ele mudaria seus planos por causa deles?
— Fui enganado por ele!
E esse amor profundo pela princesa Fule? Esse apego emocional? Tudo era para me iludir.
— Ele não se importa com Ban Hua — Jiang Luo rosnou, cerrando os dentes. — O que ele quer... é o meu trono.
Partiu então furioso para o lugar onde o Imperador Yunqing estava aprisionado.
O Imperador Yunqing já havia sido torturado severamente por Jiang Luo. O outrora soberano de prestígio agora era servido apenas por dois ou três eunucos, suportando os maus-tratos de Jiang Luo. Já enfraquecido pela raiva, o Imperador Yunqing agora jazia imóvel na cama, sem conseguir sequer falar.
— Seu filho bastardo finalmente se rebelou e está se preparando para entrar em Pequim — Jiang Luo zombou. — Acha que ele veio te salvar... ou veio disputar o trono comigo?
O imperador Yunqing arregalou os olhos e balançou a cabeça com força, mas infelizmente não conseguia dizer uma palavra.
— Hah! — Jiang Luo, tomado de fúria, subitamente quebrou todas as porcelanas de chá sobre a mesa, arremessando-as no chão. — Ele não passa de um bastardo! Querer tirar algo de mim é puro devaneio!
O imperador Yunqing assistiu Jiang Luo se afastar sem olhar para trás. Um som pesado e áspero escapava de sua garganta, como um ronco abafado de desespero.
— Sua Majestade — Wang De, ainda coberto de ataduras, se aproximou para ampará-lo —, como está se sentindo?
O imperador Yunqing estendeu o dedo trêmulo e apontou na direção por onde Jiang Luo havia saído. Seus olhos estavam cheios de ansiedade.
— Sua Majestade, acalme-se, por favor — Wang De enxugou as lágrimas. — O Marquês Cheng An virá nos salvar, com certeza!
O imperador Yunqing arregalou ainda mais os olhos, desesperado por falar, mas sem forças para emitir um som. Wang De, sem entender o que ele queria dizer, apenas segurava sua mão — até que o imperador, tomado pela raiva, desmaiou.
A corte, a princípio, fingia que Rong Xia entraria em confronto com os outros rebeldes, e que os dois lados se desgastariam mutuamente, permitindo ao império colher os lucros da discórdia. Mas, para surpresa geral, o exército expedicionário de Rong Xia não entrou em conflito com os rebeldes — na verdade, estes pareciam ter enlouquecido, passando a reverenciá-lo como líder. Todas as forças rebeldes caíram nas mãos de Rong Xia.
Rong Xia tinha apenas cinquenta mil homens e carecia de comida e mantimentos. Sob qualquer ponto de vista, ele jamais deveria conseguir subjugar os rebeldes. Que tipo de habilidade tinha Rong Xia para fazer com que todos eles se rendessem?
Os inúteis da corte ainda se questionavam, mas Zhou Bing’an, Yao Peiji, Zhang Qihuai e Zhao Weishen começaram a suspeitar de uma possibilidade.
— Esses rebeldes não teriam alguma ligação com o Marquês Cheng An? — questionou Zhang Qihuai. Entre os quatro, ele era o que menos se relacionava com Rong Xia, e por isso falava com menos receio. — Caso contrário, como explicar essa coincidência? O exército rebelde veio com tudo, e assim que viu Rong Xia, abaixou a cabeça e o chamou de mestre. O exército expedicionário estava com poucos suprimentos e equipamentos simples. De onde tirou o Marquês Cheng An tanta confiança para, de repente, virar contra a corte?
A única explicação plausível era que a maioria dos líderes rebeldes de Dongzhou, Xizhou, Xuezhou e outros condados já eram, na verdade, aliados de Rong Xia — aguardando apenas sua chegada.
— Isso... — Yao Peiji abriu a boca, sem palavras. Virou-se para olhar Zhou Bing’an. A família Zhou sempre teve boa relação com os Ban, mas agora o Marquês Cheng An se rebelara... Era difícil prever se os membros da família Ban que ficaram na capital sobreviveriam. Infelizmente, os quatro estavam completamente fora de influência agora. Diante do imperador Fengning, não tinham mais voz. Queriam ajudar, mas estavam de mãos atadas.
Ele devia um grande favor à família Ban. Como poderia apenas observar enquanto eles morriam?
Zhao Weishen balançou a cabeça:
— Os que estão detidos naquele pátio... talvez não sejam da família Ban.
Ele vinha mantendo contato secreto com a família Ban há muitos anos. Logo no dia em que Rong Xia partiu com o exército da cidade, ele recebera um Jin Hongyan de um estranho.
Afinal, como poderia um bando de gansos selvagens permanecer na capital se seu destino era migrar para o sul?
Yao Peiji soltou um longo suspiro de alívio ao ouvir aquilo:
— Se não são eles, então está tudo bem. Está tudo bem...
Mas... como Zhao Weishen sabia disso?
Ele ficou desconfiado, mas não teve coragem de perguntar. Apenas mudou de assunto:
— O que exatamente o Marquês Cheng An pretende? Uma comoção tão grande, até o edito imperial assinado por Sua Majestade e o Talismã do Tigre das Três Forças foram mostrados. Será que tudo isso é só para resgatar o imperador e o príncipe?
—
Talismã do Tigre das Três Forças...
Zhou Bing’an, Ministro-Chefe do Conselho e confidente do imperador Yunqing, conhecia bem os segredos da corte.
— Ele foi dado como perdido há vinte anos.
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