Capítulo 19 – Zhen Hun Incomparável


 Depois de ficar dois dias e duas noites sem dormir, nem o Homem de Ferro aguentaria ficar de pé. No momento em que Xia Ge se jogou na cama, adormeceu imediatamente, só acordando ao meio-dia do dia seguinte.

E mesmo ao abrir os olhos, ainda sentia um cansaço que vinha dos ossos, com uma dor de cabeça provocada pela exaustão.

A pequena marionete jazia calmamente ao lado da cabeceira, tendo perdido o vigor da noite anterior. A pele vítrea, antes levemente brilhante, havia se tornado acastanhada como madeira, e seu tamanho havia encolhido. Já não media mais o tamanho da palma de uma mão, mas sim cerca de uma polegada quadrada, como aquelas bonecas que crianças esculpem para brincar.

Esfregando as têmporas, Xia Ge pegou a marionete, a voz rouca de sono:
— …Por que está tão diferente de ontem?

O sistema respondeu com preguiça:
【No Fim das Contas, É Uma Marionete de Baixo Nível. Só Voltará à Aparência de Ontem Quando For Controlada Por Você.】

Xia Ge ficou encarando a marionete, sem foco:
— …E como eu “controlo” ela?

【{voz controladora de alma}】 — o sistema fez uma pausa antes de continuar:
【É A Habilidade Que Todo Mestre de Marionetes Precisa Conhecer. A Habilidade Mais Básica Para Controlar Marionetes.】

【Hospedeira, Você Precisa Saber Tocar Pelo Menos Um Instrumento.】

Xia Ge: — ……

Silenciosamente, ela enfiou a marionete no bolso e murmurou:
— Ah, vamos conversar sobre isso depois.

“Pobre mal consegue arrumar arroz pra comer. Quem tem tempo pra estudar as quatro artes?”

Canseira da porra…

Arrumar as coisas foi simples. Xia Ge lançou um olhar à foice negra pendurada perigosamente no telhado, pegou seu pingente de identificação e saiu porta afora.

O sistema achou que Xia Ge iria até o fim da vila pedir ao Carpinteiro Zhang que ajudasse a remover a enorme foice. Mas, inesperadamente, a mercadoria danificada foi direto para a montanha.

Sistema:
【……Você Não Vai Consertar Sua Cabana?】

Xia Ge:
— Hoje é dia de pagamento!

Sistema:
【……】

Bom, os noventa cobres de salário realmente eram uma grande quantia para a hospedeira.

Mas ainda assim! Uma pessoa normal não consertaria primeiro o telhado?!

Xia Ge:
— Quero ter um momento íntimo com meu dinheiro antes de ter que gastá-lo.

Sistema:
【……】 = =

O pavilhão onde Danfeng distribuía os salários não ficava longe, e não demorou para Xia Ge chegar lá. Era de fato o dia em que os discípulos externos de Danfeng recebiam pagamento, mas normalmente pegavam o dinheiro logo pela manhã. Raro era alguém aparecer à tarde — ninguém queria aumentar o trabalho dos outros.

O contador Liu Qian estava de sobrancelhas franzidas, concentrado em seu livro-razão, com papéis à frente e o pincel na mão.

— Hehe. Irmão Liu, vim buscar meu salário.

Interrompido por uma voz clara e animada, Liu Qian demorou um segundo para voltar à realidade, então levantou o olhar. Ao ver Xia Ge diante de si, sua expressão ficou desagradada:
— Xia Wuyin? Por que veio tão tarde?

— Heehee — Xia Ge coçou a cabeça — Irmão Ye me pegou hoje de manhã pra fazer uns recados pra ele. Demorei um pouco pra terminar. Vim assim que acabei.

O sistema zombou em silêncio da hospedeira, que era realmente excelente em mentir descaradamente.

— Deixa pra lá — Liu Qian relaxou a expressão. Muitos discípulos externos eram chamados temporariamente para fazer tarefas para os discípulos internos. Nada demais. E a desculpa do garoto era plausível. Com um ar estritamente profissional, Liu Qian rabiscou algumas linhas no livro:
— Xia Wuyin… trezentas moedas de cobre.

Xia Ge ficou completamente desnorteada.
Trezentas moedas de cobre?
Não devia ser só noventa?

Ainda assim, manteve um sorriso brilhante no rosto:
— Desculpe mesmo incomodar.

Liu Qian destacou um bilhete e entregou a Xia Ge:
— Vá até o caixa pegar.

Pegando o papel, Xia Ge deu dois passos na direção do caixa, depois parou.

Virando a cabeça para Liu Qian, perguntou:
— …Irmão Liu, você não me deu dinheiro demais?

Liu Qian bufou:
— O único que aumentaria os cálculos a seu favor é você mesmo. Foi sua Irmã Sênior que fez uma alteração ontem. Disse que certo discípulo externo de Danfeng havia prestado grandes serviços e, por isso, seu salário seria aumentado.

Lançando a Xia Ge um olhar oblíquo, o contador disse:
— Que sorte a sua. Agora vai logo pegar o dinheiro.

As sobrancelhas de Xia Ge se ergueram na hora. Ela foi até o caixa toda animada para receber o novo salário. Depois, pesando nas mãos o peso de tantas moedas de cobre, ela exclamou sem motivo aparente:
— Marionetinha…

O sistema respondeu com preguiça:
【Hmm?】

— Você estava certo.

O sistema ficou completamente confuso:
【???】

Dando uma risadinha “hehe” pra si mesma, Xia Ge não se deu ao trabalho de explicar.

Enquanto o sol dourado se espalhava pelos confins da terra, o jovem com a fita verde beijava sua bolsinha de dinheiro, olhos negros brilhando.

——De fato, era uma belíssima e pura jade negra.

No silêncio, instalou-se uma paz momentânea.

= =

Em algum ponto do vasto interior, um lobo invisível uivava ao longe.

— Uma canção de supressão de alma — a voz melodiosa da jovem soava arrastada, com um toque de sedução — Cante-a para todas as terras sob os céus.

Com um manto de pele escarlate cobrindo-a dos pés à cabeça, meio reclinada no telhado, a jovem segurava uma flauta branco-ossuda entre as mãos de jade. O nó vermelho da flauta tremulava com a brisa, enquanto os raios prateados da lua iluminavam suas sobrancelhas e olhos delicados — um encanto quase demoníaco. Os lábios vermelhos em contraste com a pele nevada, os traços sedutores como se esculpidos pelos próprios deuses.

Uma voz um tanto imatura soou, vinda de uma criança meio ajoelhada, com uma máscara de ferro cobrindo um lado do rosto:
— Mestre Venerada, já é tarde. Por favor, descanse um pouco.

— A luz da lua está muito bela esta noite — o tom meloso dela transbordava charme, os olhos longos e estreitos se erguendo nas têmporas. Embora fosse óbvio que tinha apenas uns 15 ou 16 anos, seu sorriso frequente era de arrepiar os ossos — Não tenho vontade de dormir.

— Entendido — respondeu o garoto em voz baixa.

A floresta noturna estava fria.

Dedos brancos como cebolinha acariciavam suavemente a flauta de osso, como se a jovem acariciasse um amante:
— E Lingxi?

— Recebi um relatório. As marionetes demoníacas que foram soltas foram despachadas por um dos discípulos seniores de Jianfeng… — o garoto hesitou por um instante — …Foi feito com um único golpe de espada.

— Mmm. — A jovem não demonstrou muita reação. Abraçando ternamente a flauta contra o peito, as mangas vermelhas longas e largas ocultando sua forma, as sobrancelhas se franziram levemente:
— Foi… Chu Yao, da família Chu de Chang’an?

Surpreso, o garoto demorou um segundo antes de assentir:
— Sim.

— É realmente uma pena — o tom da jovem era suave e gracioso —, Lingxi é um lugar tão agradável… mas sempre tem alguém morando lá cuja simples visão me enoja.

Uma frase que parecia casual, mas o corpo inteiro do menino tremeu, quase imperceptivelmente.

— Está com medo de mim? — a jovem riu baixinho. — Por que teria medo de mim?

O garoto abriu a boca para responder, mas a jovem ergueu levemente uma mão, impedindo-o.

Erguendo-se devagar, os lábios vermelhos da moça se curvaram em um pequeno sorriso:

— Tenha medo, é bom.

O garoto não ousou responder.

Foi então que a jovem cobriu a boca e riu novamente:

— Agora me diga sua opinião. Quem são as novas estrelas ascendentes de Lingxi?

O garoto abaixou a cabeça:

— Além de Chu Yao, há Chang Lan, enviado pela Ordem para assumir temporariamente o posto de discípulo sênior de Jianfeng. E também há a nova discípula sênior de Danfeng, Gu Peijiu…

— Gu Peijiu?

O som do vento cessou de repente.

— Não suporto olhar para essa grande discípula.

A criança permaneceu em silêncio.

— Bai Zhi, vou lhe dar três mil marionetes. Encontre uma forma de matar essa Gu Peijiu — disse a jovem, com a voz suave e pausada. — Está bem?

O corpo de Bai Zhi ainda tremia um pouco:

— Sim!

A brisa noturna se movia levemente, sutil e delicada.

Bai Zhi continuava ajoelhado, sentindo o vento ao seu redor, sem ousar se mexer.

Erguendo os olhos para a lua luminosa no céu noturno, a luz prateada refletia nos olhos longos e estreitos da jovem, cuja expressão era gentil e profundamente apegada.

O mundo permaneceu em silêncio por um longo tempo, até que—

— Já faz tanto, tanto tempo… — a jovem acariciou novamente sua flauta, murmurando para si mesma. Envolta em sua capa de caça vermelho-sangue, os raios prateados da lua se acumulavam em seus olhos escuros como um rio de gelo quebrado em pleno inverno: — Está na hora de alguém descobrir sobre o Zhen Hun.

As almas de ossos mortos lamentavam, e Zhen Hun era incomparável.

A melodia suave da flauta se espalhou pelo ar. Acima da vastidão, nas órbitas dos olhos de incontáveis marionetes, chamas espirituais azuis se acenderam, despertadas pelas notas da flauta.

O uivo do lobo cessou, substituído pelos baixos rugidos das marionetes demoníacas.

— Já faz tempo demais.

— Está na hora de você voltar.

— Eu não deixarei escapar ninguém que deva morrer.

A canção chegou ao fim. Milhares de marionetes rugiram. Na imensidão do ermo, as chamas azuis e aterrorizantes de seus olhos se reuniram em um vasto oceano.

Acariciando com carinho sua flauta de osso, a jovem falou com ternura:

— Eu serei, com certeza, a primeira a encontrar você.

— Só eu me lembro.

Lembro de o quanto eu te amo.

Mesmo que o mundo seja virado de cabeça para baixo, mesmo que um milhão de almas precise ser sacrificado, eu guardarei o seu pico da montanha, o seu Zhen Hun, e os seus ossos brancos. Eu estarei aqui, esperando seu retorno.

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Notas:

As quatro artes – 琴棋书画 [qín qí shū huà]: as quatro artes (cítara, Go, caligrafia e pintura), consideradas as realizações de uma pessoa bem-educada.

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