Capítulo 6 [006] Gênio e Desperdício
De acordo com as memórias do antigo dono do corpo, Liu Mufeng encontrou a única livraria da Cidade Shuangyang. Como era de manhã, a livraria havia acabado de abrir: o garoto ainda estava limpando e o dono tinha acabado de sair do quintal dos fundos.
— Ora, é o Nono Jovem Mestre! — Ao ver Liu Mufeng entrar, o dono imediatamente o cumprimentou com um sorriso.
— Tio, tenho um assunto comercial para tratar com você. Que tal conversarmos nos fundos? — disse Liu Mufeng, sorrindo para o dono barrigudo.
— Claro, Nono Jovem Mestre, por aqui, por favor! — Com um sorriso no rosto, o dono da livraria o conduziu animadamente até uma saleta nos fundos.
A rigor, o antigo dono do corpo saía muito pouco enquanto morava na casa da família Liu, então poucas pessoas o conheciam. No entanto, no mundo do cultivo, sempre há dois tipos de pessoas que acabam se tornando famosas. O primeiro tipo é o dos gênios — aqueles destinados, desde o nascimento, a esmagar os outros. Mesmo que esse tipo de pessoa não saia de casa todos os dias, ainda assim será conhecido por todos. Assim como o primo de segundo grau do antigo dono, Liu Muyan: o maior gênio da Cidade Shuangyang. Ele possuía uma Raiz Espiritual de Madeira Pura[1] e, aos seis anos, já havia entrado para a primeira seita do Continente Lingwu — a Seita Lingwu —, sendo o orgulho de toda a família Liu.
O outro tipo de pessoa que também tende a ganhar fama são os chamados “desperdícios” — especialmente aqueles vindos de grandes famílias. São pessoas com pouquíssimo talento, mas que tiveram muita sorte na hora da reencarnação. Nascem em famílias poderosas e, desde o início, têm acesso a imensos recursos de cultivo. São como parasitas nas grandes famílias, existências invejadas e desprezadas por todos os cultivadores comuns. Mesmo sem sair de casa, acabam sendo conhecidas por todos. O antigo dono era exatamente esse tipo de desperdício: um jovem mestre que nasceu com uma colher de ouro na boca, mas que não fazia nada para justificar os recursos que consumia.
Por conta da fama de “desperdício das Cinco Raízes Espirituais”[2], o antigo dono também era uma celebridade na Cidade Shuangyang. Só que, quando as pessoas falavam sobre ele, sempre o faziam com um olhar de desprezo ou inveja. Alguns cultivadores comuns até se revoltavam:
— Como alguém com tão pouco talento pôde reencarnar em uma família tão poderosa? Se eu tivesse nascido na família Liu, com certeza seria melhor do que esse lixo!
Ao chegar na saleta, Liu Mufeng se sentou em uma das cadeiras e olhou ao redor. Percebeu que o espaço era pequeno, com apenas uma mesa e duas cadeiras.
— Nono Jovem Mestre, sobre qual negócio quer conversar comigo? — perguntou o dono, ainda sorrindo.
— Tio, quantos livros você tem nessa livraria? — perguntou Liu Mufeng, olhando diretamente para ele.
— Ah, não são muitos, só pouco mais de mil — respondeu o homem, sorrindo com humildade.
— Mil livros... Que tipo de livros são? — insistiu Liu Mufeng.
— Ah, os livros aqui são todos de leitura geral. O primeiro tipo são livros de história, que contam a trajetória do Continente Lingwu ao longo dos anos, histórias de sucesso de grandes figuras e muitas curiosidades. O segundo tipo são livros de geografia, que falam dos costumes e da localização das diversas regiões. O terceiro tipo apresenta monstros e feras espirituais do Continente Lingwu. O quarto tipo fala sobre ervas espirituais e ervas venenosas. Os dois primeiros tipos custam dois taéis de prata por exemplar. Os dois últimos custam dez taéis cada. — Enquanto falava, o dono apresentava os livros com cuidado, como se fosse um verdadeiro tesouro.
— Tio, sua loja tem muitos livros, e eu não tenho como comprar todos. Veja bem, será que posso alugá-los para ler? — perguntou Liu Mufeng.
— Alugar? Como assim alugar? — Depois de uma vida inteira vendendo livros, era a primeira vez que o dono via alguém querer alugá-los.
— Assim: eu leio o livro aqui mesmo, e pago um tael de prata a cada cinco dias. Prometo que não vou sujar nem danificar o livro. Depois que eu terminar, você ainda poderá vendê-lo normalmente. Que tal? — Liu Mufeng olhava com firmeza.
Ouvindo isso, o dono coçou o queixo.
— Isso...
— Tio, pode ficar tranquilo. Eu jamais estragaria seu livro. Depois que eu terminar, ele continuará novinho. Vai ser como se estivesse ganhando dinheiro do nada! — Liu Mufeng tentou persuadi-lo com todo o empenho.
— Humm... Está bem, já que o Nono Jovem Mestre está pedindo, vou alugar os livros como sugeriu. Mas será um tael por dia — respondeu o homem, após pensar um pouco.
Ao ouvir a contraproposta, Liu Mufeng assentiu:
— Tudo bem. Mas também tenho um pedido. Quero usar essa saleta para ler. E, além disso, tio, será que você pode trocar essas duas cadeiras por uma cama de madeira? Pretendo passar as noites aqui.
Liu Mufeng sabia que, se fosse para uma estalagem, teria de gastar mais dinheiro — então por que não economizar e viver ali mesmo?
— Certo, isso é fácil de resolver. Já já providencio uma cama para o Nono Jovem Mestre. Mas quanto à comida... aí o senhor terá que se virar sozinho — respondeu o dono, prontamente concordando com o pedido.
— Combinado. Aqui está uma pedra espiritual. Estou adiantando o aluguel por cem dias! — Liu Mufeng sabia que não seria possível ler mil livros em menos de três meses, então decidiu pagar adiantado com uma única pedra espiritual.
— Ótimo, ótimo! O Nono Jovem Mestre é mesmo uma pessoa generosa! — Vendo a pedra espiritual, o dono abriu um sorriso de orelha a orelha. Com ela nas mãos, saiu imediatamente para buscar uma cama para Liu Mufeng.
Notas de rodapé:
[1] Raiz Espiritual de Madeira Pura – Também chamada de Raiz Espiritual de um só elemento (no caso, madeira). São extremamente raras e indicam um talento de cultivo extraordinário.
[2] Cinco Raízes Espirituais – Significa que a pessoa possui todos os cinco elementos (metal, madeira, água, fogo e terra) em sua constituição espiritual, o que gera uma dispersão de energia e torna o cultivo extremamente lento e difícil. É considerada a combinação mais fraca entre as possíveis.
Capítulo 7 – Primeiro Encontro
Três meses depois...
Naquele dia, Liu Mufeng estava sentado na sala de descanso lendo um livro. Ao ver que já havia terminado uma pilha de dez volumes e que o atendente Xiaosanzi ainda não havia trazido os próximos, Liu Mufeng franziu o cenho. Sem alternativa, juntou todos os livros que já havia lido e saiu da sala em direção ao salão.
No salão, Liu Mufeng devolveu calmamente os livros às estantes. Justo quando se preparava para escolher outros, viu um homem vestindo branco e usando uma máscara prateada caminhando em sua direção.
— Me dê dois livros sobre monstros e um mapa do norte. — disse o homem, com um tom calmo.
A voz era agradável, porém sem emoção — soava como a de um autômato, fria e sem calor humano.
— Tudo bem! — assentiu Liu Mufeng, percebendo que o dono da livraria atendia outros clientes, e Xiaosanzi não estava em lugar algum.
Com resignação, Liu Mufeng foi até a estante, pegou dois livros sobre monstros que já havia lido, além de um mapa que terminara de estudar na noite anterior, e entregou tudo ao homem.
— Quanto custa? — perguntou o homem, guardando os itens no anel espacial sem cerimônia.
— Cada livro custa dez taéis de prata, e o mapa também. No total, dá trinta taéis. — respondeu Liu Mufeng. Após três meses ali, ele já conhecia bem os preços e sabia onde encontrar tudo.
— Aqui. Fique com o troco. — disse o homem, atirando um lingote de prata de cinquenta taéis, antes de se virar e sair.
— Obrigado, senhor! — disse Liu Mufeng, curvando-se. Imediatamente o tratou com a reverência típica que os plebeus reservavam aos cultivadores¹, chamando-o de "senhor", como Xiaosanzi costumava fazer.
O homem não respondeu. Andava rápido, e quando Liu Mufeng ergueu os olhos de novo, ele já havia desaparecido.
Após concluir a venda, Liu Mufeng viu que o dono da livraria também terminava de atender um cliente, despedindo-se educadamente na porta.
— Chefe, vendi dois livros sobre monstros e um mapa do norte. — informou, entregando o dinheiro.
— Obrigado, Jiu Shao! Pode ficar com vinte taéis como comissão. — disse o dono, sorrindo.
— Não precisa. Também quero dois mapas, então fique com os vinte taéis. — respondeu Liu Mufeng, pegando da estante um mapa completo do Continente Lingwu e outro da região norte.
— Tudo bem, tudo bem! — assentiu o dono, satisfeito. Afinal, cada mapa custava apenas cinco taéis no atacado — ele ainda saiu no lucro.
— Chefe, onde está o Xiaosanzi? Está tudo tão movimentado e não o vi hoje. — perguntou Liu Mufeng.
— Ah, o garotinho ficou doente. Pediu alguns dias de folga, deve demorar a voltar. — respondeu o homem, com expressão abatida.
— Entendo. — murmurou Liu Mufeng. Então voltou à estante, escolheu mais alguns livros e os levou até o dono para que ele conferisse.
— Dez livros. Já li todos! — avisou.
— Ei, Jiu Shao, eu nem me preocupo mais! Esses livros não valem tanto assim. — disse o dono, rindo.
— Certo. Então vou voltar para a sala. — disse Liu Mufeng, seguindo para a sala de descanso com os livros em mãos.
Olhando suas costas, o dono da livraria bufou.
Esse jovem mestre da família Liu não era considerado um idiota? Os cultivadores costumam ler manuais de técnicas marciais, livros de cultivo e heranças de feitiços. Mas ele? Passa os dias lendo livros aleatórios. Tudo bem ler sobre monstros, pelo menos serve para se proteger quando sair em missão. Ler sobre ervas espirituais também é útil — dá pra achar mais ervas valiosas. Mas ler geografia? História? Que perda de tempo!
Alguns dias depois...
Liu Mufeng saiu da sala de descanso, devolveu os livros lidos à estante um por um e pegou os dois últimos livros num canto — eram os únicos que faltavam. Após terminá-los, não teria mais razão para permanecer ali. Afinal, já estava na livraria havia noventa e sete dias. Estava na hora de partir.
— Lixinho?
Ao ouvir uma voz feminina atrás de si, Liu Mufeng franziu o cenho. Um mau pressentimento o invadiu. Virou-se lentamente e viu quem se aproximava.
Eram dois: um homem e uma mulher.
O homem usava um manto luxuoso de brocado e segurava um leque dobrável, com ares de jovem nobre. Era Liu Cheng, primo mais velho do corpo original, filho do tio mais velho. A mulher ao lado era alta e usava um vestido azul — Liu Zhen’er, quarta prima, filha do segundo tio.
— Irmão mais velho, quarta irmã! — cumprimentou Liu Mufeng, abaixando a cabeça com respeito.
Liu Zhen’er bufou com desdém.
— Lixo, não tinha ido pra vila de Zhang? O que faz de volta aqui? Vai implorar pro vovô te aceitar de volta na família?
Ela o olhava com desprezo, como se ele fosse uma barata nojenta. Liu Mufeng achou aquilo ridículo. Sim, o corpo original era um lixo com cinco raízes espirituais², mas Liu Zhen’er também não era grandes coisas — só possuía três raízes. A diferença não é tão grande assim, e ela se acha melhor por quê?
— Não... Vim comprar arroz. Acabou lá em casa. — respondeu, tentando imitar a expressão submissa e tímida do antigo dono do corpo.
— Arroz? E por que veio à livraria comprar arroz? — retrucou Liu Zhen’er, com voz afiada.
— Ah... Vim pegar dois livros sobre ervas espirituais, queria ver quais valem mais pedras espirituais. — explicou, ainda fingindo humildade.
— Hmph, ganhar pedras espirituais? Como se fosse diferente daquilo que você planta naquele terreno inútil! — zombou Liu Zhen’er.
— Nono irmão, o mundo é perigoso, e há muitos mestres por aqui. Melhor sair menos, por segurança. — disse Liu Cheng, em tom "preocupado".
— É, sim, o irmão mais velho tem razão. Vou comprar os livros e o arroz e já volto. — respondeu Liu Mufeng, acenando com humildade.
— Ótimo que você entenda. Nosso pai te mandou pra Zhangjiacun pra te proteger. Sua força é muito baixa, não é seguro ficar na cidade. — disse Liu Cheng, escondendo seus verdadeiros pensamentos: Por que o pai não mandou esse lixo pra mais longe? Esse parasita ainda anda por Shuangyang usando o nome da nossa família. Só nos envergonha.
— Certo, eu sei. Vou cultivar bastante e trabalhar duro. O tio disse que, se eu atingir o Reino Espiritual³, poderei voltar pra família! — disse Liu Mufeng, sorrindo como um bobo.
Ao ouvir isso, Liu Zhen’er caiu na gargalhada.
— Reino Espiritual? Você? Nem em outra vida! — zombou. Um lixo com cinco raízes sonhando com o Reino Espiritual? Piada pronta.
— Quarta irmã! — repreendeu Liu Cheng, com frieza.
Ao receber o olhar reprovador, Liu Zhen’er rapidamente conteve o riso.
Virando-se, Liu Cheng olhou para Liu Mufeng com uma expressão afável.
— Nono irmão, o irmão mais velho acredita que você vai atingir o Reino Espiritual. Por isso, fique na vila, cultive duro e trabalhe no campo, entendeu?
— Sim, entendi, irmão mais velho! — Hipócrita... Acha que sou criança? Está com medo de eu voltar chorando, causar confusão e manchar a reputação da família. Liu Cheng parece gentil, mas é mais traiçoeiro do que qualquer um. Só enganava o tolo do antigo dono desse corpo!
— Jovem mestre, senhorita, desejam comprar algum livro? — aproximou-se o dono da livraria, respeitoso.
— Dois livros sobre monstros e um mapa do norte. — respondeu Liu Cheng.
— Sim, agora mesmo! — disse o homem, pegando os itens.
Ao recebê-los, Liu Cheng entregou cinquenta taéis de prata.
— Os dois livros que o nono irmão pegou também estão incluídos.
— Certo, fechamos em cinquenta! — confirmou o dono.
— En. — assentiu Liu Cheng, lançando um último olhar a Liu Mufeng.
— Irmão mais velho, quarta irmã, façam boa viagem! — disse Liu Mufeng, abaixando a cabeça para se despedir.
— Vai voltar agora? Quer que o irmão te leve? — perguntou Liu Cheng, com aquele falso cuidado.
— Não precisa, irmão. Tem uma carroça esperando no portão da cidade. Vou com ela. — respondeu Liu Mufeng.
— Tudo bem. Então estamos indo. — disse Liu Cheng, levando Liu Zhen’er consigo.
— En. — Liu Mufeng apenas sorriu e os acompanhou até a porta da livraria.
Ao vê-los partir, voltou para a sala de descanso com os livros nas mãos.
O dono da livraria, observando a cena, pensou consigo: Esse Jiu Shao tem mesmo um bom temperamento. Foi chamado de lixo na cara e nem se irritou.
Mas ele não sabia a verdade: Liu Mufeng não era calmo — ele apenas não se importava. Afinal, não era o antigo Liu Mufeng, nem tinha qualquer ligação com aquelas pessoas. Para ele, Liu Cheng e Liu Zhen’er não passavam de estranhos. Podem latir o quanto quiserem. Isso não me tira nem um fio de cabelo.
Notas de rodapé:
[1]: “Senhor” — forma respeitosa com que plebeus se dirigem a cultivadores.
[2]: Raízes espirituais — determinam o talento inato de um cultivador. Ter cinco raízes é considerado lixo; quanto menos raízes, maior a pureza e o talento.
[3]: Reino Espiritual — um dos níveis mais básicos na hierarquia do cultivo.
Capítulo 8 [008] – Reencontro
Depois de sair da livraria, Liu Zhen’er ainda parecia contrariada.
— Esse lixozinho é mesmo irritante. Foi mandado pra Vila Zhangjia, o que veio fazer de volta? Que vergonha! — bufou ela, descontente.
Ao ouvir isso, Liu Cheng lançou-lhe um olhar gélido.
— Você não sente vergonha de fazer escândalo na livraria? Gritando sem parar, quer que todo mundo saiba que ele é da nossa família Liu?
— E-eu… — Liu Zhen’er encolheu o pescoço, intimidada pelo olhar frio do irmão mais velho.
— Você não pode aprender com o Lao Wu? Seja mais esperta. — resmungou Liu Cheng, encarando-a com desprezo. Essa quarta filha é tão burra quanto um porco. Nem chega aos pés da beleza da quinta, tem apenas três raízes espirituais¹ e ainda é difícil encontrar uma família nobre que a aceite como concubina. Se não fosse útil para casamento, nosso pai já teria dado um fim nela faz tempo.
— Tá bom, irmão mais velho… — Liu Zhen’er assentiu de cabeça baixa, mas pensava: O que ele tem de tão especial? Só tem três raízes espirituais! Se não fosse pela esposa principal dele ter parido um gênio como Liu Muyan, ela não estaria se achando tanto!
— Vamos embora. — disse Liu Cheng, lançando-lhe um último olhar antes de virar as costas e sair. Liu Zhen’er o seguiu logo atrás.
Após terminar de ler os dois últimos livros, Liu Mufeng comprou mais alguns na livraria antes de sair. Em seguida, passou por um mercado e comprou um pouco de arroz espiritual para guardar em seu anel espacial.
Ao tocar seu anel interespacial, Liu Mufeng suspirou, preocupado. Só restaram 50 taéis de prata… e todas as pedras espirituais já foram usadas. Preciso voltar logo para amadurecer as ervas espirituais no campo, ou nem pedra pra cultivar eu vou ter…
Chegando à região sul da cidade, Liu Mufeng encontrou uma carroça puxada por um cavalo demoníaco. O cocheiro era um homem de meia-idade, com longas barbas e um semblante aparentemente honesto.
— Tio, quero ir até a Vila Zhangjia. Quanto fica? — perguntou Liu Mufeng.
— Vila Zhangjia? 20 taéis! — respondeu o homem, após lançar um olhar de cima a baixo nas roupas refinadas e no anel espacial de Liu Mufeng.
— Hã? Vinte taéis é muito caro! — Liu Mufeng franziu a testa. Ir de carroça de boi só custa quatro taéis. Mesmo que esse cavalo demoníaco corra mais, vinte ainda é um roubo… no máximo dez!
— Eu também estou indo para a Vila Zhangjia. Que tal dividirmos? Dez taéis cada um.
Ao ouvir essa voz eletrônica familiar, Liu Mufeng virou lentamente a cabeça… e lá estava ele: o homem mascarado, vestindo branco e usando uma máscara prateada. Mas que coincidência… nos encontramos de novo!
O cocheiro analisou o mascarado, reparando nas roupas elegantes e na aura de três estrelas no Reino Mortal Espiritual. Ele assentiu:
— Tudo bem, então. Dez taéis cada um!
— Ótimo. — disse Liu Mufeng, entregando os dez taéis. O homem mascarado também pagou a mesma quantia, e ambos subiram na carroça, um após o outro.
A carroça partiu lentamente de Shuangyang, e os dois estranhos permaneceram sentados um de frente para o outro, trocando olhares silenciosos.
— De novo nos encontramos! Qual é o seu nome? — perguntou Liu Mufeng com um sorriso simpático, tentando puxar conversa.
O homem mascarado o observou por um instante… e então fechou os olhos, ignorando-o completamente.
— Eu… — Liu Mufeng suspirou, frustrado. Pensei que seria menos constrangedor conversar, mas esse cara continua me ignorando. Gentileza não vale de nada mesmo…
Olhando de novo para o mascarado, Liu Mufeng sentiu algo estranho. Observou-o com mais atenção… e então se deu conta. Da primeira vez, na livraria, ele tinha nove estrelas no Reino Mortal Espiritual. Mas agora… só tem três. Então era isso que estava errado!
Como assim a força dele caiu tanto em tão poucos dias? Será que está escondendo seu verdadeiro nível? Ou talvez… não seja a mesma pessoa?
Ele o examinou cuidadosamente. Altura, porte físico, roupas… tudo igual ao de antes. Mas vai saber — pessoas parecidas e com máscara devem existir por aí, né?
Depois de um tempo — equivalente ao tempo que leva para tomar uma xícara de chá² — a carroça parou de repente.
— Chegamos, senhores passageiros. Podem descer. — anunciou o cocheiro.
Liu Mufeng se assustou. Já? Mas de carroça de boi levo meia hora até a vila! Essa aqui chegou em tempo de um chá? Que rapidez é essa?
O mascarado abriu os olhos, ergueu a cortina da carroça e saltou para fora.
Liu Mufeng o seguiu… e, ao descer, ficou chocado. Isso aqui é uma floresta! Não tem nada a ver com a Vila Zhangjia!
Cinco homens musculosos estavam à espera entre as árvores. Contando com o cocheiro, eram seis. Todos armados, formando um cerco ao redor dele e do mascarado.
— O quê? Isso… isso é um assalto? — pensou Liu Mufeng, empalidecendo. Mas que azar! Justo comigo?!
— Chega de papo! Entreguem seus anéis interespaciais, ou não sairão vivos daqui! — gritou o cocheiro, revelando sua verdadeira face. A cultivação que antes parecia de duas estrelas agora emanava o poder de oito estrelas no Reino Mortal Espiritual. O rosto, antes honesto, agora exalava crueldade.
— Vocês são os Seis Heróis de Zhenbei? — disse o homem mascarado com frieza, encarando os seis cultivadores, todos com força de seis estrelas.
O cocheiro ergueu as sobrancelhas, e riu alto:
— Isso mesmo! Somos os Seis Heróis de Zhenbei. Caíram na nossa armadilha, então podem desistir de sair com vida!
Com um gesto da mão, os cinco bandidos avançaram com suas lâminas em punho.
Apavorado ao ver os brutamontes se aproximando, Liu Mufeng ativou sua energia espiritual e fez as ervas daninhas no chão se enroscarem nas pernas dos inimigos, tentando atrasá-los.
Ao mesmo tempo, o mascarado liberou toda a sua aura — subindo de três para nove estrelas no Reino Mortal Espiritual! Sacou sua espada e, num único golpe, cortou dois inimigos ao meio com uma lâmina reluzente envolta em luz dourada.
— AAAAAH! — gritaram os três sobreviventes, em choque.
Empunhando a espada, o mascarado os atacou como se estivesse cortando legumes. Em instantes, todos estavam mortos.
Restava apenas o cocheiro, que agora mantinha Liu Mufeng como refém, com uma faca em seu pescoço.
— N-não se aproxime! Se vier, eu mato ele! — ameaçou o cocheiro, trêmulo de medo.
Liu Mufeng estava frustrado. Mas que sorte a minha! O dono original desse corpo ainda tinha mais três anos de vida! E eu? Acabei de vestir ele faz três meses e já vou bater as botas? Misericórdia! Se soubesse, teria vindo a pé. Uma hora de caminhada e nada disso teria acontecido!
O mascarado riu friamente.
— As cabeças de vocês seis valem cem pedras espirituais³. Acha mesmo que vou deixar de ganhar cem pedras por causa de um estranho?
— V-você… — o cocheiro tremia ainda mais.
— Pode matá-lo. Depois mato você também. Ou então, venha com tudo e vejamos se sua faca é mais rápida que minha espada. — disse o mascarado, sem hesitar.
O cocheiro começou a suar frio.
— E-eu… eu te dou tudo que tenho! Me deixa viver, por favor!
— Se eu te matar, também pego tudo. — respondeu o mascarado, indiferente.
— Maldição… — murmurou o cocheiro, humilhado. Soltou a faca e, com raiva, deu um chute no traseiro de Liu Mufeng, empurrando-o direto nos braços do mascarado. Em seguida, saiu correndo em desespero.
Ao colidir com o peito do mascarado, Liu Mufeng sentiu o leve aroma gelado do homem. Era sutil… mas incrivelmente agradável. Delicioso…
Logo se afastou, corado, e o mascarado saiu em disparada atrás do cocheiro.
Vendo os dois sumirem entre as árvores, Liu Mufeng respirou aliviado. Ao tocar o corte superficial em seu pescoço, agradeceu por ainda estar vivo.
Olhando para os corpos no chão, respirou fundo, reuniu coragem e pegou os anéis interespaciais dos mortos.
Depois, subiu na carroça, assumiu as rédeas e saiu dali o mais rápido que pôde.
Notas de rodapé:
[1]: Três raízes espirituais: Em mundos de cultivo, o número e tipo de “raízes espirituais” determina o talento de um cultivador. Quanto menos impurezas e mais raras as raízes, maior o potencial.
[2]: “Tempo de uma xícara de chá”: Medida de tempo comum em romances chineses. Equivale a cerca de 10 a 15 minutos.
[3]: Pedras espirituais: Moeda mais valiosa que a prata nesse universo. Usadas tanto como dinheiro quanto como fonte de energia espiritual para cultivo.
Capítulo 9 [009] – Cinco Métodos
Conduzindo a carruagem, Liu Mufeng voltou apressadamente para a Vila Zhangjia. Ao chegar em casa, ele amarrou a carruagem no pátio. Cambaleando para dentro da casa, desabou na cama. O suor frio já encharcava suas roupas.
Eu sou uma pessoa moderna, que vivia numa sociedade civilizada! Ele só tinha visto coisas como assassinatos pela tela do celular ou na TV. Mas hoje, aquilo aconteceu ao vivo, bem diante de seus olhos.
Depois de assimilar as memórias do antigo dono do corpo, ele sabia que o Continente Lingwu respeitava o poder marcial, onde assassinatos e incêndios criminosos eram ocorrências comuns, e ninguém se importava com isso. Todos os senhores de cidade só ligavam para ganhar dinheiro e proteger os próprios interesses. Desde que você não os atingisse diretamente, podia matar quem quisesse — não era considerado ilegal¹.
Embora cada cidade proibisse assassinatos dentro de seus limites, se alguém matasse em segredo, longe de multidões, ninguém se importava.
Mesmo sabendo que este mundo era caótico, onde a vida humana valia menos que capim... ver com os próprios olhos era diferente de saber com a mente.
Aos poucos se acalmando, Liu Mufeng disse a si mesmo:
Este é o Continente Lingwu. É aqui que vou viver de agora em diante. Preciso me acostumar com esse estilo de vida. Preciso aprender a ser alguém que pode matar — e não alguém que pode morrer a qualquer instante. Se os outros são a tábua de corte, então eu me recuso a ser o peixe sobre ela. Nunca mais quero sentir essa sensação de ter uma lâmina encostada no meu pescoço!
Pegando o espelho de bronze recém-comprado, Liu Mufeng ergueu o queixo para examinar o corte em seu pescoço. Era só um arranhão. O sangue já tinha secado, então não parecia nada grave.
Depois de verificar o ferimento, ele pegou os anéis interespaciais² dos cinco ladrões e começou a examiná-los um por um com seu poder espiritual. Descobriu que aqueles cinco sujeitos eram verdadeiros tiranos locais. Praticamente cada um deles carregava entre três a cinco mil pedras espirituais em seus anéis.
— Está feito, está feito! — segurando os cinco anéis, Liu Mufeng ficou extasiado. Mas logo depois, suspirou.
O cocheiro tinha o cultivo de oito estrelas no Reino Espiritual Mortal³, e o homem mascarado era de nove estrelas. Se não houve acidente, o mascarado provavelmente matou o cocheiro. Ambos sabiam que ele morava na Vila Zhangjia, então, fosse quem fosse o sobrevivente, cedo ou tarde viria procurá-lo.
O mascarado matou o cocheiro por causa da recompensa em pedras espirituais. Se ele descobrisse que Liu Mufeng tinha se apropriado das pedras dos cinco ladrões, era bem provável que viesse matá-lo também. Por isso, ele não podia mexer nesses anéis — pelo menos, não muito.
Depois de pensar por um tempo, Liu Mufeng decidiu pegar apenas 50 pedras espirituais de cada um dos cinco anéis — totalizando 250 pedras. Também pegou três talismãs espirituais de nível um. Não ousou tocar em nenhum outro item valioso.
Com cuidado, guardou os cinco anéis dentro de seu próprio anel interespacial.
Em silêncio, Liu Mufeng fez uma oração:
Tomara que o cocheiro e o mascarado tenham se matado mutuamente. Assim, os anéis dos cinco ladrões serão todos meus.
Nos dias seguintes, Liu Mufeng continuou cuidando de sua plantação espiritual e acelerando o crescimento das ervas como de costume. Também visitou algumas casas de agricultores locais para comprar ração para o cavalo-demônio, alimentando-o adequadamente.
Liu Mufeng pensou: Se eu levar essa carruagem para a Cidade Shuangyang, incluindo o cavalo-demônio e tudo, deve dar para vender por umas trezentas pedras espirituais. Se, depois de alguns dias, o mascarado não aparecer, eu mesmo vou vender isso tudo.
Na verdade, Liu Mufeng até pensou em fugir com o dinheiro, deixando a vila na carruagem. Mas estava com medo de ser encontrado pelo cocheiro ou pelo mascarado. Aqueles dois eram assassinos cruéis. Fugir seria o mesmo que assinar sua sentença de morte!
Ah, culpa desse meu corpo fraco e do meu cultivo baixo — apenas quatro estrelas no Reino Espiritual Mortal!
Se eu fosse mais forte, não teria que temer esses dois!
Sentado na cadeira, Liu Mufeng pegou um livro sobre história. Aquela viagem de 97 dias para estudar na Cidade Shuangyang o fez entender muito melhor o Continente Lingwu. Ele também descobriu cinco métodos para modificar suas raízes espirituais múltiplas⁴.
O primeiro método é a Pílula de Purificação Espiritual⁵. Essa pílula é a salvação para todos os cultivadores com múltiplas raízes. Tomar uma única cápsula pode transformar um cultivador inútil de cinco raízes em um gênio de raiz única. No entanto, o Continente Lingwu é apenas um plano inferior de cultivo, onde essa pílula não existe.
Para conseguir uma Pílula de Purificação, seria preciso ir até o Continente Shengtian, um mundo muito mais avançado. Mesmo lá, a pílula só aparece em leilões. E para conseguir algo em um leilão, além de muitas pedras espirituais, também é necessário ter força. Se você for fraco, será morto e saqueado.
E Liu Mufeng, um inútil de quatro estrelas no Reino Espiritual Mortal, não tem nem força nem dinheiro. Por isso, esse método estava fora de cogitação.
O segundo método é a Erva de Lavagem Espiritual. Se ingerida crua, ela é capaz de eliminar uma raiz espiritual. O problema é que essa planta só cresce em reinos secretos e lugares extremamente perigosos. Portanto, também não serve.
O terceiro método é a Pílula de Essência Pura. Essa pílula não remove raízes, mas fortalece a raiz principal e enfraquece as secundárias. Assim, o progresso do cultivador com múltiplas raízes se torna 30% mais rápido.
Essa pílula pode ser encontrada no Continente Lingwu, mas só em leilões. O antigo dono do corpo vendeu seu forno alquímico justamente para comprar essa pílula, e acabou sendo morto pelo casal protagonista que queria roubá-la. Por isso, Liu Mufeng também descartou esse método.
O quarto método é a trepadeira Bisluo, uma hera venenosa capaz de corroer raízes espirituais. Muitos usam esse veneno para incapacitar inimigos, destruindo suas raízes e tornando-os incapazes de cultivar.
Na história, houve cultivadores com cinco ou seis raízes que, inconformados com sua mediocridade, se arriscaram a usar o veneno da Bisluo para corroer as raízes excedentes. Mas os casos de sucesso são raros. O veneno é instável e muitas vezes destrói todas as raízes de uma vez, deixando a pessoa inválida. Liu Mufeng achou esse método arriscado demais.
O quinto e último método são os Insetos dos Cinco Espíritos⁶. Antigamente, existiam insetos espirituais dos elementos: metal, madeira, água, fogo e terra. Eles tinham alta sensibilidade espiritual e inteligência, capazes de detectar raízes e devorá-las seletivamente.
Se Liu Mufeng conseguisse formar um contrato com esses insetos para que devorassem suas raízes excedentes, talvez pudesse se tornar alguém com raiz única. E esse era o método com maior taxa de sucesso.
Contudo, esses insetos já foram extintos. No Continente Lingwu, só restam versões híbridas — os insetos originais, também conhecidos como "insetos inúteis". Devido ao sangue misturado, eles jamais avançam além do Reino Mortal, e por isso são considerados lixo — tanto quanto os cultivadores de cinco raízes.
Depois de muita reflexão, Liu Mufeng concluiu que, dos cinco métodos, o único que ele poderia tentar — e o mais seguro até agora — era o quinto: fazer um contrato com um inseto original para que devorasse suas raízes espirituais.
Mesmo que seja um inseto inútil, incapaz de avançar para o Reino Espiritual... com a minha força atual de quatro estrelas, talvez nem seja fácil formar esse contrato. Realmente, ser fraco é um grande defeito!
Notas de Rodapé:
[1]: Legalidade no Continente Lingwu: o sistema judicial só interfere em conflitos que envolvem poderosos ou autoridades locais. Fora isso, prevalece a lei do mais forte.
[2]: Anéis Interespaciais: artefatos mágicos usados para armazenar itens em um espaço dimensional privado.
[3]: Reino Espiritual Mortal (Lingmortal Realm): estágio inicial de cultivo espiritual, dividido em várias estrelas (níveis).
[4]: Raízes Espirituais: atributos espirituais inatos que determinam o talento do cultivador. Ter muitas raízes (cinco, por exemplo) dificulta a prática, enquanto ter uma raiz única é considerado genial.
[5]: Pílula de Purificação Espiritual (Xiling Dan): item lendário capaz de transformar o potencial de um cultivador.
[6]: Insetos dos Cinco Espíritos: criaturas mágicas antigas ligadas aos cinco elementos da natureza, usadas em rituais ou contratos espirituais.
Capítulo 10 [010] – Veio para tratar os feridos
Alguns dias depois...
Naquele dia, Liu Mufeng colheu as ervas espirituais do campo espiritual e plantou novas sementes. Depois de um dia exaustivo, só voltou para casa ao anoitecer.
Assim que chegou em casa, Liu Mufeng foi direto para a cozinha, preparou dois pratos e uma sopa para si e teve um jantar bem farto. No momento em que entrou na sala com a comida, percebeu algo errado. Um forte cheiro de sangue pairava no ar.
Com cuidado, ele colocou os pratos sobre a mesa e direcionou o olhar para o biombo de madeira. Viu uma figura saindo lentamente de trás dele. A pessoa sentou-se diretamente na cadeira, pegou os talheres e começou a comer vorazmente.
— Você... você está aqui! — disse Liu Mufeng, constrangido, ao ver o homem mascarado devorando a comida.
O que ouviu como resposta foi apenas o som de arroz sendo servido, sopa sendo tomada e comida sendo mastigada.
Liu Mufeng se aproximou e sentou-se com cautela do outro lado da mesa. Tirou cinco anéis de armazenamento¹ do próprio anel e os colocou sobre a mesa, empurrando-os até o mascarado.
Ao ver os anéis, o homem parou por um momento. Ele cessou de comer e virou-se para Liu Mufeng.
— É... eu... só guardei pra você! — disse Liu Mufeng, com um sorriso forçado.
O mascarado ficou em silêncio por um instante, mas não disse nada. Apenas voltou a comer. Só depois de terminar o segundo prato de arroz espiritual, ele colocou os talheres de lado, pegou os anéis e os examinou com seu poder espiritual. Satisfeito, os guardou.
Sem dizer palavra, o homem voltou para trás do biombo e deitou-se diretamente na cama de madeira de Liu Mufeng.
Liu Mufeng ficou paralisado ao vê-lo deitado em sua cama, sem ir embora. Olhou de relance para os restos de comida sobre a mesa. Com um suspiro resignado, serviu-se com um pouco do arroz restante.
Se ele morrer, vai virar um fantasma faminto. Só comi um pãozinho no almoço. Agora tô com tanta fome que minhas costelas estão colando nas costas... Não vou me importar com esse mascarado frio! — pensou, e começou a comer com avidez.
Depois de comer o que sobrou, Liu Mufeng recolheu os pratos e talheres, levou-os à cozinha, limpou e guardou tudo, e voltou para a sala.
Ficou parado por um momento, hesitante, até caminhar até o biombo.
Ao atravessá-lo, viu o mascarado deitado na cama.
— Vou ficar com você por dois dias — disse o homem friamente, sem emoção na voz.
— Você... está ferido? — perguntou Liu Mufeng suavemente, ao ver as roupas brancas manchadas de sangue.
O homem bufou:
— Ferimento que pode matar. Se não acredita, pode tentar.
Liu Mufeng riu sem graça.
— Só estou me preocupando com você. Precisa mesmo agir como um porco-espinho toda vez que alguém tenta se aproximar? Além do mais, não temos nenhum ódio mortal aqui, ninguém matou pai de ninguém ou roubou esposa. Por que todo esse ódio?
O mascarado o olhou fixamente, mas não respondeu.
— E o cocheiro? Você o matou? — perguntou Liu Mufeng.
— Hm — respondeu o homem com indiferença.
— Ele era da oitava estrela no Reino Espiritual Mortal, e você está na nona. Em teoria, você não deveria ter se ferido. Ele tinha cúmplices?
— Não tinha cúmplices. Fui pego de surpresa por ele — respondeu o mascarado, com expressão de frustração. Se não tivesse sido enganado, não estaria tão ferido.
— E a gravidade dos seus ferimentos?
— Já tomei o elixir.
O mascarado desviou o olhar, respondendo de forma seca.
— Ah, certo — assentiu Liu Mufeng.
Então, foi até a cozinha, pegou uma tigela limpa, retirou dois talos de gladíolo² do anel de armazenamento, lavou-os, amassou-os até virarem uma pasta, colocou na tigela e voltou até o mascarado.
— Isso é suco de gladíolo. Vou aplicar no seu ferimento, ajuda na cicatrização — disse Liu Mufeng, aproximando-se da cama.
— Não, não precisa! — respondeu o mascarado, visivelmente desconfortável.
Liu Mufeng sorriu com ironia:
— Está com medo que eu te envenene?
O mascarado apenas o olhou, seus olhos negros cheios de desconfiança.
Sem dizer mais nada, Liu Mufeng molhou o dedo na pasta e levou o suco à boca.
— Pronto, agora pode confiar.
O mascarado baixou o olhar.
— Ficarei aqui por dois dias. Quando for embora, deixo um cristal espiritual³.
Liu Mufeng sorriu.
— Tudo bem. O que você conquistou matando ele é seu por direito. Pode ficar aqui o tempo que quiser, é um lugar seguro.
Colocando a tigela de lado, Liu Mufeng começou a desamarrar o cinto do homem, mas teve a mão puxada.
— N-não precisa!
— Já testei o remédio, não é veneno. Vai continuar agindo como criança?
— E-eu faço isso sozinho! — respondeu, envergonhado.
— Consegue mesmo? Você parece bem ferido.
— N-não precisa!
— Por que tanta desconfiança? Eu nem conseguiria te vencer se quisesse te atacar. Está com medo de quê?
— Eu... eu sou...
— Não vai me dizer que é mulher, né? Impossível, seu peito é liso!
— E-eu sou Shuang⁴ — disse o mascarado, carrancudo.
— Ah... — Liu Mufeng ficou boquiaberto. Certo, é verdade... nesse mundo existem três gêneros: masculino, feminino e Shuang — pessoas que parecem homens, mas podem ter filhos... então... ele é um Shuang.
— Eu... vou esperar lá fora. Pode aplicar o remédio sozinho — disse Liu Mufeng, embaraçado, e saiu rapidamente.
Do lado de fora, fitando a porta, ele sorriu para si mesmo.
Na minha vida anterior, eu me apaixonei por um júnior, mas quando fui confessar, ele já tinha namorada. Acabei queimando a carta de amor e nunca mais me apaixonei. Sempre me senti inferior por ser gay. Mas agora... existe o gênero Shuang. Posso me apaixonar, posso casar com um marido. Esse é o maior benefício de ter reencarnado aqui. Quero mudar meu talento, meu destino... e encontrar alguém para viver em paz e felicidade.
"TUM!"
O som de algo pesado caindo interrompeu seus pensamentos.
— O que aconteceu? — perguntou ele, ao empurrar a porta e correr para dentro.
O biombo havia caído. O mascarado — não, um homem de feições refinadas, olhos brilhantes e uma pinta vermelha entre as sobrancelhas — jazia no chão, com a roupa aberta.
Liu Mufeng ficou pasmo. A beleza dele era estonteante, e a pinta vermelha o deixava ainda mais encantador.
— S-saia daqui! — disse o homem, sem forças.
Mesmo fraco, ele ainda tentava afugentar Liu Mufeng.
— Vai me dizer que reputação importa mais que sua vida? — suspirou Liu Mufeng.
— N-não se aproxime!
Ignorando-o, Liu Mufeng o pegou no colo e o colocou de volta na cama. Pegou a tigela com a pasta medicinal e olhou para o ferimento sangrento no abdômen.
O contraste entre a pele alva e a cicatriz feia era doloroso de ver.
— Olhe de novo e eu te mato! — ameaçou o homem.
Liu Mufeng apenas balançou a cabeça.
— Tão teimoso...
E começou a aplicar o remédio com cuidado.
— Mm... — o homem gemeu de dor, sua expressão contorcida. Suas mãos se cerraram.
Com cuidado, Liu Mufeng rasgou um pedaço de roupa e fez um curativo no ferimento.
— O que você está fazendo? — perguntou o homem, franzindo o cenho.
— Trocando sua roupa por uma limpa — respondeu Liu Mufeng, tirando-lhe a túnica manchada.
O homem rapidamente vestiu outra peça do seu anel.
Com um sorriso, Liu Mufeng o ajudou a se vestir corretamente e o deitou na cama, puxando o cobertor até o queixo.
O homem parecia constrangido e sem saber o que dizer.
Liu Mufeng levantou o biombo, pegou a máscara caída no chão, limpou-a com a manga e a colocou no travesseiro.
— Eu...
— Não fale nada agora. Durma. Quando acordar, a dor vai ter passado — disse Liu Mufeng, cobrindo-o com o cobertor e saindo da sala.
O homem ouviu Liu Mufeng abrir o armário, mover a mesa e estender um cobertor no chão.
Após isso, Liu Mufeng entrou de novo no quarto.
— Estou dormindo fora do biombo. Se precisar de ajuda, me chame. Meu nome é Liu Mufeng, lembre-se. Vou apagar a lamparina.
— Hm — assentiu o homem, memorizando o nome.
Liu Mufeng sorriu mais uma vez e foi embora.
Pouco depois, a luz foi apagada, e tudo ficou escuro.
Deitado na cama, o homem fitava o biombo.
Liu Mufeng... — murmurou para si, e um leve sorriso surgiu em seus lábios.
Notas de Rodapé
[1]: Anéis de armazenamento – Artefatos mágicos usados para guardar objetos em espaço extradimensional, comuns em mundos de cultivo.
[2]: Gladíolo – Planta medicinal usada nesse universo com propriedades curativas. Equivalente a ervas cicatrizantes.
[3]: Cristal espiritual (ou pedra espiritual) – Item com energia espiritual, usado como moeda ou fonte de poder em práticas de cultivo.
[4]: Shuang (双) – Um terceiro gênero comum em certos mundos de fantasia e cultivo, que se refere a indivíduos com características masculinas e femininas, inclusive a capacidade de engravidar.
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