Capítulo 121 a 125


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Perdido? — Os outros três se entreolharam ao ouvir essas palavras e, ao compreenderem o que aquilo significava, ficaram horrorizados. Se o Talismã do Tigre das Três Forças havia se perdido há tanto tempo, como poderia ter ido parar nas mãos do Marquês Cheng An?

O Talismã do Tigre estava, naquela época, sob os cuidados do Marechal Ban. Depois que ele se feriu na fronteira e retornou à capital, foi desarmado e passou a ostentar apenas o título de Duque de Youyou.

Após a ascensão do imperador Yunqing, não houve mais guerras nas fronteiras e, desde então, o Talismã do Tigre das Três Forças jamais voltou a aparecer.

Todos pensavam que Sua Majestade evitava entregar o talismã aos generais atuais por receio. Mas ninguém imaginava que, na verdade, o imperador nem sequer possuía o talismã — o que era verdadeiramente chocante.

— Será que o talismã ficou com o Marechal Ban? — murmurou Yao Peiji. — Na época, o ferimento do marechal foi um incidente repentino. Se ele não entregou o talismã, mas contou a Sua Majestade que ele havia sido tomado à força...

O falecido imperador não gostava de Sua Majestade, mas preferia o rei Hui. Talvez o imperador realmente tenha acreditado nas palavras do marechal. Não é de se estranhar que Sua Majestade tenha tolerado o rei Hui por tantos anos — provavelmente temia que ele se rebelasse de repente.

Depois da morte de Hui Wang e sua esposa, Sua Majestade criou seus filhos no palácio. Parte disso era para mostrar benevolência, mas o verdadeiro objetivo era manter os dois sob controle e evitar que fizessem algo inesperado.

As coisas que antes pareciam incompreensíveis, agora, com o surgimento do talismã, começavam a fazer todo o sentido.

A família Ban sempre foi leal por gerações. Por que, então, o Marechal Ban contaria uma mentira tão grave?

E quanto ao Talismã do Tigre das Três Forças — foi dado ao Marquês Cheng An pela Princesa Ban?

— Eu sei — disse Zhao Weishen, que fora comandante sob o Marechal Ban. Sua voz soava rouca ao lembrar da figura imponente do antigo marechal. — O marechal não foi ferido pelo inimigo, e sim atacado pelos próprios. No fim, o falecido imperador descobriu que um certo general, tomado por inveja, cometeu tal atrocidade. Para não abalar o moral do exército, esse general foi executado em segredo, e sua família não foi implicada.

— Pouco depois, o falecido imperador adoeceu gravemente — Zhao Weishen recontava o passado com calma, mas suas palavras carregavam vida, morte e sangue de inúmeros soldados. Baixando os olhos, concluiu: — Posteriormente, o falecido imperador faleceu sem deixar testamento. Assim, o príncipe herdeiro subiu ao trono naturalmente e tornou-se imperador da dinastia Daye.

Zhao Weishen não queria mencionar todas as maquinações envolvidas nesse processo, mas os outros ali sabiam muito bem. Todos estavam em desgraça agora — mesmo que quisessem lutar pelo povo, estavam impotentes.

— Nem o príncipe herdeiro, nem o rei Ning têm capacidade para governar — disse Yao Peiji, que admirava profundamente os talentos de Rong Xia. Por isso, quando falava, havia um leve viés em suas palavras. Mas ainda tinha bom senso: se insistisse naquele raciocínio, poderia ser acusado de traição.

— Eu entendi o que quer dizer — respondeu Zhao Weishen com um sorriso. — Quando a gente aprende a manejar armas, não é para isso? Ser leal à corte e fazer algo de útil pelo povo? Que as coisas sigam seu curso. Se os céus têm olhos, então estão vendo — vendo pelos olhos do povo deste mundo.

Nos primeiros anos, ele testemunhara todas as disputas da corte. Nunca fora um súdito totalmente leal — mais correto seria dizer que era leal às pessoas sob o domínio da dinastia Daye, não à dinastia em si.

Talvez os céus realmente tivessem olhos. Em março, com os pessegueiros em plena floração, as montanhas dos arredores da capital tremeram de repente, revelando uma rocha peculiar. Ela tinha um formato estranho — como um pássaro azul alçando voo. Diz a lenda que o pássaro azul é o mensageiro da boa nova para a Rainha Mãe, e que sua aparição prenuncia mudanças que abalam o mundo.

A patrulha correu até o local, mas, ao lerem as palavras gravadas na pedra, seus rostos empalideceram:

“A família Jiang não é benevolente, o mundo está em caos; há um rei virtuoso nestes tempos turbulentos, e ele salvará o povo do fogo e da água...”

Um dos soldados, que havia estudado por alguns anos, leu as poucas palavras gravadas e começou a tremer como vara verde, os dentes batendo uns nos outros com um som ríspido. A pedra lhe pareceu tão majestosa e sagrada que ele não ousava encará-la diretamente.

— Bobagem! Isso é só uma conspiração dos rebeldes! — gritou o capitão da patrulha, apontando para a rocha. — Apaguem essas palavras imediatamente!

— Sim, senhor!

Um dos soldados sacou a espada e avançou, mas, estranhamente, mal dera alguns passos quando caiu no chão convulsionando, com a boca torta e o nariz entortado. Os outros soldados recuaram, apavorados. Alguém se apressou em arrastar o soldado para a cidade e levá-lo a um médico, que diagnosticou: “Foi assustado. Um vento maligno invadiu seu corpo.”

Assustado? Os soldados que testemunharam o ocorrido ficaram ainda mais desconfiados. Quando o soldado enfim despertou, um deles lhe perguntou o que havia visto.

— E-eu... eu vi um dragão pairando sobre a pedra... os olhos dele eram como lanternas...

Antes mesmo de terminar a frase, o soldado abraçou a cabeça e começou a gritar loucamente, completamente fora de si.

No dia seguinte, os funcionários do Observatório Imperial foram investigar o soldado — mas ele já havia enlouquecido por completo, murmurando coisas desconexas sobre pássaros e fantasmas, sem dizer nada útil.

A notícia sobre essa pedra misteriosa se espalhou por toda a capital em apenas um dia. Diziam que várias pessoas que viram a rocha enlouqueceram. Os rumores ganhavam cada vez mais força: que a dinastia Jiang estava prestes a cair, que o imperador atual não era benevolente e havia mergulhado o mundo no caos, e que o Rei Virtuoso escolhido pelo Céu havia finalmente surgido para substituir a dinastia Jiang.

E no final das contas, os boatos diziam que, se a dinastia Jiang continuasse a governar o mundo, o povo enfrentaria desastres e sofrimento sem fim — pois apenas o rei de benevolência e retidão era o verdadeiro imperador designado pelos céus.

Jiang Luo estava furioso e convocou vários monges renomados para realizar um ritual ao lado do rochedo, mas a notícia já havia se espalhado — de que adiantava chamar um “grande mestre” agora?

— Abade Yun, o que acha que há nesta rocha? — perguntou um velho taoísta magro, lançando um olhar enviesado e um sorriso irônico ao abade.

O abade Yun recitou um sutra:

— Há corações humanos aqui.

O velho taoísta riu:

— Sejam corações ou milagres, este velho taoísta é apenas um forasteiro, e não queria se envolver nessa confusão. Mas, ameaçado de morte, não tive escolha senão obedecer.

O abade Yun sorriu com serenidade:

— O mestre taoísta é um verdadeiro sábio.

O velho taoísta suspirou, fazendo um gesto de cortesia:

— Abade Yun, por favor.

Esse tipo de encenação barata ainda era usada por alguns monges heréticos. Coincidentemente, ele e o abade Yun haviam discutido sobre zen e sutras dois dias antes. Hoje, precisava tomar uma decisão. Apesar de ser apenas um outsider, ainda era um homem com consciência. Mesmo que não consiga salvar o povo, ao menos não ajudarei os perversos.

Sob o olhar atento de todos, ninguém sabia que método usaram, mas as palavras na rocha finalmente desapareceram — ao custo de os dois monges mais renomados da capital cuspirem sangue e desmaiarem no local.

Os ministros, que antes ainda tinham dúvidas sobre o ocorrido, passaram a acreditar firmemente no conteúdo daquela pedra após testemunharem o estado dos dois mestres.

Contudo, nenhum ousou expressar seus pensamentos. Quando Jiang Luo quis enviar tropas para conter os rebeldes novamente, ninguém na corte teve coragem de se apresentar como voluntário para comandar as forças.

Eles tinham coragem para confrontar os homens… mas quantos ousariam desafiar o céu? Nem mesmo um bajulador quer ser punido pelos deuses.

Jiang Luo, tomado pela raiva, mandou executar mais algumas pessoas. Ao ver o comportamento acovardado dos ministros — iguais a ratos assustados — sua fúria só aumentou.

Ao retornar ao palácio, Jiang Luo explodiu em fúria contra alguns eunucos, mas ainda assim não se sentia satisfeito.

— Majestade, este servo acredita que Shi Jin pode ser útil — sugeriu um deles.

— Útil no quê? — Jiang Luo deu um chute no eunuco, jogando-o ao chão. — Da última vez, foi você quem disse que Rong Xia era uma boa escolha. E no que deu?!

— O servo é culpado! — O pequeno eunuco bateu a cabeça no chão repetidamente, pedindo perdão, sem ousar dizer mais nada.

— Você é mesmo culpado — rosnou Jiang Luo, irritado. — Se eu soubesse, teria matado Rong Xia desde o início, em vez de deixá-lo liderar as tropas para fora da cidade. Quem diria que ele não daria a mínima para a Princesa Fule ou para a minha família?

O eunuco rolou os olhos:

— Talvez agora a Princesa Fule o odeie. Por que não tentamos nos aproximar dela e a usamos como nossa espiã?

— Ban Hua sempre foi uma mulher que só sabe comer, beber e se divertir. O que um cérebro de porco como o dela poderia fazer por mim? — Jiang Luo a menosprezou automaticamente. — Vai é acabar me atrapalhando!

O pequeno eunuco ficou em silêncio por um instante.

— Majestade, embora a Senhorita Fule seja um pouco direta… ainda é uma mulher.

— E o que uma mulher pode fazer?

— Quando uma mulher odeia um homem… ela é capaz de qualquer coisa — disse o eunuco, batendo com a testa no chão. — Por que não dar uma chance?

— Por mais que uma mulher odeie um homem, continua sendo um apêndice dele. Vai fazer o quê? — Jiang Luo riu, divertido com o absurdo da ideia. — Você é um eunuco… entende o quê de mulher? Vá se ajoelhar na porta por duas horas!

— Sim, Majestade — respondeu o eunuco, saindo de ré.

No acampamento militar, Rong Xia examinava o mapa com alguns subordinados.

Ao ver o rosto abatido de Rong Xia, Zhao Zhong comentou com um sorriso:

— Meu senhor, por favor, cuide melhor do seu descanso.

Rong Xia massageou a testa:

— Foram vocês que mais se esforçaram nestes últimos anos.

— É uma honra para este subordinado poder servir ao senhor — respondeu Zhao Zhong. O que ele jamais esperava era que a noiva de seu falecido irmão mais novo acabaria se casando com o próprio lorde.

Mesmo sendo governador de Xuezhou, ele já ouvira muitos boatos sobre a Princesa Fule.

Diziam que o noivo preferiu fugir com uma cortesã a ficar com ela.

Rosto bonito, mas amaldiçoada. O primeiro noivo morreu jovem — deve ser culpa dela.

A mãe de Zhao Zhong tinha uma ótima relação com a tia Yin. Toda a família Zhao se dava bem com os Ban.

Eles nunca acreditaram nos boatos de que Fule trazia má sorte. O irmão dele não morrera por causa da princesa — mas sim pelas mãos do rei Ning.

Na época, a mãe levou o irmão para o palácio. Quem poderia imaginar que o segundo príncipe empurraria o menino — de apenas três ou quatro anos — na água? Ele pegou um resfriado, ficou assustado… e nunca mais se recuperou.

No fim, a medicina nada pôde fazer. Ele foi levado pela doença.

Mais tarde, Sua Majestade concedeu à família Zhao um título medíocre para encobrir o caso. Aos olhos da realeza, a dor de perder um filho era algo que podia ser compensado com um título qualquer.

Zhao Zhong sentia pena da Princesa Fule — dois meses mais nova que seu irmão —, que nada sabia do ocorrido, mas carregava o estigma de ser uma mulher que trazia desgraça. E assim foi difamada por anos na capital.

Já se passavam dois ou três dias desde que se reunira com o lorde em Zhongzhou, mas ainda não tivera a chance de ver a Princesa Fule. Sendo um homem, também não podia perguntar diretamente sobre a esposa de seu superior. Queria encontrar uma oportunidade para se desculpar, mas não encontrava ocasião apropriada.

Rong Xia lhe deu um leve tapa no ombro:

— Zi Zhong, já providenciei para que sua família fosse transferida para fora da cidade. Pode ficar tranquilo.

— Obrigado, meu senhor! — respondeu Zhao Zhong com uma reverência, tomado de emoção.

— Não precisa dessas formalidades entre nós. — Rong Xia tomou um gole de chá para se revigorar. — Lingzheng está no acampamento com você, certo?

— Sim. Zhuojing e os dois cães também estão com ele no exército.

— Se Lingzheng e seu filho estiverem entediados, podem vir até minha tenda conversar com a princesa. Ela tem um temperamento agitado. Quando estiverem juntos, diga a Lingzheng para não se incomodar com isso.

— De forma alguma! — Zhao Zhong ficou radiante. Estava mesmo à procura de uma chance para encontrar a Princesa Fule. Agora que o próprio lorde permitira, poderia pedir à esposa que fosse fazer uma visita e, assim, trocar algumas palavras com ela.

Desde que Rong Xia se juntou aos outros rebeldes, Ban Hua não se preocupou muito com os assuntos do exército. Ela era uma pessoa preguiçosa — se podia sentar, não ficava de pé; se podia deitar, não sentava. Agora que Rong Xia cuidava dos soldados, ela finalmente tinha paz de espírito.

Com tempo livre, passou a levar seus guardas pessoais para competir com os demais em esgrima e arco e flecha. Embora não fosse tão majestosa quanto o general da direita nomeado pela corte imperial, ao menos se dava bem com muitos soldados.

Depois de conviver por tanto tempo com eles, Ban Hua se afundou no vício de ser a “irmãzona” do grupo — cavalgava e caçava gansos, escalava árvores atrás de frutas e mergulhava na água para pescar. Trazia de volta tudo isso para os soldados e os jovens soldados rasos que liderava, enchendo-os de presentes durante o Festival dos Dentes de Leite[1].

Se não fosse por sua pele clara e sua beleza, os soldados quase a chamariam de “Irmão Ban” em vez de “Irmã Ban”.

Não havia o que fazer. Apesar das palavras e ações heroicas de Ban Hua conquistarem o respeito dos soldados, bastava olharem para seu rosto para que a razão gritasse que estavam diante de uma beldade famosa — chamá-la de “irmão” seria um verdadeiro sacrilégio para um rosto tão bonito.

Uma verdadeira general de renome, pensavam muitos. Nem dez homens juntos têm a coragem e a habilidade que ela tem.

Naquele dia, Ban Hua havia acabado de humilhar mais alguns jovens soldados cheios de energia no palco de competições, quando uma guarda feminina lhe informou que a Senhora Zhao queria vê-la. Ela juntou as mãos e disse aos soldados presentes:

— Me desculpem, irmãos, tenho um assunto a tratar. Continuem se divertindo.

— Vá com calma, Irmã Ban! — todos os soldados saudaram em uníssono, até mesmo um homem barbudo de trinta e poucos anos a chamou de “irmã” com reverência. Se não estivessem usando armaduras, qualquer civil que visse a cena pensaria que um grupo de monges tinha saído de algum templo para cobrar taxa de proteção.

A Senhora Zhao estava sentada numa cadeira, ansiosa e um pouco culpada.

Desde que chegou ao acampamento, ouviu muitos rumores sobre a Princesa Fule. Diziam que a princesa era extremamente bela, que o lorde a amava profundamente e sequer se separava dela no acampamento. Também diziam que a princesa era exímia em artes marciais e respeitadíssima pelos soldados.

Sou apenas uma mulher que sempre viveu nos fundos da casa. E se eu disser algo errado? Será que ela vai me desprezar?

Enquanto se perdia nesses pensamentos, a cortina da entrada se ergueu, e um jovem belíssimo, vestido com roupas de brocado e coroa de jade, entrou com os cabelos amarrados. O coração da Senhora Zhao deu um salto — mesmo sendo mais novo que ela, aquele jovem fez seu peito palpitar.

Ao recuperar os sentidos, lembrou-se de que estava no acampamento do lorde e da princesa. Quem seria esse jovem nobre que entrou assim, tão confiantemente?

— Cunhada Zhao, por favor, sente-se. — vendo o olhar atônito da visitante, Ban Hua bateu no traje masculino que usava.

— Mestre... — A Senhora Zhao não esperava que aquele jovem bonito fosse, na verdade, a própria Princesa Fule. Respirou fundo algumas vezes e conteve o coração acelerado. — A princesa é tão linda que perdi a cabeça e esqueci de saudá-la. Por favor, me perdoe.

— Está tudo bem, está tudo bem. Sente-se logo. — Ban Hua sentou-se no assento principal e sorriu para ela.

A Senhora Zhao tinha o rosto ovalado, pele clara e usava apenas alguns grampos de madeira no cabelo. Provavelmente por conta da vida simples no acampamento, vestia-se de forma despojada, mas era visível que era uma mulher tranquila e afável.

Após as guardas servirem o chá, Ban Hua a convidou a beber:

— Lembro que você tem dois filhos. Por que não os trouxe?

— Eles são muito barulhentos...

— Não tem problema, não importa o quanto sejam barulhentos, eu sei cuidar — Ban Hua abanou a mão. — Não me importo com essas coisas. Traga-os da próxima vez, senhora.

Apesar de seu jeito fácil de lidar, a Senhora Zhao não sabia o que responder. O que a surpreendeu foi o fato da princesa saber que ela tinha dois filhos. Que estranho.

— Tenho uma boa relação com a Senhorita Zhao, então às vezes a ouço falar de você — disse Ban Hua, sorrindo. — Minha mãe também se preocupa muito com você. Quando voltar para a capital, vá até a casa dos meus pais. Tenho certeza de que ela vai ficar muito feliz em te ver.

A leveza no tom de Ban Hua divertiu a Senhora Zhao, que assentiu:

— Com certeza irei incomodar vocês.

Mesmo ainda estando em rebelião, o jeito da princesa fazia parecer que já haviam vencido. Não é à toa que o lorde gosta tanto dela. A princesa é, de fato, a pessoa que mais confia no sucesso dele.

— Que incômodo o quê — disse Ban Hua, pensativa. — Tem muitos homens aqui no acampamento. Se estiver entediada, venha me fazer companhia.

Pelo jeito da Senhora Zhao, provavelmente ela se sentia constrangida em andar pelo acampamento, então circular pelos arredores da tenda de Ban Hua talvez ajudasse a aliviar o tédio.

A Senhora Zhao entendeu que aquilo era gentileza da princesa, então aceitou. Antes de se casar com a família Zhao, ouvira que a princesa tinha um noivado com eles, mas infelizmente seu cunhado — que ela nunca chegou a conhecer — havia morrido cedo, e tudo entre eles ficou para trás.

Após se despedir da Princesa Fule, voltou para sua tenda. Ao vê-la chegar, Zhao Zhong perguntou:

— Senhora, a Princesa Fule te fez passar por algum constrangimento?

A Senhora Zhao sorriu e balançou a cabeça:

— A princesa é gentil e calorosa, até queria que eu ficasse para o jantar. Mas como o Lorde ia jantar com ela, insisti em não ficar.

Zhao Zhong suspirou de alívio:

— Ainda bem que você não aceitou. Se não, eu e as crianças íamos acabar comendo sozinhos.

— Que bobagem — disse ela, sentando-se à mesa simples com o marido e os filhos. Ao ver os dois pequenos comendo com prazer, colocou mais dois pedaços de carne nas tigelas deles. Depois, virou-se para Zhao Zhong e comentou: — A Princesa Fule é uma mulher diferente. Olhei para as pessoas da tenda principal, e todos a respeitam.

— Isso é ótimo — Zhao Zhong assentiu, aliviado.

— A princesa também disse que, se eu estiver entediada, posso ir conversar com ela.

— Ótimo — respondeu ele imediatamente. — Eu estava mesmo preocupado que você passasse o dia toda entediada na tenda. Assim pelo menos tem para onde ir.

— É verdade — disse ela, sorrindo. — E olha... a Princesa Fule, vestida daquele jeito, estava tão bonita... Se eu fosse uma moça nos meus primeiros anos, acho que meu coração teria disparado logo de cara. Depois disso, não conseguiria mais olhar para outro homem.

Zhao Zhong: ...

Rong Xia liderou o exército e atravessou a fronteira de Zhongzhou sem encontrar resistência. Ao lado de Zhongzhou ficava Xunzhou. Assim que Rong Xia enviou a vanguarda até o portão da cidade, antes mesmo que tivessem tempo de iniciar um cerco, os portões de Xunzhou se escancararam.

Todos os oficiais, soldados e funcionários vieram recebê-los com trajes formais — e sem demonstrar qualquer intenção de resistir.

Permaneceram em Xunzhou por dois dias. Durante esse tempo, os soldados não incomodaram o povo, tampouco requisitaram à força comida ou mantimentos, o que comoveu e tranquilizou os moradores que viviam em constante apreensão. Quando os rebeldes partiram de Xunzhou, alguns moradores vieram se despedir trazendo melões, frutas e arroz.

Eles não aceitaram o frango, pato, peixe, frutas, arroz, nem os mimos — mas aceitaram a bolsa de água oferecida por um ancião centenário.

— Todos compreendem o coração do povo — disse Rong Xia, erguendo a bolsa de água sobre a cabeça. — Mas a vida de todos já não é fácil. Como poderia Rong ter o coração de ver o povo sofrer de fome e sede?

“Água é a fonte da vida.” Rong aceitou o presente do ancião para acolher os desejos de todo o povo. E com um tom sereno, completou:

— Peço que cuidem uns dos outros, deixem-me partir em paz.

Xunzhou foi profundamente tocada pela atitude e pelas palavras de Rong Xia. Mesmo depois da partida do exército rebelde, ainda havia gente parada nos portões da cidade, relutando em vê-los partir.

— Homem bom, homem bom... — murmurou o centenário, segurando as mãos de seus filhos e netos, enquanto olhava para o céu. — Os céus têm olhos... finalmente nos deixaram ver um raio de esperança.

Os moradores ao redor, contagiados pela emoção do ancião, passaram a desejar do fundo do coração que Rong Xia se tornasse imperador.

O exército rebelde deixou Xunzhou. O próximo destino era Jingzhou. Assim como em Xunzhou, os portões de Jingzhou também se abriram para recebê-los.

No entanto, ao entrar na cidade, Rong Xia e seus homens descobriram que os oficiais locais eram corruptos e incompetentes, explorando cruelmente o povo. Esses oficiais foram julgados culpados e decapitados publicamente, diante dos próprios cidadãos.

Por um tempo, a notícia se espalhou de boca em boca: "Jingzhou finalmente recebeu um bom oficial!"

Para o povo comum, pouco importava se quem chegava era a corte imperial ou os rebeldes — o que importava era que os novos governantes fizessem justiça e não os oprimissem. Isso, para eles, bastava para chamá-los de bons oficiais.

“Como é? Você está dizendo que esse jovem e belo oficial pode virar imperador, mas o atual imperador é um inútil?”

Então esse jovem oficial é que tem que virar imperador! Pra quê manter um imperador fútil e incompetente? Guardar pra quê? Pro Ano Novo? Por acaso, se criarmos um porco, ainda podemos comê-lo no fim do ano. Mas manter um imperador que só serve pra viver às custas do povo... é totalmente inútil.”

Ban Hua seguiu ao lado de Rong Xia, observando os rostos felizes dos moradores por verem os oficiais corruptos sendo punidos. Aquilo a comoveu um pouco.

Aquelas pessoas simples não sabiam o que era lealdade ao imperador, não entendiam poesia, caligrafia ou pintura. Alguns sequer sabiam o nome do imperador reinante.

Viviam correndo atrás da própria sobrevivência todos os dias — e mesmo assim, se contentavam com tão pouco. Mesmo que um imperador no alto de seu trono não esteja disposto a trabalhar pelo povo... ele deveria, ao menos, pensar neles. Pensar um pouco.

Pelo menos... deixá-los viver em paz.

As casas dos oficiais corruptos foram saqueadas, e Rong Xia organizou um grupo para cuidar dos assuntos de Jingzhou.

Depois que o povo passou a aceitar a administração desse novo grupo, Rong Xia conduziu o exército rumo à capital.

Talvez por conta das execuções em Jingzhou, os demais funcionários das outras regiões entraram em pânico. Alguns não ousaram abrir as portas para recebê-lo, então começaram a resistir ferozmente. Outros fugiram às pressas com esposas, filhos e seus tesouros antes mesmo de o exército de Rong Xia chegar, deixando para trás apenas os soldados para resistir.

Alguns oficiais chegaram ao ponto de espalhar boatos, dizendo que Rong Xia era um demônio sedento por sangue — que por onde passava, havia rios de sangue e gritos de desespero —, na tentativa de incitar o povo local à resistência.

Mas essa tática não surtiu muito efeito. Afinal, a maioria das pessoas já havia ouvido relatos de outras cidades e condados, elogiando o Marquês de Cheng’an, dizendo como ele era justo com o povo e como havia punido os oficiais corruptos ao longo do caminho.

Quando o povo descobriu que os oficiais haviam mentido deliberadamente, a indignação foi impossível de conter.

Assim, quando Rong Xia e seu exército chegaram a Taizhou — uma cidade relativamente próxima da capital —, o portão da cidade foi escancarado primeiro por um grupo de cidadãos enfurecidos. Os soldados que guardavam os portões pouco tentaram impedi-los, nem sequer desembainharam suas espadas, permitindo que o povo abrisse os portões.

Ban Hua, montada em seu cavalo, virou-se para Rong Xia com um olhar curioso e perguntou:

— Rong Xia... a gente tá mesmo se rebelando?

Por que isso tudo parece uma piada?

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Notas:

[1] Festival dos Dentes de Leite (ou "Chinese Teeth Festival", sem tradução direta conhecida): provavelmente uma celebração fictícia ou específica dentro do universo da obra, envolvendo oferendas ou presentes aos jovens, simbolizando crescimento ou passagem de fase.

122

Até que ponto a Dinastia Daye precisou se corromper para que o povo chegasse a odiá-la tanto?

Ban Hua era uma pessoa extremamente preguiçosa — preguiçosa demais para pensar, e mais ainda para cogitar conspirações ou joguinhos políticos. Mas essa jornada vinha sendo tão tranquila que parecia até que alguém já havia pavimentado o caminho com antecedência, só esperando que eles o percorressem.

— Eu já tinha alguém infiltrado na Cidade de Taizhou — disse Rong Xia no quarto, sorrindo para Ban Hua, que estava deitada dentro da banheira. — Madame, quer que eu te dê um banho?

— Massageia meus ombros primeiro — respondeu ela.

Os longos cabelos negros escorriam pela borda da banheira, embebidos na água. O vapor denso tomava conta do ambiente, aquecendo lentamente toda a sala.

Rong Xia não resistiu e mordeu de leve o ombro perfumado de Ban Hua, deixando uma marca rosada.

— Você é um cachorro, é? — Ban Hua cobriu o lugar onde fora mordida e puxou o bem-apessoado Rong Xia para dentro da banheira. Ao ver a aparência encharcada e desajeitada dele, envolveu seus braços ao redor de seu pescoço. — Quer tomar banho comigo?

Ao ver o peito claro e delicado de Ban Hua, Rong Xia respirou fundo.

— Huahua, dizem que há muitos, muitos anos, havia uma feiticeira nas Montanhas Sagradas. Quem quer que a visse, ficava encantado e estaria disposto até a oferecer a própria cabeça por ela...

A ponta da língua dele roçou a orelha de Ban Hua.

— Você é essa feiticeira?

O desejo que se acendia no peito de Rong Xia fez a temperatura do corpo dos dois incendiar dentro da banheira.


— Du Jiu? — Zhao Zhong saiu do pátio. A casa em que estavam antes pertencia a um oficial, mas como ele era um tirano que explorava o povo, fora amarrado pela população local e jogado na prisão. Ao ver Du Jiu parado do lado de fora da ala principal, perguntou com curiosidade:

— Viu o senhor Wang Qu desta vez?

— Ele não consegue andar, escrever ou enxergar. Como poderia participar do exército? — Du Jiu não mencionou os pecados de Wang Qu, pois sabia que aquilo só traria mais desgosto ao lorde.

Ao ouvir aquele nome, Zhao Zhong entendeu que Wang Qu devia ter tocado em algum tabu de Rong Xia, e por isso havia terminado daquele jeito. Olhou ao redor, bateu nas próprias roupas e se sentou nos degraus de pedra:

— Você é um dos antigos do lado do lorde. Não quero saber dos assuntos privados dele, mas a Princesa Fule tem certos laços com a minha família. Só queria saber como ela está. Não pense besteira — é só pra acalmar meu coração.

— Você está ficando confuso — disse Du Jiu, sentando-se ao lado dele. — A princesa é esposa do lorde. Você acha mesmo que ela está mal?

— Velho Du, somos amigos há tantos anos. Não precisa me dar essas respostas decoradas, que nem gosto de ouvir — Zhao Zhong sorriu com amargura. — Você sabe bem das origens entre a Princesa Fule e a nossa família.

— Justamente por saber, prefiro não dizer mais nada — respondeu Du Jiu, descontente. — Talvez você não saiba o quanto o lorde valoriza a princesa. Você passou todos esses anos fora da capital, mas... posso te dizer: se eu fosse você, jamais mencionaria de novo qualquer vínculo entre sua família e a princesa. Até porque, esse vínculo não existe mais. Pra que mexer nisso?

Zhao Zhong era um homem de bom temperamento. Mesmo com a repreensão de Du Jiu, não se ofendeu. Pelo contrário, deu uma risada generosa:

— Os dois pestinhas aqui de casa vivem ouvindo histórias sobre a princesa, um por um, e eu mesmo não sei mais quem é o pai deles.

Du Jiu bufou e respondeu com certo orgulho:

— E isso é pouco? Quantos moleques na capital não param diante da nossa princesa pra fazer reverência direito? Não me espanta que seus dois filhos queiram ouvir tudo o que ela diz.

Ao ouvir Du Jiu se referir a ela como nossa princesa, Zhao Zhong não conteve uma risada. Diziam que, ao longo dos anos, Du Jiu havia se tornado um dos mais confiáveis ao lado do lorde, e que a própria Princesa Fule passou a confiar nele assim que entrou na mansão. Talvez seja como dizem: pessoas honestas vivem à sua maneira. Wang Qu era cheio de sabedoria e estratégia, mas no fim, não teve a estabilidade de Du Jiu.

— Marido e mulher são um só — disse Du Jiu sem rodeios. — Se a princesa quer ver seus filhos, então é a própria princesa que quer ver você.

— A princesa é hábil em equitação, tiro e artes marciais. Se os seus meninos conseguirem aprender pelo menos meia técnica com ela, já está ótimo.

Zhao Zhong então entendeu: Du Jiu queria deixar bem claro o quanto o relacionamento entre o Marquês e a princesa era sólido. Enquanto os demais conselheiros ainda ponderavam se a família Ban aprovaria a ascensão do lorde ao trono por causa da Princesa Rong, Du Jiu deixou evidente — marido e mulher são um só.

Essas palavras talvez não valessem muito para outros, mas no caso de Rong Xia, faziam todo o sentido. Ele não tinha parentes próximos de verdade — sua única pessoa de confiança era a Princesa Fule.

Até mesmo o Talismã do Tigre das Três Tropas, que ele havia revelado recentemente... quem mais poderia ter lhe dado, senão a princesa? Se já possuíam o talismã há tempos, por que demoraram tanto a agir?

A Princesa Fule entregara algo de tamanha importância ao lorde — como alguém de fora poderia menosprezar esse vínculo?


O exército descansou em Taizhou por sete dias. Quando os suprimentos de comida e forragem estavam prontos, veio a notícia: a corte imperial havia enviado o Exército Farong, determinado a eliminar todos os rebeldes de uma vez.

Do lado de Rong Xia, havia apenas 150 mil soldados. Já o Exército Farong alegava ter 350 mil — mesmo descontando os números inflados, ainda restavam cerca de 200 mil. Aquela batalha... seria difícil.

Ban Hua se perguntou se tinha língua maldita. Dias atrás, tinha dito que aquela rebelião parecia uma piada — agora, o exército imperial estava às portas.

Ela se sentou no assento de vice-comandante e, após ouvir o relatório dos soldados da linha de frente, perguntou:

— Quem está liderando as tropas?

— Shi Jin e Pei Deputy — responderam.

— São eles? — Ban Hua franziu o cenho. — Shi Jin não era subordinado do príncipe?

— A vida de toda a família Shi está nas mãos do tirano. Como ele poderia não obedecer? — respondeu o jovem general de armadura prateada, com certo respeito por Shi Jin, mas ainda mais ódio por Jiang Luo. — Foi por isso que ele ousou deixar Shi Jin liderar o exército.

Ban Hua balançou a cabeça, sem saber se sentia pena ou simpatia pela família Shi.

Depois de tantos anos de glória, Jiang Luo havia transformado tudo num caos. Não havia mais família digna, nem ministros dignos... Até o Primeiro-Ministro era forçado a agir contra a própria vontade.

Rong Xia lançou um olhar para Ban Hua.

— Vá investigar as informações.

— Sim.


Três dias depois, Rong Xia liderou o exército até os limites de Yongzhou. O terreno por ali não era particularmente perigoso, mas para tomar Yongzhou, seria preciso cruzar o rio Qingsha.

Quando chegaram, a ponte de correntes de ferro sobre o rio já havia sido destruída intencionalmente.

Do outro lado do amplo e tranquilo rio, Rong Xia observava o exército inimigo em silêncio.

Uma hora depois, um barco veio da outra margem. A bordo estavam três emissários, tentando persuadir Rong Xia a se render, oferecendo várias vantagens.

Uma das condições... era restaurar o título da família Ban.

Tendo chegado a esse ponto, como Rong Xia poderia se render?

Ele olhou calmamente para os três emissários e perguntou:

— Os três senhores acreditam que o povo deste mundo está sofrendo ou não?

Os emissários se entreolharam, um tanto desconfortáveis. Um deles uniu as mãos num gesto respeitoso e respondeu:

— Marquês de Cheng’an, como ministro, deveria ser leal ao imperador...

— Como oficial da corte, também deveria amar o país e o povo — retrucou Rong Xia, levantando-se e fitando os três homens —, e ser capaz de tolerar um incompetente enquanto o povo se afoga entre fogo e água?

Ele respirou fundo.

— Admiro a lealdade dos senhores. Rong, por sua parte, está disposto a carregar a infâmia de traição e deslealdade... apenas pelo bem do povo do mundo.

Os três ficaram constrangidos. O Marquês de Cheng’an era, originalmente, um cavalheiro refinado e um homem honrado. Que chegasse a esse ponto hoje, seria apenas por falta de lealdade? Talvez fosse justamente por ser um verdadeiro cavalheiro que não conseguia fechar os olhos ao sofrimento do povo, nem suportar um imperador inepto.

Eles próprios não eram tão íntegros. Estavam ali como enviados apenas por obrigação. No fundo, sabiam que não tinham qualquer chance de convencer Rong Xia.

— Hou Ye, vossa excelência é nobre demais! — exclamou um dos anciãos de cabelos e barbas brancas, fazendo uma reverência profunda. — Já compreendemos suas intenções. Voltaremos e informaremos ao Marechal.

Rong Xia ergueu a mão, num gesto de cortesia, convidando-os a se retirarem.

Os três emissários deixaram a tenda e, ao verem o moral e a organização do exército de Rong Xia, não puderam evitar balançar a cabeça ao compará-lo à desmotivada tropa imperial. A menos que o Marechal Ban ressuscitasse, o exército imperial jamais conseguiria impedir o avanço das forças rebeldes.

Mas os descendentes do Marechal Ban já haviam se casado com Rong Xia — até mesmo o Talismã do Tigre das Três Tropas lhe fora entregue. Neste mundo... ninguém podia garantir de que sobrenome seria o próximo imperador.


O Exército Imperial e as tropas de Rong Xia mantiveram uma posição de confronto por três dias, cada qual acampado em uma margem do rio Qingsha. Nenhum dos dois lados demonstrava intenção de atacar.

Na manhã do quarto dia, os soldados imperiais da torre de vigia relataram algo incomum: o exército de Rong Xia estava cantando e dançando, como se celebrassem algum tipo de festival.

Intrigados, reportaram imediatamente aos superiores.

Logo, a notícia chegou aos ouvidos do Príncipe Changqing e de Shi Jin.

— É só um truque pra confundir — zombou o Príncipe Changqing. — Rong Xia gosta de se fingir de calmo, mas por dentro já deve estar desesperado. A comida e o feno deles são limitados. Em breve, estarão chorando de fome.

Shi Jin olhava atentamente o mapa de geomancia sobre a mesa. Seus olhos repousavam sobre o Condado de Qingsong, ao lado de Yongzhou. Permaneceu em silêncio.

Havia também uma ponte sobre o rio Qingsha em Qingsong, mas era bem menor que a de Yongzhou. O terreno ali era estreito, e os caminhos tortuosos. Sem a ajuda de moradores locais que conhecessem bem a área, seria fácil cair nos redemoinhos do rio.

Com o caráter cauteloso de Rong Xia, ele jamais escolheria um caminho tão arriscado... certo?

Shi Jin não tinha muita afinidade com o Príncipe Changqing. Desde que entrara no exército, o príncipe o via como rival e permanecia em constante vigilância. Mesmo que dissesse sua suposição, o príncipe não acreditaria.

E, de fato, ao propor que liderasse tropas para proteger o Condado de Qingsong, Shi Jin foi prontamente rejeitado.

— Se você levar parte dos soldados, o que faremos aqui? — declarou o Príncipe Changqing com firmeza. — Conheço Rong Xia há anos. Sei exatamente que tipo de pessoa ele é. Ele está apenas esperando que dividamos nossas forças para poder nos atacar de surpresa à noite.

Shi Jin riu por dentro, com desprezo. Um marquês rebelde, que guarda o Talismã do Tigre das Três Tropas em segredo, pode muito bem estar te enganando esse tempo todo, mesmo que tenha sido seu amigo por anos. Você realmente confia nisso?

Desde a ascensão de Jiang Luo ao trono, o Príncipe Changqing foi promovido de rei de condado a príncipe — e ninguém esperava que ele estivesse aliado a Jiang Luo. Agora, seu nome era temido na capital, e poucos ousavam desafiá-lo.

Mas o príncipe era arrogante, convencido e odiava ser questionado.

Shi Jin, por outro lado, era calmo, prudente, e detestava agir por impulso. Suas personalidades eram opostas. E esse atrito entre comandante e general não era nada bom para o moral do exército.

Por isso, Shi Jin raramente confrontava o príncipe. No fundo, ele já nutria um pensamento estranho: Mesmo que este mundo fosse derrubado, talvez não fosse algo tão ruim.

O Príncipe Changqing tomou sua decisão. Mesmo sabendo que talvez estivesse errado, seguiu o rumo mais conveniente.

Na terceira noite, após vários dias de movimentação no acampamento, o exército de Rong Xia finalmente atacou. Tentaram atravessar o rio construindo passarelas de madeira, mas o exército imperial, que já esperava por isso, reagiu com força, obrigando-os a recuar às pressas.

Da torre de vigia, o Príncipe Changqing observava com alegria as tropas de Rong fugindo em desordem.

— Já sabia que Rong Xia não aguentaria — comentou, sorrindo com ar vitorioso. — Ele adora fingir. Mas no fim, é só blefe.

— Generalíssimo, devemos atravessar o rio e atacá-los?

— Não — disse o Príncipe Changqing, erguendo os lábios com escárnio. — É exatamente isso que ele quer. E por isso... eu não vou fazer.

Nas noites seguintes, o exército de Rong Xia continuou tentando atravessar o rio — sempre sem sucesso. Pouco a pouco, os imperiais perceberam que a música havia cessado. Até mesmo a fumaça das cozinhas diminuía.

Estavam certos de que os rebeldes começavam a passar fome.

Enquanto esperavam que os inimigos se rendessem, uma mensagem urgente chegou do Condado de Qingsong: os rebeldes atravessaram o rio por lá e estavam tentando romper os portões. Precisavam de reforços imediatamente.

— O quê?! — O Príncipe Changqing encarou incrédulo o mensageiro. — Rong Xia atacou o Condado de Qingsong?

Ele havia sido enganado.

Desde o início, Rong Xia jamais pretendia tomar Yongzhou. Os ataques noturnos não passavam de uma distração para fazê-lo acreditar que aquele era o verdadeiro alvo.

— Generalíssimo, o que devemos fazer agora?

O Príncipe Changqing lançou um olhar a Shi Jin. Depois de alguns segundos em silêncio, respondeu, com o rosto lívido:

— Shi Jin, leve tropas até Qingsong e mate todos os rebeldes. Rong Xia é astuto. Receio que o ataque em Qingsong seja apenas uma distração — o alvo principal ainda é aqui.

— Sim, senhor — respondeu Shi Jin, unindo os punhos antes de erguer a cortina da tenda e sair.

Os soldados do acampamento lembravam bem que Shi Jin havia proposto proteger Qingsong antes — e que fora rejeitado. Mas vendo a fúria do príncipe naquele momento, ninguém ousou comentar.

E, de fato, o Príncipe Changqing estava certo desta vez.

As tropas que atacaram o Condado de Qingsong eram apenas uma parte do exército de Rong Xia — e quem as liderava era Ban Hua.

Vestida com uma armadura prateada, ela permanecia em silêncio diante dos portões da cidade, ouvindo as provocações e insultos gritados pelos defensores.

— Não tem mais ninguém sob o comando de Rong Xia? E mandam você, um moleque afeminado feito uma vadia, pra liderar um exército? — O general que estava no topo da muralha caiu na gargalhada, como se tivesse dito a coisa mais absurda do mundo. — Se você se render direitinho e passar debaixo das minhas pernas, o vovô aqui ainda poupa sua vida!

Às vezes, quando dois exércitos se provocam, não há limite para os insultos que trocam. Du Jiu e Zhao Zhong, que estavam ao lado de Ban Hua, ficaram tensos com medo de que ela não suportasse esse tipo de provocação.

Mas, para surpresa deles, Ban Hua respondeu aos berros, com a voz firme e irritada:

— E esse seu "vovô", com essa cara de almofadinha? Não vai lá pro distrito de Tangou tirar uma foto do rabo pelado antes de falar dos outros? Você acha mesmo que com essa bunda murcha ia nascer alguém com o nível do meu jovem mestre?!

Ela atirou a lança de prata para Du Jiu segurar, pôs as mãos na cintura e continuou a berrar impropérios:

— Cresceu todo torto, já casou, já pariu? Tá achando que todos os homens do mundo são seus filhos e netos? Tá delirando demais, meu filho. Primeiro pensa em quem seria o pobre coitado que toparia ser seu pai, seu avô, só pra você sair se achando na frente do jovem mestre! Bah!

Os soldados do exército de Rong Xia ficaram boquiabertos. Essa… essa é mesmo a Lady Fule? A esposa do nosso lorde?

Por que é que ela xinga com a habilidade de um veterano de guerra?!

— Sua pirralha desgraçada! O vovô aqui vai te matar e beber seus dois taéis de ovo no vinho! — gritou o general do alto da muralha.

— Tá é com inveja que eu tenho dois taéis, né? Você tem dinheiro pra isso? — retrucou Ban Hua na hora. — Mesmo que beba todo o licor de ovo do mundo, você continua sendo um rei feioso de oitenta e dois centavos que nunca vira dois juntos!

Gulp.

Zhao Zhong não conseguiu conter o engolir seco. Virou-se para Du Jiu e viu que ele também estava paralisado — o que o deixou um pouco mais tranquilo. Pelo menos não era o único apavorado com aquilo.

Ban Hua enfrentou sozinha dez homens. Só então o general da muralha saiu com seu batalhão. Era um brutamontes de dois metros e meio, empunhando um enorme martelo cravejado de espinhos de ferro. Estava claro que não queria capturar Ban Hua — queria matá-la.

— Hmph! — bufou ela.

Sacou o arco das costas do cavalo, puxou a flecha e disparou. O brutamontes, que ainda urrava ameaças, foi perfurado no peito e caiu no chão com um estrondo.

Os soldados que vinham atrás dele ficaram paralisados, atordoados. Quando tentaram voltar correndo para a cidade, já era tarde — uma chuva de flechas caiu do céu, crivando todos como peneiras.

Ban Hua se virou e disse friamente ao tenente:

— Lembre-se: é isso que acontece com quem se acha valente demais. Se for fazer, faça direito. Não fale demais, e jamais subestime seu oponente. Ele teve tempo pra ficar gritando no portão da cidade, mas não pensou em chamar um bom arqueiro pra derrubar nosso estandarte. Ele só queria me humilhar por me achar fraca. Aprenda essa lição. E não cometa o mesmo erro.

— Sim! — responderam todos os generais em uníssono, com os olhos cheios de admiração voltados para Ban Hua.

Ela ficou satisfeita com a resposta e ergueu a mão:

— Ataquem a cidade!


Defender uma cidade deveria ser mais fácil do que atacá-la. Mas o comandante dos soldados do Condado de Qingsong havia sido morto por um "rebelde de rostinho bonito", e a moral das tropas desmoronou.

O som dos gritos e do choque das armas preenchia o céu, e os portões estavam prestes a cair. Muitos soldados simplesmente perderam a vontade de resistir.

— General! — gritou Du Jiu, limpando o sangue que respingara em seu rosto. — A resistência dos defensores está diminuindo!

— Avise os irmãos pra se empenharem mais e tomarmos Qingsong o quanto antes. — Ban Hua olhou o campo de batalha e continuou: — Se não me engano, os reforços imperiais devem chegar em até dois dias.

— Entendido! — respondeu Du Jiu, batendo com força no quadril antes de sair para animar suas tropas.

No campo de batalha, não existe homem ou mulher — só você ou eu. Os soldados do exército de Rong já sabiam que Ban Hua tinha talento, mas não esperavam que ela se adaptasse tão bem ao ambiente militar. Sua liderança era firme, suas ordens eram claras e sua habilidade em combate, surpreendente.

Aos poucos, os soldados sob seu comando passaram de respeitosos a admirados — e de admirados a verdadeiros devotos.

Boom!

O portão de Qingsong finalmente foi derrubado. Ban Hua liderou pessoalmente a investida. Esperava encontrar resistência feroz dos soldados e do povo...

Mas, ao entrar, deu de cara com um adolescente que chorava e gritava:

— Eu me rendo!

O menino usava uma armadura que mal lhe servia. Era magro e franzino. A mão que segurava a faca tremia. Ao ser encarado por Ban Hua, caiu de joelhos de medo.

Os outros soldados não estavam em situação muito melhor. Tinham rostos apáticos, semblantes assustados e nenhum sinal de resistência. Na frente, estavam esses jovens soldados. Atrás deles, escondidos entre os becos e recuos, vinham os andrajosos — velhos, mulheres e crianças.

— Du Jiu, leve alguns homens para contar a população. Fiquem atentos a ataques surpresa — ordenou Ban Hua, olhando os civis com olhos frios. Depois acrescentou: — Se alguém do nosso exército ousar tocar numa mulher ou filha de alguém, eu mesma corto a cabeça e penduro na muralha!

— Sim, senhora!


Após a tomada do portão de Qingsong, o restante foi até mais fácil do que Ban Hua esperava. Ou melhor, depois que perceberam que ela não queria massacrá-los, e ainda ajudava a limpar as ruas, os habitantes da cidade passaram a obedecer suas ordens com tanta prontidão que, se ela mandasse ir para o leste, ninguém se atreveria a dar um passo para o oeste.

— General! General! — chamou um garotinho, correndo até ela enquanto descia da torre para checar a lista feita pelos soldados. — Você é mesmo uma rebelde?

Ban Hua esticou a mão e afagou sua cabeça.

— Não somos rebeldes. Viemos salvar vocês.

O garotinho não entendeu o que significava “resgatar”, então ficou olhando para Ban Hua com expressão vazia e, após um tempo, disse:

— Se você não rouba nossa comida, então você é uma boa pessoa.

— Garotinho, isso não se chama ser uma boa pessoa, isso se chama ser uma pessoa — respondeu Ban Hua com um leve sorriso. — Os oficiais e soldados que roubam o povo são animais.

— Senhora, senhora! — Uma adolescente correu apressada, estendeu o braço e deu alguns tapas rápidos no irmão. Em seguida, olhou para Ban Hua, apavorada: — Meu irmão é ignorante e ofendeu a senhora. Por favor, nos perdoe!

— Seu irmão é bem interessante — disse Ban Hua, notando que a garota estava tão assustada que mal conseguia falar direito. Ela adotou um tom brincalhão: — Não precisa ter medo. Eu não sou do tipo que maltrata criança.

Ela tateou o interior da bolsa, encontrou alguns petiscos que costumava guardar para si e os colocou na mão da menina:

— Toma, come um pouco pra se acalmar.

A garota segurou os docinhos, imóvel, sem ousar reagir.

— Você é bem desconfiada, hein? — comentou Ban Hua, pegando um dos doces de volta da mão da menina e jogando na própria boca. — Pode ficar tranquila, não tem veneno, não.

A menina lançou um olhar furtivo para Ban Hua e, com apenas esse único olhar, seu rosto ficou inteiramente corado. Apertou os doces com a cabeça baixa, agarrou o irmão pela mão e saiu correndo. Só ousou olhar para trás quando já estavam longe, mas... a figura de Ban Hua já havia sumido.

— Irmã... aquela general é tão legal — murmurou o garotinho, enquanto colocava um dos docinhos na boca. — E os doces dela também são gostosos.

— Cala a boca! — A irmã olhou ao redor, nervosa. — E se alguém ouvir você dizendo isso? E se ele for um cara malvado, hein? Quer morrer?

— Mas ele não parece um cara mau... — retrucou o garoto, virando a cabeça. De repente, notou alguns homens agachados, passando pelos becos que costumava frequentar. Não resistiu e olhou mais uma vez, desconfiado.

Qingsong era pequena. Todo mundo conhecia todo mundo — os rostos, as roupas, os hábitos. Aqueles homens... definitivamente não pareciam gente do condado.


— General — disse Du Jiu, entrando no gabinete de Ban Hua —, há pouco, uma criança veio relatar que alguns homens adultos com comportamento suspeito apareceram na cidade.

— Espiões? — foi a primeira coisa que Ban Hua pensou. Calculando o tempo, concluiu que já era hora do exército imperial começar a se mover. — Avise os irmãos para ficarem em alerta. O exército imperial deve estar a caminho.

— Entendido — respondeu Du Jiu, mas hesitou por um instante antes de continuar: — General... aquela sua gritaria e xingamento diante da muralha...

— O quê? Acostumou a ouvir? — retrucou Ban Hua com um sorriso.

— Não, não! — respondeu ele depressa, erguendo as mãos. — Este subordinado se sentiu... bem aliviado ouvindo.

— Então que tenha servido pra aliviar sua raiva — disse Ban Hua, largando a pena de escrever de lado com desdém. — Minha família sustenta muitos veteranos mutilados que foram à guerra. A habilidade deles em xingar é impressionante. Se estiver interessado, quando voltarmos a Beijing, pode visitá-los. Quem sabe eles te ensinam uns dois ou três movimentos.

Du Jiu ficou boquiaberto. Então a família Ban ainda abriga tantos veteranos que o tribunal já considera inúteis?

Naquele momento, a imagem que tinha da família Ban se elevou imensamente em seu coração.

123

— Mandem alguém contar os soldados feridos e mortos desta vez. Os que devem receber sepultamento digno, que o tenham. Os familiares que precisam ser consolados, que sejam. Lembrem-se de escolher alguém de confiança para cuidar disso — disse Ban Hua. Ela se recordava de casos de desvio das pensões no acampamento militar. Ao pensar nisso, acrescentou:

— Se alguém ousar fazer esse tipo de coisa, não precisa nem reportar ao lorde. Eu mesma corto a cabeça desse sujeito!

— Sim, senhora! — Du Jiu ficou comovido, com a expressão tomada por entusiasmo. — Pode deixar comigo, general. Vou cuidar disso pessoalmente.

Ban Hua suspirou ao vê-lo sair com toda aquela energia. A guarda pessoal que estava atrás dela a olhou com preocupação:

— Princesa, está tudo bem?

A princesa fora criada com muito carinho desde pequena. Apesar de ter aprendido táticas militares com o velho general, aquilo havia sido há muitos anos. Na época, ela ainda era muito jovem e nunca tinha visto de verdade a brutalidade de um campo de batalha. Agora, passando o dia entre soldados, sem comer bem, sem poder vestir as roupas de seda e cetim de antes, sem usar seus enfeites de ouro e prata... quando foi que a princesa havia sofrido tanto assim?

— Estou bem — respondeu Ban Hua, reclinando-se na cadeira e fechando os olhos enquanto deixava a guarda massagear seus ombros. — Os atos de Jiang Luo são cruéis. Se ele não for deposto, o povo vai continuar sem paz. E nós, da minha classe, também não teremos como viver em segurança.

— Mas... — a guarda hesitou — os pássaros somem, e o arco é guardado. Tenho medo que... que o meu tio...

Ela não completou. Se o genro se tornasse mesmo imperador, mesmo sendo casado com sua senhora... e se um dia ele passasse a desconfiar do sangue Jiang na princesa? O que aconteceria então?

— Mesmo que minha relação com Rong Xia terminasse, ao menos ele seria um bom imperador. E minha família Ban o tratou com lealdade. Ele jamais envergonharia a nossa casa — disse Ban Hua com um leve sorriso. — Quanto ao resto... se preocupar agora é perda de tempo. A vida precisa ser vivida com otimismo. Senão, todo dia será infeliz — e isso seria um desperdício.

— A princesa tem uma atitude admirável, consegue pensar com clareza — disse a guarda, sorrindo. — A verdade é que eu que sou medrosa demais.

— O povo costuma dizer: “Se você não tem coragem de se partir ao meio, como vai conseguir puxar a bela do cavalo?” — Ban Hua ergueu o rosto, provocadora. — Não é verdade?

— O ditado original é “partir-se para puxar o imperador”... — respondeu a guarda com uma expressão constrangida. — Princesa, está zombando de mim de novo. Eu não tenho coragem de dizer isso.

— Medo de quê? Não é isso que estamos fazendo agora? — disse Ban Hua com segurança. — Está tudo bem, estamos entre quatro paredes. Ninguém vai saber.

As guardas concordaram animadamente, como se tudo que Ban Hua dissesse fosse verdade absoluta.


O Condado de Qingsong era uma região pobre sob jurisdição de Yongzhou. O relevo era acidentado, o solo pouco fértil, e a agricultura sofria. Quando o clima ajudava, dava pra colher o suficiente pra matar a fome. Caso contrário, apertavam os cintos e passavam fome.

A chegada de Ban Hua não trouxe desespero para os moradores — ao contrário, trouxe esperança.

Aqueles soldados não saqueavam, não matavam, não causavam confusão. Estava claro que aqueles “rebeldes” queriam mesmo salvar o povo do fogo e da água, e por isso haviam se levantado. Alguns perguntaram quem era o belo jovem general que liderava as tropas e, ao saberem que se tratava do segundo comandante mais importante do exército, algumas velhinhas até quiseram saber se o general era casado.

Ao descobrirem que sim, que ele já era casado, algumas famílias importantes do condado ficaram um pouco decepcionadas. Mesmo assim, em nome da amizade, doaram cereais e forragens para o exército de Rong. Naquela altura, grãos valiam mais do que ouro. Além disso, essas famílias queriam agradar, mas também temiam que os “rebeldes” apenas estivessem fingindo generosidade. Melhor manter a paz.

Ban Hua aceitou os suprimentos e registrou tudo cuidadosamente em um livro. Depois, declarou aos representantes das famílias:

— Guardei os atos justos do povo deste condado no meu coração. Quando eu derrubar os ministros traidores, serei ainda mais grata a vocês.

— A general é muito generosa... não nos atrevemos a tanto — disseram, curvando-se.

Ninguém daquelas famílias acreditava que aquilo fosse sério. Ao saírem da residência onde Ban Hua estava temporariamente instalada, só pensavam que haviam comprado um pouco de tranquilidade com comida.

Pouco depois que os convidados partiram, um soldado entrou apressado com um relatório:

— O exército imperial foi avistado a dois li de distância!

— Finalmente — disse Ban Hua, levantando-se. — Arqueiros, em posição!

— Sim, senhora!

Ela pegou o capacete que estava sobre a mesa e se dirigiu às pressas para o portão da cidade.

O exército imperial vinha com grande velocidade. Ban Hua subiu na muralha e observou os estandartes — havia caracteres de pedra escritos neles. Era Shi Jin quem comandava a tropa.

— Eu, Shi Jin, vim cumprir ordem de Sua Majestade para recrutar todos vocês — anunciou Shi Jin, montado em seu cavalo, encarando os arqueiros no alto da muralha. — Desde que abandonem suas armas e se rendam, a corte imperial garante que ninguém será responsabilizado.

Os soldados atrás dele ergueram os escudos, formando uma muralha viva em sua proteção.

— Que general fiel e corajoso é o senhor Shi Jin — disse Ban Hua, com a voz alta e clara, do alto da muralha. — Mas quando o país já não é mais um país, e o povo não tem como viver... nós não podemos ficar parados enquanto as pessoas sofrem. Mesmo que sejamos condenados pela história, não recuaremos. O general Shi, leal ao imperador e fiel à corte, merece ser elogiado por sua dedicação.

A fala parecia elogiosa, mas cada palavra era como um golpe. O rosto de Shi Jin empalideceu, e quando ele reconheceu a voz e viu claramente quem falava, seu semblante ficou ainda mais pálido, como cal.

— Saudações à Princesa Fule — disse ele, descendo do cavalo e fazendo uma reverência formal. — A senhora é princesa nomeada pela corte imperial. Por que se aliou aos rebeldes?

— O Imperador Fengning não é benevolente. Colocou Sua Majestade e o Príncipe Herdeiro em prisão domiciliar. Sendo eu uma princesa nomeada por Sua Majestade, como poderia suportar ver o Imperador e o Príncipe Herdeiro sendo tratados dessa forma? — declarou Ban Hua com firmeza. — Se o Imperador Fengning não tem culpa alguma, por que não permite que eu o encontre, junto de Sua Majestade e do Príncipe Herdeiro?!

Shi Jin sabia que cada palavra de Ban Hua era verdade, mas a vida de centenas de pessoas do ramo principal da família Shi estava nas mãos de Jiang Luo — ele não tinha escolha senão se submeter.

Os soldados de ambos os lados mantiveram-se em silêncio. Aquele confronto virou uma guerra psicológica entre os generais. Shi Jin se sentia envergonhado demais até para encarar diretamente o rosto de Ban Hua.

— Princesa, deve haver algum mal-entendido. Podemos voltar a Beijing e resolver isso lá. Mas agora a senhora se envolveu tanto, o povo está em pânico... como consegue suportar isso? — Shi Jin abaixou a cabeça. — Estou cumprindo meu dever. Se cometi alguma ofensa, foi por causa disso.

Ban Hua riu com desdém. Ergueu seu arco e, com uma única flecha, derrubou o estandarte de comando do exército imperial. Em seguida, gritou:

— Se derem mais um passo, o mesmo acontecerá com todos os seus estandartes!

— General, excelente pontaria — elogiou Du Jiu, pegando o arco das mãos dela. — Estou impressionado.

— Minha habilidade com o arco não é tão boa assim — respondeu Ban Hua, balançando a cabeça. — Nem se compara com a de um arqueiro que já enfrentou batalhas de verdade.

Du Jiu pensou: Se isso não é ser bom... então o que é?

— Arqueiros, preparados!

— Atirar!

O som da batalha ecoou sob a muralha da cidade. Após a primeira chuva de flechas, o exército imperial foi forçado a recuar várias centenas de metros. Quando perceberam que os arqueiros haviam parado, avançaram novamente.

— Irmãos! Eles ficaram sem flechas, rápido!

Mas antes que pudessem chegar perto do portão, potes de água fervente e óleo quente foram despejados sobre eles. Os gritos de dor tomaram o ar, e os soldados recuaram imediatamente, temerosos.

— General! — o tenente de Shi Jin correu de volta até ele. — Eles são espertos demais. A cidade mal foi tomada, como conseguiram tanta água fervente e óleo?

Observando o impasse diante de si, Shi Jin chegou a uma conclusão: os moradores da cidade estavam ajudando os rebeldes. Era a única explicação para haver tanto óleo e água fervente à disposição. Ele ergueu a mão:

— Suspender o ataque. Não vamos fazer sacrifícios em vão.

Ban Hua já esperava por isso. Se atacassem diretamente agora, não teriam a menor chance de vitória.

— Sim, senhor!

— General, eles recuaram — avisou um soldado, surpreso.

— Isso é só uma tática de retardo — disse Ban Hua, semicerrando os olhos. — Esse exército imperial não vai tentar nada por pelo menos duas horas. Descansem onde estão, deixem alguns homens vigiando o alto da muralha. E não larguem as armas!

— Sim, senhora!

Ban Hua apoiou-se nos tijolos manchados da muralha, olhando na direção do exército imperial com expressão calma.

Não sei por que Shi Jin está disposto a liderar tropas para exterminar os rebeldes, pensou. Mas ele é alguém muito contido, não se deixa provocar como aquele general tolo de Qingsong. Preciso redobrar a cautela.

Se eu fosse Shi Jin... que método usaria para atacar esta cidade?

— General Shi, o que devemos fazer agora?

Shi Jin observou um soldado ferido sendo carregado em uma maca. Balançou a cabeça.

— Primeiro, tratem os feridos.

— General, não há remédio suficiente para tratar todos.

— General, algumas das armas estão com defeito. Tenho medo que não funcionem no campo de batalha.

— General, a comida enviada pela corte imperial está mofada. Tenho receio de que, se os soldados comerem isso, todos acabem doentes.

Quanto mais ouvia, mais silencioso Shi Jin ficava. Os parasitas da corte queriam que eles dessem a vida no campo de batalha, mas enviavam suprimentos nessas condições? É revoltante! Mesmo sendo calmo por natureza, seu semblante fechou. Por que continuar sustentando uma corte assim? Por que proteger essa família imperial?!

— General?!

O oficial ao lado percebeu a expressão do superior e perguntou, preocupado:

— Está tudo bem?

Shi Jin balançou a cabeça:

— Vejam o que ainda pode ser comido. Façam com que todos se alimentem primeiro. Quanto ao restante... pensarei em uma solução depois.

O oficial deixou a tenda. Shi Jin sentou-se pesadamente numa cadeira, esfregou a testa e soltou um suspiro profundo.


No meio da noite, um soldado responsável por guardar os mantimentos tirou um cochilo. Ao despertar, olhou ao redor, aliviado ao perceber que ninguém havia notado. Sacudiu a cabeça para espantar o sono.

Foi então que viu um outro soldado saindo de uma barraca próxima, murmurando algo sobre dor de barriga. O guarda lembrou-se da tigela de mingau mofado que comera mais cedo e olhou para o outro com pena. Tão jovem... deve ser novato. Nunca pisou num campo de batalha.

Os veteranos... esses já comeram de tudo. Raízes, cascas de árvore, ratos do mato e até lebres. Mingau mofado não é nada.

Depois de um tempo, o jovem soldado voltou segurando as calças. Ao passar por ele, sussurrou:

— Irmão... você não tá com dor de barriga?

— Que nada. Isso aí é porque moleque como você nunca viu o mundo — o guarda se gabou por um tempo, depois sentiu uma pontada e disse ao rapaz: — Dá uma olhada aqui por mim, já volto.

— Irmão, eu nunca vigiei isso aqui... vai logo! — O jovem olhou ao redor, viu que só havia poucos soldados guardando o local e pareceu um pouco assustado.

— Tá todo mundo no campo de batalha e você ainda fala feito mocinha? — O guarda balançou a cabeça com desprezo. — Fica aí. Eu volto já.

Ao se virar para ir embora, ainda se sentia um pouco orgulhoso. Esses recrutas novos não sabem como é a vida no campo... se não forem pressionados, não aprendem.

Ban Hua jogou todo o pó de fósforo que havia escondido no corpo dentro do depósito dos fundos. Depois de recuar alguns passos, lançou uma bolinha de papel acesa para dentro.

“BUM!” O pó de fósforo se incendiou assim que entrou em contato com a chama. Um dos guardas ao lado percebeu o movimento, mas antes que pudesse dizer algo, ela tapou a boca dele, o nocauteou e o arrastou para longe do depósito de grãos.

— Fogo! O armazém de grãos pegou fogo! — gritou Ban Hua, antes de se esconder atrás de uma tenda próxima. Assim que os soldados que estavam dentro saíram correndo, ela se misturou com a multidão.

— Apaguem o fogo! Verifiquem os acampamentos ao redor e não deixem ninguém suspeito escapar!

Quando Shi Jin soube que o armazém havia pegado fogo, não demonstrou nenhum choque. Saiu da tenda e observou as chamas sendo rapidamente contidas. Então perguntou:

— Alguém suspeito foi capturado?

Nesse momento, um soldado se aproximou para relatar que havia conversado com um jovem de pele clara.

Jovem de pele clara? Shi Jin franziu o cenho. Será que foi Ban Hua pessoalmente?

Depois que o fogo foi contido, Shi Jin notou que ainda havia pequenas labaredas azuis espalhadas:

— Isso é... pó de fósforo?

O pó de fósforo costuma ser usado por artistas de rua, mas esse tipo de técnica não costuma ser repassada a estranhos — apenas famílias com tradição nessa arte entendem seu funcionamento. Pelo visto, isso foi mesmo coisa de Ban Hua. A família Ban mantém muitos artistas desse tipo.

Mas... pra quê ela faria isso? Um fogo desses jamais destruiria o armazém. Isso é grão, não papel inflamável.

Confuso, ele só retornou à tenda principal quando os soldados já haviam voltado para descansar, exaustos. Assim que se sentou, sentiu o frio de uma lâmina encostada em seu pescoço.

— Princesa... a senhora não devia ter vindo — disse, fechando os olhos. — Se eu abrir a boca agora, você não sai viva desta tenda.

— E tem algo errado nisso? — Ban Hua surgiu à sua frente, sorrindo. — Acredito que muitos estão dormindo profundamente agora. Mesmo que toquem tambores, talvez não acordem.

O que ela havia lançado no armazém não era apenas pó inflamável, mas também pó hipnótico. Qualquer um que inalasse a fumaça ficaria sonolento sem perceber.

O rosto de Shi Jin mudou de expressão:

— Então esse era seu verdadeiro objetivo?

Ban Hua apenas sorriu, sem dizer nada.

Shi Jin abriu os olhos e a encarou. Vestida como um soldado, ela parecia pálida à luz tênue das velas, mas seus olhos brilhavam como estrelas. Ele desviou o olhar:

— A princesa é habilidosa. Shi é quem não está à altura.

— O general Shi também não infiltrou espiões na cidade? — disse ela, com um sorriso. — Estamos quites.

Shi Jin ergueu o queixo:

— Se for atacar, é melhor fazer logo. — Ele hesitou. — Quando terminar... saia pelo portão oeste do acampamento. Lá a defesa é mais fraca. Será mais fácil pra você.

— Eu venho pra te matar, e ainda quer me ajudar a fugir? — Ban Hua riu. — Você é mesmo curioso.

Ela olhou para o rosto dele:

— Bonito desse jeito... dá até dó de fazer alguma coisa.

Então, num movimento rápido, ela recuou a espada e bateu com força na parte de trás da cabeça de Shi Jin, que desmaiou na hora.

— Princesa! — Um soldado entrou correndo. Era o chefe do acampamento. — Vamos, rápido!

Junto com outro soldado de aparência comum, ele colocou Shi Jin dentro de um saco preto e carregou o corpo para fora da tenda.

O acampamento imperial estava completamente silencioso, o único som era o ronco esparso dos soldados adormecidos.

Ban Hua olhou ao redor e ordenou:

— Cerquem essa área. Levem todas as armas que puderem carregar.

Ela não era uma dama virtuosa, tampouco uma general lendária. Se havia uma forma de vencer com facilidade, usaria sem hesitar. Aquele sujeito era neto do velho general da família Ban. Em teoria, não tinha mais vínculos com a família, mas na prática era a "ponte" dos Ban dentro do exército imperial.

Como chefe do bando, ninguém melhor que ele para colocar remédios na comida. E como as provisões já estavam mofadas, mesmo que o sabor estivesse estranho, os soldados pensariam que era culpa da comida — não que houvesse veneno nela.

A combinação do remédio no alimento com o que ela lançou no armazém seria suficiente para deixar todos num sono profundo.

Espero que, quando acordarem amanhã, não fiquem muito chocados ao verem que estão pelados e sem nenhuma arma...

Depois de sair do acampamento, Ban Hua levou seus guardas de volta a Qingsong. Mas, antes de chegar ao portão, percebeu algo estranho. Rapidamente ergueu a mão:

— Apaguem todas as tochas! Há algo errado no portão da cidade.

Os guardas obedeceram, apagaram as chamas, desmontaram dos cavalos e se esconderam nas sombras, temendo que arqueiros estivessem à espreita.

No entanto, nenhuma flecha veio. Em vez disso, alguém acendeu uma tocha no alto da muralha e gritou:

— Quem está aí embaixo... é a princesa?

Ban Hua reconheceu a voz — parecia ser Zhao Zhong.

Ela olhou para os guardas e fez um gesto para que não se movessem. Depois, correu em zigue-zague até mudar de posição e respondeu:

— Sou eu.

— Huahua — chamou Rong Xia de repente, surgindo no alto da muralha da cidade. Ele apareceu ao lado de uma tocha e falou em direção ao portão escuro —, vou descer para te buscar.

Ban Hua ficou parada, olhando fixamente para Rong Xia passando pelo topo da muralha. Logo o portão se abriu por completo, e Rong Xia apareceu montado num cavalo branco, vestindo uma armadura dourada. As tochas vermelhas iluminavam seu rosto, que parecia quase festivo sob aquela luz.

Ban Hua se levantou do chão, olhou para Rong Xia, que segurava uma tocha enquanto a procurava com os olhos, e não conseguiu conter-se:

— Tô aqui!

Rong Xia desmontou rapidamente, caminhou até Ban Hua com a tocha e segurou a mão dela, que estava fria como gelo.

— Vamos. Entra logo.

— Você é idiota, é? Sai correndo desse jeito, querendo morrer? — Ela o deixou segurar sua mão, mas ralhou —. E se alguém me sequestrasse só pra te atrair? Ia morrer à toa?

— Se te pegassem como refém, estariam me segurando também. Se morrêssemos juntos, seríamos um par de mandarinhos desesperados — respondeu ele, sorrindo.

— Besteira — Ban Hua bateu no elmo dele com a mão. — Vira a cabeça aí, deixa eu ver se escuto o barulho de água. Tem água dentro?

Depois que todos entraram na cidade, Rong Xia notou dois soldados carregando um grande saco de tecido preto. Parou, curioso, e perguntou:

— O que tem aí dentro?

Parece... uma pessoa?

— Ah, eu sequestrei o general deles — respondeu Ban Hua com naturalidade.

Rong Xia ficou paralisado. O general… Shi Jin?

— Amarrar ele pra quê? Joga fora — disse Rong Xia friamente. — Se perdeu, não serve mais pra corte.

— Pode ser inútil pra corte, mas pode ser útil pra você — retrucou Ban Hua, séria. — Esse homem tem habilidades. Pode te servir bem.

— Não preciso! — Rong Xia recusou sem hesitação.

Ban Hua: …

Mas que homem teimoso é esse?

Por sorte, o casal não brigou por causa de Shi Jin. De volta à mansão provisória, Ban Hua tirou a armadura, bocejou e se jogou na cama.

— Por que você veio? — perguntou, sonolenta. — O plano não era você atacar Yongzhou e eu vir pra Qingsong?

— O plano mudou — respondeu Rong Xia, reparando nas olheiras dela. Tocou seu rosto com carinho. — Não descansou direito esses dias?

— Nem um pouco. Ficar olhando registro e contas me dá dor de cabeça — resmungou Ban Hua, tirando as botas com um chute. Os sapatos caíram com um baque no chão. Ela nem se deu ao trabalho de tirar as meias. — Agora que você chegou, eu posso descansar em paz.

E assim, caiu num sono profundo.

Vendo que ela estava tão exausta, Rong Xia retirou suas meias com cuidado, aqueceu água para lavar seus pés e, ao fazê-lo, descobriu duas bolhas de sangue nos calcanhares macios. Esterilizou uma agulha de prata com vinho, furou as bolhas gentilmente, aplicou medicamento e cobriu os pés com o cobertor.

Ainda estava amanhecendo quando Rong Xia ouviu movimento do lado de fora. Vestiu o casaco às pressas, pegou os sapatos nas mãos e saiu:

— O que houve?

Zhao Zhong, ao vê-lo com o casaco desarrumado e os sapatos nas mãos, ficou surpreso por um instante, mas logo disse:

— Senhor, Shi Jin acordou.

— Vou vê-lo agora mesmo.

Quando Shi Jin despertou, percebeu que estava deitado sob um cobertor limpo. Entendeu de imediato que havia sido levado pelos rebeldes.

Sentou-se devagar, tentando levantar-se, mas antes que colocasse os pés no chão, um soldado entrou pela porta, o olhou e saiu às pressas.

Pouco depois, passos se aproximaram e Rong Xia entrou.

Ao vê-lo, Shi Jin deu uma risada sarcástica:

— O marquês Cheng An é mesmo habilidoso. Veio até Qingsong County sem avisar ninguém. Mas sua maior habilidade nem é enganar o Rei Changqing. É mandar uma mulher no seu lugar pra arriscar a vida no acampamento inimigo.

Zhao Zhong parecia querer explicar, mas Rong Xia ergueu a mão, impedindo-o.

— Nisso, devo admitir que me admiro — respondeu Rong Xia com um sorriso calmo. — Se o senhor não gosta, vai ter que suportar. Minha esposa é tão boa comigo... eu simplesmente não consigo impedi-la.

— Você ainda se diz homem? — Shi Jin o encarou, indignado com aquela autossatisfação. — Rong Xia, se fosse homem de verdade, deveria protegê-la e não deixá-la se arriscar desse jeito!

— Por que o senhor se mete na vida conjugal dos outros? — retrucou Rong Xia, arqueando as sobrancelhas. — Em assuntos públicos, estamos em lados opostos. Em assuntos privados, nossas famílias não têm relação alguma. Não acha que está se intrometendo demais?

O rosto de Shi Jin escureceu. As palavras de Rong Xia o calaram por completo.

— Senhor Shi, aconselho que seja mais cuidadoso com suas palavras e atitudes no futuro. Não se meta em assuntos alheios — Rong Xia abaixou os olhos. — Melhor falarmos de negócios.

Essa minha Huahua é teimosa, pensou. Se meteu num perigo desses sozinha... Quando ela acordar, vou dar uma boa lição!

124

— O que o marquês Cheng Anhou quer dizer, por favor, fale logo. — Shi Jin sabia que não tinha posição para se meter nos assuntos privados de outros casais, então arrumou as roupas, foi até a mesa e se sentou. Mesmo sendo prisioneiro, carregava a nobreza de filho de família aristocrática e não se deixou intimidar em nenhum gesto.

— Quero que o senhor Shi me ajude.

— Que absurdo. Como oficial da corte imperial, como posso me aliar a um traidor como você? — Shi Jin falou sem pensar —. Rong Xia, não perca seu tempo, não vou cooperar com você.

— Nesse caso, não vou forçar. — Rong Xia levantou-se, virou-se e saiu pela porta, sem qualquer intenção de convencer o outro. Sua reação surpreendeu todos ali. Du Jiu olhou para Rong Xia surpreso, depois para Shi Jin, que permanecia calado à mesa, e virou-se para segui-la.

— Mestre Shi. — Zhao Zhong ficou na sala, com seu rosto gentil que dava confiança a quem o visse pela primeira vez, parecia alguém incapaz de mentir.

Shi Jin o ignorou.

Zhao Zhong não se importou, pegou um banquinho e sentou-se, servindo chá devagar para os dois:

— Há alguns anos, senhor Shi, o senhor não foi ao fronte como comerciante?

As sobrancelhas de Shi Jin se moveram levemente. Ele olhou para Zhao Zhong, sem saber o que queria dizer.

— Não precisa ficar tão desconfiado de mim, foi só uma pergunta casual. — Zhao Zhong falou com simplicidade —. Eu queria aprender artes marciais na juventude, mas minha família não concordou, então adiei tudo esses anos.

— No fronte faz um frio amargo, mestre Zhao, não precisa ir. — Shi Jin tomou um gole do chá frio. — Quando foi que começou a se aliar a Rong Xia?

— Não é aliança, é afinidade. — Zhao Zhong deu um leve sorriso e olhou pela janela. — Fui governador de Xuezhou por alguns anos, mas nunca ganhei muito apoio do povo local. Quando Xuezhou foi atingida por uma calamidade, como oficial da corte, não pude pedir muita ajuda. Três anos atrás, houve uma enchente em Xuezhou, muitas pessoas morreram. A corte temia uma praga e mandou lacrar a cidade: podia-se entrar, mas não sair.

— Sei que isso foi para evitar uma epidemia, nunca reclamei. Mas depois que lacraram Xuezhou, não enviaram comida nem remédios. Será que a corte queria matar todos de fome e transformar Xuezhou numa cidade fantasma? — Os olhos de Zhao Zhong ficaram vermelhos ao falar —. Você sabe quantas pessoas morreram em Xuezhou?

— Dez mil pessoas! Dez mil pessoas!

Shi Jin ficou em silêncio. Lembrou-se do ocorrido, mas só pelo relato do pai. Por causa disso, não houve repercussão na corte. Parece que alguém denunciou depois, sob pressão, e foi pessoalmente escoltado o envio de grãos e ervas.

— Naqueles dias, os choros na cidade não cessavam. Mães lamentavam pelos filhos, maridos pelas mulheres, crianças pelos pais. — A voz de Zhao Zhong tremia. — Depois, Rong Xia apareceu trazendo remédios que salvaram vidas. Naquele momento, quase me ajoelhei diante dele.

— Nunca vou esquecer aquela emoção. Soube que Rong Xia denunciou o ocorrido sob grande risco e ofendeu autoridades. Quando trabalhamos juntos em Xuezhou, me encantei com ele e quis me juntar.

Shi Jin ficou sem palavras. Sabia bem a corrupção da corte, até o pai era parte dela. Por isso evitava Ban Hua e o pesado fardo da família Shi. Queria ser alguém que distinguisse o certo do errado, que amasse e odiasse com coragem, mas pela família não podia ser impulsivo. Tinha que carregar o legado familiar e avançar passo a passo.

— A família Zhao é grande, não tem medo de se prejudicar?

— Desde que haja determinação, sempre há como evitar prejudicar a família. — Zhao Zhong balançou a cabeça —. Os métodos são invenção humana; depende da vontade.

Shi Jin ficou em silêncio por um instante, depois disse de repente:

— Você é um bom articulador. Quase me convenceu.

— Não é que sou bom, mas o senhor Shi ainda tem consciência e justiça. — Zhao Zhong sorriu simples —. Não sou esperto, falo o que penso. Por favor, não se ofenda com minhas palavras confusas.

— Agora que sou prisioneiro, que direito tenho de desprezar alguém? — Vendo que Zhao Zhong não pretendia sair, Shi Jin perguntou: — E os soldados que trouxe?

— Sei que eles só obedecem ordens e não têm escolha, não vou humilhá-los. Pode ficar tranquilo. — Zhao Zhong percebeu que Shi Jin ainda se preocupava com os soldados e gostou dele —. A notícia da sua captura já chegou ao Rei Changqing. Mesmo que lhe liberemos agora, ele e a corte não confiarão mais. Melhor que siga conosco. Quando o senhor cumprir sua missão, não só o povo terá vida digna, como sua família Shi poderá ressurgir. Quanto ao presente... — Zhao Zhong balançou a cabeça —. A família Shi é do antigo príncipe; o Imperador Fengning jamais confiará nela. Quando abdicar, quem na corte lembrará da proeminente família Shi?

— O Imperador Fengning não vai reutilizar a família Shi, mas Rong Xia vai?

— O senhor é diferente do imperador. Ele valoriza talento. Se fizer seu trabalho bem, não teme ser desprezado pelo senhor. — Zhao Zhong falou confiante —. Comparar o tirano Fengning e minha família com o senhor é uma ofensa.

Zhao Zhong admirava muito Rong Xia.

Vendo tanta admiração, Shi Jin não sabia se ria ou se aproveitava para ironizar, mas pensando no mundo em crise, não contestou Zhao Zhong.

— Claro que outros são capazes, e Rong Xia confiará neles. — Shi Jin virou o rosto para a árvore de hibisco no pátio —, mas não será cruel comigo.

— Tem rancores antigos? — Zhao Zhong ficou curioso. Parecia que Shi Jin e seu mestre não tinham conflitos.

— Talvez. — Shi Jin fechou os olhos, parecendo não querer dizer mais.

Vendo-o assim, Zhao Zhong levantou-se e despediu-se com muita diplomacia, saiu do pátio e viu Du Jiu parado do lado de fora, olhando ao redor:

— Onde está o meu senhor?

— Fui visitar os soldados feridos com a general Ban. — Du Jiu encostado na parede, com a espada nos braços, viu Zhao Zhong sair e perguntou: — Você falou para Shi Jin agir?

— Pelo que vejo, ele não parece muito leal à corte. Só não sei por que não quer ser leal ao senhor. Também disse que eles têm velhas mágoas. — Zhao Zhong franziu o cenho —. Que tipo de mágoa?

O rosto de Du Jiu ficou surpreso. Estendeu a mão e deu um tapinha no ombro de Zhao Zhong:

— Irmão Zhao, isso não é da sua conta. Se Shi Jin não quiser, paciência.

— Então você devia me contar o que está acontecendo. — Zhao Zhong ficou ainda mais curioso.

— Quanto menos gente souber, melhor. — Du Jiu balançou a cabeça —. Irmão Zhao, não seja tão curioso.

O que você quer que ele diga? Que Shi Jin tem interesse na general Ban, mas o senhor não gosta disso? Como guarda-costas pessoal do senhor, ele confiava não só na força, mas também na astúcia.

Depois que Ban Hua e Rong Xia visitaram os soldados feridos, foram assistir ao treino dos soldados. Entre o grande grupo, havia alguns soldados com armaduras da corte, tão finas que até uma adaga poderia perfurá-las, quanto mais proteger das flechas voando da frente.

Após a captura do exército imperial, alguns ainda resistiam, mas depois do café da manhã do exército Rong, a resistência diminuiu muito.

Quando Ban Hua e Rong Xia chegaram, o almoço estava prestes a começar. Baldes de wowotou (pão de milho cozido no vapor) e mingau grosso foram distribuídos, e os soldados capturados da corte receberam o mesmo tratamento, só que o exército Rong tinha dois acompanhamentos, e eles só um.

Mas ainda estavam satisfeitos, pois havia óleo estrelado e, se tivessem sorte, conseguiam um pedaço de carne do prato. Pegavam e lambiam.

O pão de milho cozido era bem rústico, o mingau também era feito com arroz velho, mas não tinha cheiro estranho e estava quente na hora de comer.

Ban Hua viu o exército imperial agachado no chão, comendo com grande apetite em tigelas grossas, e sentiu algo indescritível no coração. Embora se desse bem com esses soldados, mal conseguia engolir a comida, e bebia só alguns goles do mingau, especialmente o pão de milho que ficava preso na garganta. Provou uma vez e quase cuspiu.

— Meu senhor! General! — Os soldados que tinham comida acharam Ban Hua e Rong Xia e se levantaram para saudá-los.

— Comam direito. — Ban Hua disse com a cara séria —. Ninguém levanta para saudar. Se alguém levantar de novo, vou puxar para o palco e chutar o traseiro!

Os soldados caíram na gargalhada, mas depois dessa frase, realmente se soltaram mais. Enquanto escondiam o mingau na tigela, olhavam disfarçadamente para Ban Hua e Rong Xia.

Rong Xia já sabia como Ban Hua se relacionava com os soldados no dia a dia. Em termos de convivência com soldados comuns, Rong Xia achava que não era tão carismática quanto Ban Hua. Não se sentiu incomodada ao ouvir as palavras vulgares de Ban Hua. No começo ficou um pouco chocada, mas agora já estava acostumada.

Além disso, os soldados se adequavam melhor a esse tipo de comunicação, então parou de apontar dedos para as ações de Huahua.

No acampamento militar, Huahua não ligava muito para a relação com os conselheiros, e eles também não interferiam no jeito de Huahua. Era respeito mútuo.

Rong Jiajun relaxou, e o exército imperial estava meio amarrado. Ao ver Ban Hua e Rong Xia chegando, segurando as tigelas, não sabiam se levantavam ou continuavam comendo com dificuldade.

Ao acordar cedo naquela manhã, estavam amarrados como gafanhotos, cercados por rebeldes lá fora, sem chance de resistência, apenas trazidos para cá.

Eram mais de dez mil, obviamente muitos não estavam amarrados, mas vieram de boa vontade, tão honestos que os soldados do exército Rong se sentiram até mal.

— Todos são iguais, quem deve comer, que coma direito. — Rong Xia não pôde deixar de suspirar por dentro ao ver o olhar acuado e entorpecido do exército imperial —. Meu senhor e eu viemos só para ver como todos estão comendo.

— General, — o líder do exército Huotou se aproximou com sorriso brincalhão —, embora nossa comida não seja tão boa quanto a caseira, garantimos que vocês ficarão satisfeitos. Fiquem tranquilos.

— É bom se conseguirem nos encher bem. — Ban Hua virou a cabeça satisfeita e olhou para Rong Xia —. Mestre, ainda quer ver mais?

— Esquece, se estivéssemos aqui, eles não precisariam comer tão bem. — Rong Xia juntou as mãos —. Todos os soldados trabalharam duro, não tenho como retribuir, só posso agradecer com educação. Depois disso, caminhou até os soldados e fez uma profunda saudação.

— Meu senhor! — Aqueles homens honestos ficaram vermelhos —. Lutaremos até a morte pelo povo e pelo senhor!

Os gritos foram fortes — era a determinação de um grupo de homens apaixonados.

O Exército Imperial olhava para aquelas pessoas em silêncio, sem saber se estavam assustados com o rugido ou confusos com as ações deles.

O acampamento militar era enorme, dividido em vários grandes campos. Depois que Rong Xia e Ban Hua passaram por eles um a um, Ban Hua sentiu tanta fome que parecia que o peito ia colar nas costas. Ela estava montada a cavalo.

— Você confundiu a visão do rei Changqing, está planejando atacar pelas costas?

— Quem me conhece é a Huahua — Rong Xia assentiu —. O rei Changqing é uma pessoa extremamente convencida e também muito desconfiada.

— Uma pessoa que acha que te conhece bem? — Ban Hua acrescentou —. Ainda lembro do estorninho que quebrou o pescoço no palácio de Changqing. Quem você acha que ensinou o estorninho a falar aquilo?

— Não importa quem ensinou — Rong Xia viu claramente —. O importante é que o rei Changqing quer que você veja esse assunto.

Quanto mais pessoas via, mais inocente ele parecia, especialmente quando viu Ban Hua e Ban Heng, irmãos leais ao imperador Yun Qing.

Ban Hua de repente lembrou que realmente havia boatos sobre o rei Changqing naquela época. Talvez ele tenha recuado para fazer o imperador Yunqing acreditar que muitas pessoas iriam atacá-lo de novo e que ele era uma vítima inocente.

Quando se acha alguém suspeito, passa a achar suspeito em tudo. Ban Hua lembrou que, durante uma caçada no outono do ano anterior, teve uma disputa com Jiang Luo no campo de caça. No fim, o rei Changqing repreendeu Jiang Luo, que não contestou. Agora parece que não era respeito aos mais velhos, mas porque Changqing apoiava Jiang Luo pelas costas.

O rei Changqing escolheu apoiar Jiang Luo provavelmente não porque o valorizasse, mas porque Jiang Luo não era inteligente o bastante para ser enganado, e Changqing tinha ambições.

— Não esperava que o rei Changqing fosse assim — disse Ban Hua —. Eu não tinha muita relação pessoal com ele, mas tinha uma boa impressão no começo. Parece que minha visão é ruim. Não sei em quem eu confio.

— Quem disse que você tem mau olho? Você até me achou, que bom olho! — Rong Xia disse sério —. Eu discordo disso.

— Não esqueça de se elogiar agora, que sem vergonha. — Ban Hua olhou para ele, impassível, e deu um tapinha no traseiro do cavalo para que ele andasse mais rápido. Rong Xia apressou-se atrás, e finalmente alcançaram a mansão temporária à frente.

Já passava do meio-dia, os guardas trouxeram comida para os dois, e Ban Hua pegou a tigela e comeu sem frescura.

— Huahua, te fiz passar por isso.

Quinze minutos depois, Rong Xia olhou para a tigela vazia de Ban Hua, sentindo ainda mais incômodo.

— Sabendo que me esforço, trate-me melhor daqui para frente — Ban Hua enxaguou a boca com chá de ervas, limpou os cantos da boca e disse —. Quando vamos sair do acampamento?

Qingsong estava agora sob seu controle firme. Exceto as notícias que queriam que o rei Changqing soubesse, nenhuma outra se espalhava. Talvez, naquele momento, Changqing ainda estivesse travando guerra de desgaste junto ao rio em Yongzhou, sem saber que Rong Xia trouxera a maior parte de seu exército para Qingsong.

— Amanhã o tempo estará bom, então é recomendável sair. — Rong Xia olhou para Ban Hua —. Mas tenho algo mais importante para te contar agora.

— Fala. — Ban Hua tirou o capacete, e retirou a armadura pesada do corpo. Assim que tirou a coroa que prendia o cabelo, seu cabelo preto caiu solto, parecendo um gato preguiçoso sem ossos, deitado no sofá.

Os olhos de Rong Xia escaparam para ela, mas, pensando no que ia dizer, voltou a ficar sério:

— Espero que não se arrisque de novo no futuro, vou ficar muito preocupado.

— Hã? — Ban Hua arregalou os olhos —. Você quer dizer o que aconteceu ontem?

Rong Xia sentou-se ao lado dela, falou com sinceridade:

— Nenhum plano é infalível, e se algo der errado, não quero nem pensar nas consequências.

— Para onde você foi? Vários generais do exército imperial eram da família Ban, mesmo se eu fosse capturada por eles, não me humilhariam. — Ban Hua disse casualmente —. O exército imperial é um peneirão, que perigo poderia haver?

— Huahua! — Rong Xia disse com a face abatida —. Mas sempre há imprevistos no mundo, e eu não quero arriscar isso.

Ban Hua viu o tom errado e a expressão preguiçosa desapareceu:

— Você acha que tem alguém mais adequado que eu?

— Mesmo que você seja a mais adequada, não quero que vá. — Rong Xia segurou seus ombros para mostrar a firmeza da sua decisão —. Tenho muitos subordinados, mas só uma você, entendeu?

O quarto ficou extremamente silencioso, e levou um tempo para Ban Hua afastar a mão que segurava seu ombro:

— Não deixa ninguém ouvir o que você disse, ou eles nunca mais vão querer fazer sexo com você.

— Huahua, — Rong Xia ficou meio irritado — não zombe de mim.

— Sei o que você quer dizer. — O sorriso de Ban Hua desapareceu —. Mas só eu sei como me comunicar com esses antigos departamentos, e só confiam em mim. Se fosse outra pessoa, o plano talvez não desse certo. Quem faz grandes coisas não liga para detalhes.

Sei que você é ambicioso. Por que escolhe o caminho mais difícil nessas coisas? Se sou a pessoa mais adequada, não deixa os soldados fazerem sacrifícios desnecessários. Como generais, não podemos fazer nada que desanime os soldados.

— A maioria dos antepassados da família Ban foram generais do exército. Eles não sacrificavam seus subordinados por suas próprias vidas. — Ban Hua baixou as pálpebras, parecia muito calma, mas o que dizia era totalmente diferente da mulher mimada no quarto —. Sou uma dama rica que teme o sofrimento, mas lido com soldados desde criança. Tenho medo das dificuldades no acampamento, mas os admiro. Desde que cheguei ao acampamento, me chamam de general e assumo responsabilidade por eles.

— Ninguém da família Ban é covarde na guerra. Mesmo sendo mulher, não quero envergonhar o legado dos nossos antepassados. — Ban Hua olhou para Rong Xia e um sorriso surgiu em seu rosto sério —. Mas pode ficar tranquilo, nunca vou brincar com minha vida nem te deixar triste.

Rong Xia assentiu em silêncio.

— Está bem. — Ban Hua estendeu a mão e limpou sua bochecha —. Não fique chateado, me dê um sorriso.

Rong Xia deixou que ela beliscasse o rosto e, de repente, disse:

— Huahua, se você fosse um homem, eu certamente te apreciaria muito.

— Se eu fosse um garoto, por mais que você me apreciasse, não rasgaria as mangas para você — Ban Hua sorriu e revirou os olhos —. Tem tanta mulher bonita no mundo, eu tenho que apreciar devagar, como é que vou misturar com você, homem confuso?

— Então acho melhor você ser Jiao’e. — Rong Xia de repente abraçou Ban Hua pelos joelhos, a virou, deu dois tapinhas na bunda e disse, meio sem jeito —. Da próxima vez, vou bater tanto no seu traseiro que você não vai conseguir sair da cama.

— Como homem, não é habilidade apanhar tanto que não consegue levantar da cama. — Ban Hua não ficou bravo quando levou os dois tapas, só bufou baixinho —. Eu tenho capacidade...

Nem mesmo um homem aguentaria esse tipo de provocação, então Rong Xia o colocou nos ombros e o deixou andar pela cama.

Essa disputa entre homem e mulher era calorosa e viva. Embora Rong Xia não conseguisse impedir Ban Hua de sair da cama, pelo menos o rosto dele estava cheio de felicidade. Na próxima vez que fosse ao estudo discutir o grande plano com os generais, o sorriso no rosto dele seria maior que o normal.

Mesmo que aquilo terminasse, só as marcas dos beijos nos peitos de Rong Xia e Ban Hua mostravam o limite do que compartilhavam.

Na manhã cedo do segundo dia, o exército partiu. Rong Xia deixou gente para guardar o condado de Qingsong e o exército avançou direto para a cidade de Yongzhou.

Yongzhou e Taizhou são separados por um rio. Enquanto Yongzhou não for destruída, a Dinastia Jiang ainda tem esperança. Se a cidade de Yongzhou cair, tudo estará perdido e a corte perderá a iniciativa. Será ainda mais difícil reverter a situação.

A corte imperial também sabia disso, por isso enviou o rei Changqing e Shi Jin, que mal tinham utilidade. Pena que a corte está cheia de mariposas — uns cortam custos nas armas e armaduras dos soldados, outros comem e desviam o que deveriam enviar de grãos e pastagens.

Deixam os cavalos correrem, mas não deixam os cavalos pastarem. A corte imperial está assim; como pode esperar que os soldados se esforcem para matar o inimigo?

De Qingsong a Yongzhou, numa marcha rápida, leva cerca de dois dias e uma noite para chegar.

Quando o rei Changqing estava prestes a enviar tropas para atravessar o rio e atacar o exército da família Rong, os arredores da cidade de Yongzhou já estavam cercados pelo exército da família Rong em grande número. Ao ver o ameaçador exército da família Rong, os soldados nas torres de vigia ficaram tão apavorados que suas pernas ficaram bambas. Eles seguravam as bandeiras de comando e faziam gestos para os defensores abaixo, avisando que o exército da família Rong estava chegando.

— Os rebeldes estão vindo!

— Os rebeldes estão vindo!

No meio desse grito, havia mais pânico e vontade de fugir do que sangue e raiva.

O rei Changqing ainda esperava que Rong Xia liderasse o ataque pela ponte, mas, quando virou a cabeça, ouviu os soldados relatarem que o exército de Rong atacava pelo norte, e o portão norte de Yongzhou ficava na direção do condado de Qingsong.

— Quantos são?

O rei Changqing achava que era o exército liderado por Ban Hua, e ainda estava um pouco insatisfeito com Shi Jin em seu íntimo. Não conseguia nem parar uma mulher, que inútil desperdício.

— Yuan, marechal, pelo que vejo, deve ter mais de 50 mil.

— Como assim?

O rei Changqing virou-se de repente para olhar o soldado que trazia a notícia:

— Como pode haver cinquenta mil?

— Meu subordinado viu o caractere Rong na bandeira do líder — disse o soldado com admiração —. Suspeito que Rong Xia esteja liderando pessoalmente as tropas.

— Vou lá dar uma olhada imediatamente!

O rei Changqing montou no cavalo e disparou impaciente.

Nesse momento, os dois lados ainda se continham e trocavam insultos. Um lado xingava os membros femininos da família do outro, e o outro revidava. Depois das ofensas mútuas, até as tábuas dos caixões dos antepassados de dezoito gerações não eram poupadas.

Xingar pode parecer vulgar, mas é muito útil. Quando gritam uns com os outros, os generais adversários não conseguem controlar a respiração e podem cometer erros no comando do campo de batalha. Às vezes, um erro significa a diferença entre a vitória e a derrota.

— Sua avó tem perna, por que deu à luz um porco ou cachorro como você? — Um veterano do exército da família Rong bateu na coxa e xingou —. Pena que não fiz xixi na parede naquela época, teria sido melhor do que você hoje, que nem pai merece ser chamado.

— Bah, que coisa, você se acha o avô. — O general no portão da cidade não mostrou fraqueza e respondeu xingando.

— General Wang, por que guarda essa criatura tão ingrata? — Ban Hua falou de repente —. Como pode um inútil tão cruel e sem justiça morrer?

Terminando de falar, Ban Hua levantou a mão, fez sinal e ordenou a alguns arqueiros que estavam preparados para disparar flechas direto contra quem mais xingava.

— Melhor matar esse petulante desobediente para não prejudicar o mundo.

125

A velocidade de Ban Hua era tão rápida que as ofensas entre os dois lados aconteciam em pleno vigor. Embora ela tenha disparado a flecha sem acertar a cabeça do oponente, acertou o braço dele. Os movimentos de Ban Hua eram como um interruptor, e os arqueiros prontos do exército da família Rong, protegidos pelos portadores de escudo, soltaram suas flechas em uníssono.

Essas pessoas já haviam atacado o condado de Qingsong junto com Ban Hua, então cooperavam muito bem. Do começo ao fim, seguiam o princípio de não falar nada quando podiam agir. Mesmo que falassem, era para confundir o inimigo, inflamando as chamas da guerra.

O exército imperial não esperava que o exército da família Rong fosse tão ardiloso. Eles claramente xingavam e atacavam ao menor desentendimento — isso parecia diferente da rotina anterior?

— Que pessoa desprezível — disse o soldado atingido pela flecha, segurando o ferimento e ofegante —. Hoje eu tô aqui, não vou deixar eles entrarem na cidade!

A guerra sempre seria sangrenta, com sons de luta e choro. Alguns ficaram com os olhos vermelhos, sem sentir dor nem cansaço.

— Cinco taéis de prata serão dados para quem matar cinco inimigos, e quinze taéis para quem matar dez. Se matar um general inimigo, será premiado com um cargo ou título. Rápido, irmãos! — Du Jiu carregava a espada ensanguentada, cavalgou até o portão da cidade, e o aríete bateu no portão repetidas vezes. O velho portão, já deteriorado há muito tempo, finalmente cedeu sob o impacto contínuo e desabou.

O exército imperial que estava escondido atrás do portão saiu em peso, e homens e cavalos de ambos os lados lutaram juntos. Todo o terreno fora do portão ficou manchado de sangue.

Ban Hua também queria avançar, mas foi contida por Rong Xia.

— Como general, não seja impulsiva — Rong Xia montava a cavalo, olhando a bandeira real na muralha com expressão impassível —. Essa guerra não chegou ao ponto de precisar acabar assim.

Ban Hua desembainhou a espada, apertou o punho e respondeu:

— Entendido.

— Marechal, o portão está quebrado! — Um soldado parou o rei Changqing, que estava apressado —. Rápido, o portão não vai aguentar muito.

Eles também não esperavam que o portão de Yongzhou estivesse tão deteriorado. O que os oficiais locais estavam fazendo? As mansões foram construídas de forma magnífica, mas não há dinheiro para consertar os portões?

Agora, o descontentamento do exército imperial não adiantava nada. O único objetivo era proteger o marechal na retirada e impedir que os rebeldes fossem alcançados.

O general Shi já havia sido levado embora. Se o marechal fosse capturado também, o exército imperial realmente seria exterminado.

Os gritos de batalha do lado de fora da cidade ecoavam, o rei Changqing ouviu os gritos se aproximando, cerrou os dentes e falou para os que estavam ao redor:

— Saiam daqui!

Yongzhou não podia ser mantida.

Nunca passou pela cabeça dele que Rong Xia tivesse tantos recursos, e que o armamento e armadura dos rebeldes estivessem já preparados. Caso contrário, como poderiam ser melhores que o exército imperial?

Rong Xia era tão corajosa e já tinha tanta ambição desde cedo.

Embora o rei Changqing sentisse ódio por dentro, sabia que não era hora de mostrar isso. Pediu aos subordinados que arrumassem rapidamente suas coisas, montassem nos cavalos e fugissem. Com medo de serem alcançados pelos rebeldes se andassem devagar demais, descartaram itens pesados e difíceis de carregar.

Usaram ações práticas para mostrar o que significa abandonar armaduras e equipamentos.

Rong Xia entrou pela porta de Yongzhou, pisando num mar de sangue. O cheiro de sangue dominava a cidade, e o som distante de lamentos tornava aquele lugar um verdadeiro inferno na terra.

Ban Hua evitava o sangue no chão, virou-se para Du Jiu e disse:

— Leve gente para cuidar dos soldados feridos e fique atento aos soldados do exército imperial caídos, não podemos ser surpreendidos por uma emboscada.

— Sim — Du Jiu respondeu e saiu para cumprir a ordem.

— Hua Hua — Rong Xia olhou para Ban Hua e segurou sua mão —. Fique sempre ao meu lado, tudo bem?

— Seu coração não vai mudar, e eu vou corresponder — Ban Hua ajeitou as roupas —. Não pense demais, enquanto você não me decepcionar, estarei sempre com você.

— Meu senhor, general — Zhao Zhong chegou rápido montado num cavalo veloz —. O rei Changqing fugiu.

— Fugiu? — Ban Hua riu sarcasticamente —. Só demorou algumas horas, ele abandonou os soldados e saiu correndo sem hesitar. Que príncipe tão bondoso e justo.

Zhao Zhong viu as mãos firmemente unidas dos dois e disse com um sorriso seco:

— Vamos perseguir?

— Não precisa — Rong Xia respondeu —. Vamos descansar em Yongzhou por enquanto. Daqui a quinze dias, vamos direto à capital acabar com os traidores e ir ao tribunal!

— Sim! — Zhao Zhong sentiu o coração arder e os olhos brilharam.

O rei Changqing fugiu até Ming Yuzhou, que fica perto da capital, antes de finalmente se sentir seguro. Agora, derrotado e fugindo, ele teria que dar explicações à corte. Pensou bastante e mandou seus subordinados enviar ouro, prata e joias a vários ministros de confiança do imperador Fengning, junto com uma petição declarando culpa. Segundo ele, a falha não fora sua liderança, mas um traidor no quartel que vazou os planos militares.

Quem era esse traidor?

Naturalmente, o tio do príncipe, Shi Jin. De qualquer forma, agora que Shi Jin estava capturado, toda culpa recaiu sobre ele, e o rei Changqing se livrou da pressão.

Jiang Luo recebeu a petição do rei Changqing, e diante dos oficiais próximos, acusou Shi Jin de todas as falhas. Furioso, executou toda a família Shi, rebaixou-os de posição e os humilhou ainda jovens. A família Shi, outrora próspera, entrou em decadência total.

Alguns suspiraram, outros sentiram pena, e mesmo os mais racionais podiam suspeitar que o rei Changqing mentia, mas o imperador acreditou, e o que poderiam fazer? Além disso, quando a família Shi teve poder, fez muitos inimigos, então ninguém queria defendê-los agora.

Quando a notícia chegou a Yongzhou, Shi Jin copiava escrituras em seu quarto.

— Meu pai... foi decapitado? — com a voz rouca, Shi Jin sentou-se no banquinho, atônito. A tinta na ponta do pincel espirrou e manchou toda a folha. Mas, naquele momento, quem se importaria com um pedaço de papel?

Vendo-o assim, Zhao Zhong sentiu um pouco de pena:

— Por favor, aceite meus pêsames.

Shi Jin balançou a cabeça em branco, largou o pincel e disse a Zhao Zhong:

— Obrigado, senhor Zhao, quero ficar quieto um pouco.

— Adeus — Zhao Zhong saiu, balançando a cabeça e suspirando.

Três dias depois, Shi Jin vestia uma roupa simples de algodão limpa, o cabelo preso por uma coroa prateada. Sua aparência parecia boa, mas os olhos estavam vermelhos, sem conseguir se apagar. Procurou Rong Xia e lhe fez uma grande oferta:

— Eu sou Shi Jin, e estou disposto a trabalhar feito um cão e cavalo pelo Marquês de Cheng’an.

Rong Xia olhou para ele parado sob o sol e, depois de um tempo, perguntou:

— Está disposto?

— Disposto — respondeu Shi Jin com um sorriso amargo —. Estou só agora, sem nada a perder. Seguindo o senhor Hou, pelo menos não serei condenado pela minha consciência.

— Senhor Shi, é muita gentileza — Rong Xia saudou Shi Jin —. Contarei com o senhor daqui pra frente.

— Não se atreva — Shi Jin respondeu com firmeza —. O subordinado Shi Jin já encontrou seu senhor.

Ban Hua, vestida com um vestido em tons aquarelados, estava parada do lado de fora da porta. Shi Jin estava de costas para ela, e ela não conseguia ver sua expressão. Ele também não sabia que a mulher por quem tinha um crush estava ali, atrás dele.

Ban Hua ficou parada por um tempo, mas não avançou para não atrapalhar os dois. Virou-se e saiu do quintal, caminhando sob o sol.

— General — Madame Zhao segurava as mãos das duas crianças, saudou ao vê-la e sorriu —. O tempo está bom hoje, por que não dá uma volta pela cidade?

Ban Hua estendeu a mão e tocou levemente as cabeças das duas crianças, sorrindo para Madame Zhao:

— Venham, vocês dois macacos pequeninos também devem estar entediados.

Ela costumava se preocupar que espiões do exército imperial estivessem na cidade, então os familiares dos soldados não podiam sair. Agora, depois de tantas inspeções e até barracas montadas para viver, Ban Hua ficou aliviada em deixar as crianças saírem.

— Está meio chato — concordou Zhao Dalang —, mas dá pra aguentar.

— Já sabe aguentar tão jovem — Ban Hua coçou a cabeça dele com o chicote —, isso é mérito do seu pai.

Zhao Dalang passou a mão na testa e sorriu de lado. Seu irmãozinho se soltou da mão de Madame Zhao, correu até Ban Hua e tirou de seus braços um doce malfeito:

— Mestre, deixei isso pra você.

— Obrigada, Erlang — Ban Hua pegou o doce, não ligou se estava sujo, jogou na boca e comeu.

Com os guardas, o grupo saiu da mansão provisória, e Ban Hua gastou dinheiro comprando várias bugigangas para as duas crianças. Alguns donos de barracas nem quiseram aceitar o dinheiro dela, então ela não insistiu, só largou a grana e foi embora, parecendo uma bolsa de dinheiro ambulante.

Quando chegaram ao pé de um muro, um menino de menos de dez anos chorava alto. O rosto sujo, roupas em farrapos. Madame Zhao não aguentou e tentou ajudar, mas foi parada por Ban Hua.

— Madame Zhao — Ban Hua olhou para o menino que chorava cada vez mais triste, com o rosto frio —. Em tempos difíceis, às vezes uma criança pode não ser só uma criança. É melhor tomar cuidado.

O coração de Madame Zhao tremeu. Ela olhou o menino com atenção e realmente não viu nada estranho.

— Você não percebeu que as crianças que estavam brincando há pouco, quando nos viram, baixaram a voz sem perceber? — Ban Hua levantou o queixo —. Crianças sem proteção dos pais precisam ser cautelosas, entende?

Madame Zhao entendeu de repente. Pensando no que fizera há pouco, respirou fundo: se esse menino tiver algum problema, ela...

Ban Hua sinalizou para o guarda:

— Leve essa criança para o salão das crianças, e deixem-no bem vigiado, mas não o maltratem.

— Sim.

Madame Zhao olhou para a deslumbrante Princesa Fuller, sentindo-se intimidada. Ela realmente era uma princesa admirada por todos os filhos e filhas do exército. Agia com cautela e firmeza, muito mais experiente que uma mulher como ela.

Por algum motivo, Madame Zhao sentiu um pouco de inveja.

Deve ser muito interessante a vida na família da minha filha assim.

O menino levado para o salão foi descoberto em poucos dias. Era realmente um assassino treinado. Não fazia muito que havia entrado na organização, e fora notado pela organização de assassinos durante uma nevasca há dois anos. Devido à situação grave recente, esses jovens assassinos foram enviados em missões.

Esse pequeno assassino entrou na organização apenas para conseguir comida. Aquela fora sua primeira tentativa — e falhou.

Percebendo que a comida do salão não era pior que a da organização, ele foi capturado novamente e acabou contando tudo que sabia. Ainda não havia sido doutrinado pela organização, e sua personalidade pragmática prevaleceu. Entregou a organização sem nenhuma pressão.

Só então Ban Hua soube que essa organização de assassinos fora a responsável por tentar matar Rong Xia, e que, por terem sofrido sérias perdas, estavam enviando todas as crianças para as missões.

Depois de descobrir o esconderijo deles, Ban Hua decidiu que, ao voltar para a capital, destruiria essa organização.

Três dias depois, o exército partiu, e o exército da família Rong avançou invicto o tempo todo. Ninguém resistia. Em menos de três meses, chegaram ao estado mais próximo da capital: a Prefeitura de Yujing.

Yujingzhou era um lugar próspero. Alguém já disse sem rodeios que, com Yujingzhou na capital, o espírito do dragão ficaria mais vigoroso. Para a corte imperial, Yujing era a última linha de defesa.

Ao saber que Rong Xia havia atacado Yujing, Jiang Luo não conseguia comer nem dormir, e chegou a interromper sua fuga da capital. Só voltou ao juízo quando soube que Rong Xia enviou pessoas para cercar sua rota de fuga.

Agora, Yujingzhou e a capital estavam como carne gorda cercada em círculo, sem como escapar, apenas esperando o dia em que seriam devoradas. A não ser que essa carne gorda se transforme em um lobo faminto e se levante para resistir.

Comparado com os nobres e membros da família real em pânico, o povo da capital parecia muito mais calmo. Já havia muito tempo que ouviam falar sobre isso. Cheng Anhou avançava como uma dádiva dos céus. Em apenas um ano, conquistou mais da metade do território de Daye. Alguns condados até o receberam calorosamente.

Depois que o exército de Cheng Anhou entrou na cidade, não perturbou nem roubou ninguém, o que foi muito mais generoso do que o exército imperial.

Não é à toa que dizem que os céus enviam milagres para lembrar o povo de que haverá um Senhor Ming para substituir o Hunjun — o Mingzhu é Cheng Anhou, e o Hunjun é quem está sentado no trono do dragão agora.

Depois que toda a família fechou a porta, não resistiram e começaram a se perguntar às escondidas:

— O Marquês Cheng An já telefonou hoje?

— Ainda não.

— Já faz vários dias, o Marquês Cheng An já telefonou?

— Ainda não.

Quando será que Cheng Anhou vai ligar? O povo comum tem que lidar todo dia com esse imperador doente mental — é cansativo demais.

— Eu não posso andar, não posso lutar, o que você acha que devemos fazer? — Jiang Luo quebrou a xícara de chá na mão, e esbravejou para o ministro que estava à sua frente —. Será que é verdade que eu tenho que dar passagem pra ele?

— Majestade, por que não envia um ministro que tenha amizade com o Marquês Cheng An para recrutá-lo, oferecendo um título de príncipe ou algo assim, para que ele tenha uma saída honrosa? — disse um ministro que costumava parecer amigável para Jiang Luo —. A corte já mostrou sinceridade, se o Marquês Cheng An não entender isso, então ele tem más intenções.

— Você tem razão, então farei como disse, mas quem é a pessoa certa para enviar? — Jiang Luo não sabia com quem Rong Xia tinha bom relacionamento. Em sua memória, quando seu pai comandava a corte, Rong Xia parecia ser bem relacionada com cada ministro.

— Que tal... — o ministro revirou os olhos — mandar Yao Peiji?

— Tudo bem, vamos enviá-lo.

Depois que Yao Peiji recebeu o decreto imperial, ele estava em casa brincando com o neto. O eunuco que entregou o decreto foi arrogante, pegou a bolsa de Yao Peiji, virou as costas e foi embora sem dar satisfação.

— Que orgulho é esse? — resmungou Yao Ling —. O mestre dele vai ser rei da subjugação. Uma toca de cobras e ratos não é coisa boa.

Yao Peiji jogou o decreto de lado, acariciou a barba e disse:

— A corte é ingênua demais.

Agora que a vitória de Rong Xia está iminente, ele nem se importa com o título de príncipe. Quanto a essas palavras pomposas, são ainda mais ridículas. Neste mundo, só os perdedores se importam com palavras pomposas. A verdadeira história é escrita pelos vencedores.

— Pai, o que faremos agora? — Yao Ling segurava o rosto com as mãos, com uma expressão solitária —. Não sei como está a Princesa Fuller. É frustrante seguir Cheng Anhou passando por ventos e tempestades, e tocar em coisas ensanguentadas no campo de batalha. Dá preocupação.

Yao Peiji olhou confuso para a filha mais nova:

— Desde quando você ficou tão próxima da Princesa Fuller?

Nos últimos seis meses, a filha sempre perguntava sobre a Princesa Fule. Antes ele nem achava estranho, mas agora parecia haver algo errado na aparência da filha.

— Pai, você não entende. A beleza é um tesouro que Deus nos deu — Yao Ling balançou a cabeça —. Beleza fácil tem aos montes, mas beleza verdadeira é difícil de achar.

— Você está falando bobagem — disse Yao Peiji —. Acho que você ainda é muito jovem. Quando a capital se acalmar, vou arranjar um casamento pra você.

— Eu acho o irmão da Princesa Fule bem legal — Yao Ling segurou o rosto —. Ele fica fofo quando sorri.

— Ban Heng? — Yao Peiji arregalou os olhos —. Aquele cara da família Ban?

— Ele não é um dândi qualquer, é um dândi diferente — disse Yao Ling séria —. É bom se casar com ele.

Yao Peiji hesitou por um tempo antes de dizer:

— Se você quer se casar com alguém, tem que estar disposta.

Yao Peiji, que deixou a filha sem palavras, saiu cedo na manhã seguinte com alguns criados e partiu de Pequim rumo à Prefeitura de Yujing.


Na Prefeitura de Yujing.

Ban Hua estava ensinando os soldados a atirar quando ouviu os enviados vindo da capital. Jogou a arma de prata que tinha na mão para um dos soldados, limpou o suor da testa e perguntou:

— Quem chegou?

— Yao Peiji — respondeu Du Jiu.

— Ele? — Ban Hua arqueou as sobrancelhas e caminhou rapidamente até a tenda principal. Justamente naquele momento, viram várias caixas de ouro, prata e joias sendo levadas para dentro da tenda. Vários eunucos que faziam a guarda do lado de fora viram Ban Hua, mas nem sequer ousaram levantar a cabeça.

Eram todos eunucos enviados pelo palácio para vigiar Yao Peiji.

Ao entrar na tenda, ouviu um eunuco gritar com raiva:

— Marquês Cheng An, quer trair o país?

Ban Hua avançou e deu um chute no eunuco, que caiu no chão. Depois de ficar um tempo no quartel, ela estava ficando cada vez menos diplomática.

O enviado jazia no chão, ainda atordoado, e depois de um tempo resmungou:

— Quem é você, que ousa chutar um membro da família real?

Ban Hua pisou nas costas do eunuco e zombou:

— Você é só um cão do lado de Jiang Luo, que se atreve a latir aqui? Isso aqui é o quartel principal do exército da família Rong, não o palácio do Jiang Luo. É melhor calar a boca, ou eu mando te arrastar e cortar sua língua.

— Princesa Fule, você, como ousa! — O eunuco, que conhecia Ban Hua de vista, mesmo sem ver seu rosto deitado no chão, reconheceu pela voz quem era.

— Pode tentar — Ban Hua zombou e tirou o pé do eunuco —. Vai lá, dá uma voz.

O rosto do eunuco ficou vermelho, depois pálido, depois azulado, mas ele realmente não ousou gritar mais.

— Não seria melhor ter calado a boca antes? — Ban Hua se aproximou de Rong Xia e sentou-se. Os dois ficaram lado a lado, sentados numa cadeira longa e larga, sem nenhuma diferença entre eles.

— Vejo que sua testa e nariz ainda estão suados — Rong Xia enxugou com um lenço —. Por que precisa fazer isso? Cuidado para não sujar os pés.

— Eu não sei ser engraçada, será que ainda vou aguentar ele? — Ban Hua tomou meio copo de chá —. Vocês falem aí, eu vou só ficar sentada sem atrapalhar.

Yao Peiji, que estava sentado ao lado, parecia um velho sábio que não via nada, desde que Ban Hua começara a chutar o eunuco. Depois de ouvir o que Ban Hua disse, levantou-se e juntou as mãos para Rong Xia:

— Marquês Cheng An, o velho aqui é só educação.

— Mestre Yao, não precisa de cerimônia, por favor, sente-se — Rong Xia nunca perguntou a Yao Peiji o motivo da visita, e depois de muito discutir, ele finalmente explicou.

— Título de príncipe?

Rong Xia arqueou as sobrancelhas com um leve sorriso:

— Não sei que título é esse.

— Zhongming.

— Uma lealdade que pode ser aprendida com o sol e a lua? — Rong Xia tomou um gole do chá que Ban Hua acabara de beber e balançou a cabeça lentamente —. Esse título não é bom.

— Que título o Marquês prefere, a corte com certeza lhe dará.

— O título não importa, eu só quero ver Sua Majestade e o Príncipe Herdeiro — Rong Xia pousou a xícara —. Se não vir Sua Majestade e o Príncipe Herdeiro, não vou conseguir dormir nem comer.

Quando fala de Sua Majestade, Rong Xia certamente não se refere ao Imperador Fengning, mas ao Imperador Yunqing, sem rosto.

Yao Peiji fingiu não entender e continuou a beber chá com a cabeça baixa.

— Senhor Hou, Sua Majestade é o herdeiro nomeado pelo Supremo Imperador, o que quer dizer com isso? — O eunuco que estivera calado por tanto tempo não aguentou e falou novamente —. Sua Majestade é filho do Supremo Imperador, como poderia ser...

— Boom!

Uma xícara explodiu a seus pés.

Rong Xia disse com o rosto frio:

— Estou falando com Mestre Yao, como você, uma pessoa baixa, pode interromper?

— Vamos lá!

Alguns soldados de armadura de ferro entraram com caras cruéis.

— Arrastem esse eunuco e cortem sua língua — Rong Xia disse com expressão vazia —. Que barulho irritante.

Ignorando a luta do eunuco, o soldado tapou sua boca e o arrastou. Nenhum dos eunucos que o acompanhavam ousou falar. Só agora despertaram para a realidade: não estão no Palácio de Daye, e não são celebridades imperiais que até os cortesãos querem agradar. Ninguém lhes dará respeito.

O Marquês Cheng An agiu sem aviso, quem ousaria ofendê-lo?

Vendo o eunuco tagarela sendo arrastado, Yao Peiji não ficou ofendido, levantou-se e pediu desculpas a Rong Xia.

— Majestade Yao, não leve a mal, você não tem nada a ver com os erros dos outros — disse Rong Xia —. Mestre Yao, por favor, volte e diga ao Rei Ning que Rong não se importa com títulos, só quer que ele traga Sua Majestade e o Príncipe Herdeiro para garantir a segurança dos dois.

Yao Peiji não insistiu e concordou de imediato:

— O próximo oficial com certeza transmitirá a mensagem do Senhor Hou.

Yao Peiji ainda não tinha voltado à capital, e a notícia de que Rong Xia preferia não ter o título de príncipe, mas queria garantir a segurança de Sua Majestade e do Príncipe Herdeiro, se espalhou por várias prefeituras. Até na capital souberam.

Alguns gabavam-se de que Rong Xia não se curvaria ao poder, outros diziam que ele era leal, o que confirmava ainda mais que o trono de Jiang Luo não veio por caminho justo.

— Rebelou-se e ganhou boa fama? — Jiang Luo quase explodiu de raiva ao ouvir os boatos —. Vá dizer a Jing Zhaoyi que, se alguém na capital falar besteira, será preso na hora.

— Majestade, não pode fazer isso — disse um traidor com algum juízo —. Se fizer, perante o povo, só nos tornaremos mais culpados.

Jiang Luo baixou o rosto:

— Se o Supremo Imperador morrer de doença, naturalmente ninguém vai querer vê-lo.

Os outros franziram a testa. Agora que Sua Majestade assumiu o trono e o Supremo Imperador está preso em casa, matar o próprio pai não é algo que traga boa reputação. Essa questão... temo que não seja possível.

Eles não ousaram falar e só manifestaram suas opiniões em silêncio.

Jiang Luo ficou irritado com o silêncio inútil e mandou que saíssem após algumas palavras duras.

Pensou muito no salão, lembrando das preferências do Imperador Yunqing pelo príncipe, e enfim tomou uma decisão. Reuniu Wang De, o eunuco próximo ao Imperador Yunqing, e entregou-lhe um pacote de remédios.

— O pai não tem dormido bem ultimamente, e as palpitações no coração são frequentes, certo? — Jiang Luo olhou Wang De com expressão sombria.

Wang De se ajoelhou sem falar.

Jiang Luo levantou-se furioso, como se fosse chutar alguém, quando um eunuco entrou correndo.

— Majestade, não é bom!

— Rong Xia chegou à capital!


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