Capítulo 76 a 80


 Capítulo 76: Ameaça

Ling Bo esperou alguns momentos em frente ao quarto de Kong Hou e não percebeu nenhum movimento lá dentro. Sua expressão mudou levemente e ela bateu novamente à porta.

— Kong Hou, você está acordada? Se me ouvir, responda.

Ela escutou com atenção. Não parecia haver sinais de vida lá dentro. O coração de Ling Bo deu um salto. Seria possível que…

— Celestial Ling Bo? — A porta do quarto ao lado se abriu e Kong Hou apareceu. — Estou aqui.

Ling Bo parou de bater na porta e se virou para olhar o outro cômodo. Aquele não era o quarto do Mestre Espiritual Huan Zhong? Naquele instante, muitos pensamentos passaram por sua cabeça. No entanto, ao ver Lin Hu surgir atrás de Kong Hou, todos esses pensamentos morreram antes mesmo de se formarem por completo.

— A caixa no seu quarto também se abriu? — Kong Hou fez um gesto para que Ling Bo entrasse. — Apareceram pedras espirituais e outros itens no quarto da Jin Ling também?

Ling Bo olhou para a caixa vazia no canto e fez uma reverência para Huan Zhong. Ele respondeu com uma leve inclinação da cabeça. Ling Bo era uma mulher que gostava da beleza. Não apenas gostava de ser bela, mas também apreciava homens bonitos — porém esse tipo de afeto era completamente ineficaz com Huan Zhong.

Ambos eram cultivadores da espada. Quando Ling Bo descobriu que aquele aparentemente mundano Huan Zhong tinha uma grande base de cultivo, sentiu um medo indescritível. Os cultivadores da espada geralmente exalavam sua energia de espada de forma tão clara que qualquer um podia perceber a diferença deles para cultivadores comuns. Mas os verdadeiramente poderosos eram aqueles que conseguiam esconder essa energia — que guardavam a espada na mente, e não na mão.

Ela nunca tinha ouvido falar de um Mestre Espiritual Huan Zhong da Seita Radiante, mas às vezes, reputação não importava. Cultivadores realmente poderosos, mesmo que desconhecidos no mundo da cultivação, causavam temor e reverência só com a presença. Ninguém ousaria provocá-los.

E ela também não ousava.

Mesmo que não gostasse de admitir, Ling Bo entendia que o respeito que muitos cultivadores tinham por ela não vinha de sua própria força, mas do medo que sentiam da Seita do Amanhecer Claro.

Por saber disso tão bem, Ling Bo sentia um tipo de inveja confusa e difícil de definir em relação a Huan Zhong.

Ela se considerava uma cultivadora justa — não sentia inveja apenas de cultivadoras mulheres, mas também de homens... até mesmo dos bonitos.

A inveja podia levar à loucura, mas o instinto de sobrevivência tornava as pessoas inteligentes. Diante de Huan Zhong, Ling Bo demonstrava perfeitamente o significado de "temer os fortes e oprimir os fracos".

Huan Zhong apenas assentiu levemente para Ling Bo e logo voltou seu olhar para Kong Hou.

— Este reino secreto pode ter desenvolvido sua própria consciência. Apesar de não haver formações nem incensos que provoquem alucinações nos quartos, ele ainda pode nos fazer entrar em um reino de sonhos.

— Em outras palavras, enquanto estivermos dentro do reino secreto, ele pode detectar nossos movimentos a qualquer momento? — Kong Hou coçou a superfície da mesa.

— O que você está fazendo? — Ling Bo franziu a testa, confusa.

— Fazendo cócegas — Kong Hou respondeu, brincando. — Vai que, se o reino secreto sentir cócegas, a chuva lá fora para.

Ling Bo: “…”

Por que o Mundo Lingyou a colocava no mesmo nível dessa pirralha? Isso era um insulto.

Kong Hou coçou a mesa mais uma vez. De repente, ouviu-se um estrondo de trovão, e a garoa do lado de fora se transformou numa enxurrada. As janelas balançaram com o vento, e o som delas batendo nas paredes parecia tapas na cara.

Ao ver as janelas de madeira tremendo, Kong Hou puxou a mão de volta, sem graça.

— Isso... talvez tenha sido coincidência.

— Se não for coincidência, e você continuar sendo tão intrometida assim, vai acabar levando um raio se sair lá fora…

— Companheira de Caminho Ling Bo — Huan Zhong a encarou com olhos escuros. — Vá ver se a senhorita Jin Ling já acordou.

— Tudo bem — Ling Bo assentiu e saiu sem hesitação. Assim que passou pela porta, teve coragem de torcer os lábios. A vida realmente era difícil quando se estava sozinha e precisava pedir proteção aos outros. Naquele momento, ela sentiu de verdade o quanto seus companheiros de seita eram preciosos.

— Huan Zhong — Kong Hou pôs as mãos atrás das costas e falou gaguejando: — Se a minha piada deixou o reino secreto descontente, será que ele vai querer me atormentar?

— O reino secreto é apenas um reino secreto; ele segue as regras deixadas por seu mestre. Mesmo que tenha alguma inteligência, ele não é de fato uma pessoa — Huan Zhong se aproximou dela e ficou mais perto. — Ele até lhe deu a Espada do Céu e da Terra — deve gostar de você, então não se preocupe.

— Sério? — Kong Hou olhou desconfiada para fora, juntando as mãos e murmurando baixinho: — Brincadeirinha, brincadeirinha... por favor, não fique bravo comigo.

Talvez fosse apenas imaginação dela, mas sentiu que o vento e a chuva lá fora haviam diminuído. De qualquer forma, as janelas já tinham caído no chão e não batiam mais nas paredes — isso já aliviava a pressão sobre ela.

— Não tenha medo — Huan Zhong segurou o pulso de Kong Hou e olhou para fora com expressão inalterada. — Eu ficarei com você.

— Hã? — Kong Hou não reagiu a tempo. Virou a cabeça e viu Huan Zhong subindo de repente ao céu em sua espada. O Rugido do Dragão se ergueu e cortou o raio que descia. As nuvens negras no céu fervilharam como óleo quente ao receber água. Oscilavam entre o preto e o cinza. Por fim, os trovões e a chuva cessaram, as nuvens se dissiparam e o sol apareceu, revelando um céu completamente limpo.

— Céus! — Jin Ling, que saía pela porta, ergueu o olhar para o homem que conseguia mudar a cor do céu com um golpe de espada. Murmurou: — Se ele não fosse um homem destinado a uma vida difícil, eu até pensaria em me casar com ele.

Ling Bo, que caminhava à frente, se recuperou do choque e lançou-lhe um olhar. Um instante depois, respondeu com sarcasmo:

— Você pensa demais.

— É verdade — Jin Ling assentiu. — Não posso considerar um homem assim.

— Ha — Ling Bo zombou. Como se bastasse você querer se casar pra ele querer também. Que tipo de problema essas pessoas tinham? Nenhuma era normal. Ela voltou o olhar para Huan Zhong no céu, com sentimentos complicados.

Aquele golpe tinha um poder imenso. Somente alguém no mínimo no Estágio da Projeção seria capaz daquilo. Quantos especialistas desconhecidos havia na Seita Radiante?

Descendo dos céus, Huan Zhong guardou a espada na bainha. Entrou no quarto e disse para Kong Hou:

— A chuva parou. Vamos.

— Ah… — Kong Hou assentiu, ainda atordoada, mas seus pés não se mexeram enquanto encarava Huan Zhong vestido de branco.

— Venha — Huan Zhong estendeu a mão. — Eu vou te segurar. Não tenha medo.

— Tudo bem — Kong Hou entregou a mão a Huan Zhong e o deixou puxá-la. Só voltou ao normal quando já estavam do lado de fora da mansão. — Huan Zhong, quando você brandiu a espada, achei que fosse cortar o céu ao meio.

Huan Zhong pigarreou e respondeu com seriedade:

— Força bruta não resolve tudo.

Atrás deles, Jin Ling e Ling Bo caminhavam em silêncio. Mesmo que Huan Zhong dissesse que o céu era vermelho, elas assentiriam sem pestanejar.

Diante de uma força absoluta, princípios se tornavam dispensáveis.

Chegaram mais uma vez à encruzilhada que precisavam atravessar. Dessa vez, não havia mais barreiras bloqueando o caminho. Kong Hou, Huan Zhong e os demais passaram sem dificuldade. Além da antiga fronteira havia um conjunto de colinas de diferentes alturas. As montanhas distantes estavam envoltas em uma névoa etérea que fazia as pessoas esquecerem o mundo real.

— Outras pessoas passaram por aqui — Lin Hu encontrou marcas de sangue na grama.

Ao verem o sangue, todos ficaram com expressões tensas. Alguém tinha sangrado. Isso significava que algo ruim havia acontecido — só não sabiam se eram ferimentos graves ou fatais.

— O sangue ainda está brilhante. Eles não devem estar longe — Ling Bo observou o sangue na grama, preocupada com suas shimei e shidi. Virou-se e fez uma reverência para Huan Zhong. — Companheiros de Caminho, vou seguir adiante para investigar. Até logo.

— Ei, espere — Kong Hou agarrou a manga dela.

— Celestial Kong Hou, há algum problema? — Ela estava usando aquele vestido pela primeira vez — não puxe com tanta força.

— Não sabemos o que mais pode haver neste reino secreto. Não vá sozinha, nós vamos com você — Kong Hou olhou para Huan Zhong. Ele assentiu para ela. Kong Hou ficou ainda mais confiante. — Vamos.

Ling Bo ficou em silêncio. Um momento depois, virou-se e começou a andar à frente.

— Obrigada.

Foi dito em voz baixa, mas com sinceridade.

Kong Hou segurou com firmeza a Espada da Geada da Água e sorriu:

— De nada. Afinal de contas, agora eu tenho alguém para me apoiar.

Ling Bo se virou e olhou para o sorriso aberto de Kong Hou — e para seu "apoio", que segurava sua mão. A gratidão que sentia diminuiu pela metade.

— Hmph.

Ela não gostava de quem gostava de se exibir... exceto quando era ela mesma.

No vale, dois cultivadores errantes e um aprendiz da Seita do Amanhecer Claro se apoiavam uns nos outros enquanto corriam, prestes a ser alcançados pelas súcubos que os perseguiam. O discípulo da Seita do Amanhecer Claro cobriu o peito e disse aos dois cultivadores errantes:

— Vão na frente. Estou usando uma túnica mágica forjada por anciãos da seita e consigo aguentar mais um pouco.

— Não — o cultivador homem, que aparentava trinta e poucos anos, olhou para o rosto jovem do discípulo da Seita do Amanhecer Claro. — Vá você primeiro. Eu vou segurá-las.

— Com o que você vai segurá-las? Você não tem talismãs nem selos — disse o discípulo da Seita do Amanhecer Claro. — Não perca meu tempo — vá. Encontre outras pessoas e diga que há algo errado com este reino secreto. Não fique aqui dentro; ache a saída e vá embora.

— Então vou ajudá-lo — se fosse em outro dia, o cultivador errante de meia-idade teria ficado furioso por ser insultado por um discípulo de seita. Mas dessa vez era diferente. Ele não ficou irritado — parecia comovido. Agarrou o jovem cultivador errante ao seu lado e o empurrou para mais longe. — Vá rápido e envie mensagens.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro viu que ele estava determinado a ficar e jogou dois talismãs para ele.

— Segure elas por um tempo. Se tivermos sorte, talvez encontremos alguém para nos salvar.

O cultivador de meia-idade fez uma careta. Quem viria salvá-los? Desde que o reino secreto havia começado, todos tinham sido dispersos. Se o reino secreto realmente quisesse facilitar encontros com ajudantes, não teria separado todos desde o início.

As súcubos eram criaturas estranhas. Seus corpos eram gasosos e se alimentavam de emoções. Para elas, os humanos, com seus sentimentos complexos, eram a refeição mais deliciosa. Para fazer com que os humanos emanassem mais emoções, eram capazes até de encantar suas mentes, invadir seus pensamentos e se transformar na pessoa ou coisa que mais desejavam ver — tudo para devorar suas consciências.

As súcubos eram semelhantes aos yao ilusórios, mas mais fortes e ainda mais bizarras.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro arfava enquanto usava sua espada para afastar ondas e mais ondas de súcubos. Sua energia espiritual já estava quase esgotada. Ele ficou de costas para o cultivador errante de meia-idade, os dois em péssimo estado.

— Nunca pensei que eu, um famoso libertino da aliança dos errantes, terminaria assim, miserável, ao lado de outro cultivador homem. Que azar na velhice — o cultivador de meia-idade pegou uma garrafa de vinho e deu um gole. Olhou para os talismãs que começavam a enfraquecer. Quando a energia daqueles dois talismãs acabasse, eles se tornariam comida para as súcubos.

O cultivador de meia-idade tinha uma barba espessa e o rosto rude — não era nem um pouco bonito. O discípulo da Seita do Amanhecer Claro achava difícil acreditar que ele fosse um libertino. Com aquela cara, mesmo que quisesse, talvez as mulheres nem lhe dessem chance.

Como aprendiz de uma grande seita, ele não disse nada sobre estar encurralado ao lado de um cultivador errante sujo e fedorento — e mesmo assim, esse homem ainda tinha a audácia de reclamar.

Crack.

A luz de um talismã se apagou. Caiu no chão. A barreira ao redor deles começou a enfraquecer.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro olhou para o talismã no chão e empalideceu. Odiava o fato de os selos de mensagem não funcionarem ali, e agora iria morrer sem que ninguém jamais soubesse.

Crack. O segundo talismã caiu no chão. A barreira desapareceu por completo.

As súcubos ao redor se reuniram, prontas para avançar sobre eles. Mas, por algum motivo, não atacaram de imediato. Parecia haver algo invisível impedindo tudo de acontecer.

— Shidi! — Ling Bo viu seu jovem shidi, que ainda não estava há dez anos na seita, e avançou sem pensar.

— Huan Zhong… — Kong Hou piscou para Huan Zhong.

— Vá — Huan Zhong soltou sua mão. — Estarei observando de perto. Não tenha medo.

— Sim — Kong Hou empunhou a Espada da Geada da Água e voou.

— Mestre — Lin Hu murmurou —, preocupar-se assim, e ainda querer que sua criança caminhe sozinha… é como ser um pai.

Huan Zhong o ignorou, os olhos fixos em Kong Hou.

Ao ouvir a palavra “pai”, Jin Ling abaixou a cabeça. O Mestre Espiritual Huan Zhong e a Celestial Kong Hou não estavam apaixonados, mas tinham uma relação... parental?

Eles eram mesmo pessoas das dez grandes seitas para falarem de forma tão profunda.

Kong Hou não cultivava principalmente a espada, mas sua esgrima atual estava muito melhor do que antes. Até Lin Hu, um cultivador de espada, conseguia perceber alguns bons movimentos na forma como ela lutava.

— Você está enganado — Huan Zhong olhou para Kong Hou com um olhar gentil. — Farei melhor do que um pai.

— Vocês dois, podem parar de ficar aí se consolando enquanto nós, mulheres, estamos lutando? — Depois de garantir que seu shidi estava seguro, a preocupação de Ling Bo se dissipou completamente. — Não fiquem atrapalhando.

Kong Hou, em silêncio, lançou os dois cultivadores — que já estavam sem nenhuma energia espiritual — aos pés de Lin Hu.

Com as súcubos à frente, não era hora de falar — era hora de lutar.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro e o cultivador de meia-idade ficaram tontos com o arremesso. Depois de um bom tempo, conseguiram se levantar do chão e, ao olharem para cima, depararam-se com a expressão impassível de Lin Hu.

Lin Hu: "…"

Cultivador de meia-idade: "…"

Discípulo da Seita do Amanhecer Claro: "…"

O clima ficou constrangedor. Embora tivessem conseguido preservar suas míseras vidas, a dignidade havia desaparecido por completo.

— Como pode haver tantas súcubos nesse reino secreto? — Kong Hou cortava onda após onda de inimigas. Já estava irritada e cansada de tanto golpear. Pegou então seu prendedor de cabelo Cabeça de Fênix. O Cabeça de Fênix se transformou em sua mão e brilhou com uma luz intensa.

— Se você tinha isso, por que não usou antes? — Ling Bo permaneceu de guarda ao lado de Kong Hou e afastou todas as súcubos que tentavam se aproximar. Queria ver quão poderosa era Kong Hou, que se autodenominava uma cultivadora do som.

Capítulo 77: No Centro das Atenções

Além dos cultivadores da espada, os cultivadores do som eram os mais poderosos em termos de poder destrutivo. No entanto, as exigências sobre eles eram intensas. Apesar dos danos causados serem assustadores, o maior problema para cultivadores com pouca base era o gasto extremamente rápido de energia espiritual. Com a cultivação atual de Kong Hou, ela conseguia controlar bem o Cabeça de Fênix — mas não por muito tempo.

Podia-se dizer que cultivadores do som eram frágeis e lamentáveis nos estágios iniciais da cultivação, mas quando finalmente alcançavam o estágio de Manifestação da Mente, tornavam-se verdadeiros demônios capazes de dizimar multidões com um único ataque. Contudo, em todo o mundo da cultivação, o número de cultivadores do som não superava nem o dos cultivadores da culinária. A cultivação do som exigia um talento excepcional. Não era o cultivador quem escolhia a cultivação do som — era a cultivação do som que escolhia o cultivador. Por isso, pouquíssimos trilhavam esse caminho. Nos últimos séculos, o número de cultivadores do som que alcançaram a Manifestação da Mente foi… zero.

Kong Hou fingiu não ouvir as palavras de Ling Bo. Observou as súcubos se aproximando de todas as direções e dedilhou levemente as cordas.

Ela não gostava do fato de seu pai-imperador ser obcecado por música, entregando o controle da corte a ministros traiçoeiros. Chegou a odiar profundamente a música. Mas agora compreendia. A música era inocente, os instrumentos eram inocentes — o único culpado era seu pai-imperador.

As súcubos preferiam as emoções negativas dos humanos. Medo, inveja, ódio, arrependimento e tristeza eram suas refeições favoritas.

O som da música se elevou. Aquela era uma das canções mais simples do repertório de Kong Hou. A melodia trazia alegria e bons votos. Foi a única canção que ela, aos seis anos, aprendeu antes da queda da Dinastia Ji.

Ela não havia aprendido aquela canção por si mesma, mas para agradar seu pai-imperador. No entanto, antes que pudesse se apresentar diante dele, o Imperador Jinghong havia invadido com seus soldados. Desde então, ela nunca mais tocou kong hou.

Uma pessoa que não compreende a alegria, ou que não sabe como trazê-la aos outros, não consegue tocar essa canção.

Mas agora, ela compreendia — e havia deixado o passado para trás.

A melodia simples se espalhou, carregada de poderosa energia espiritual. As súcubos se dispersaram como moscas desgovernadas. Mas onde poderiam se esconder? Havia som no vento, som nas árvores, som até nas pequenas frestas da escuridão.

Inúmeras súcubos se transformaram em fumaça negra e desapareceram. Tocando o Cabeça de Fênix, os dedos de Kong Hou não paravam nas cordas, e a música ecoava por longas distâncias.

Ling Bo ficou parada com sua espada na mão, atônita, enquanto memórias surgiam em sua mente. O belo vestido que sua Mestra havia comprado quando ela entrou na Seita do Amanhecer Claro; como a Mestra e os shixiong a elogiaram como a cultivadora mais talentosa do mundo da cultivação depois do Mestre Espiritual Zhong Xi, quando conseguiu atrair energia para o corpo pela primeira vez; o Discípulo Sênior da Seita, que sempre seguia as regras, lhe trazendo às escondidas a bebida de mel que ela tanto gostava, na última vez em que foi punida com prisão domiciliar ao retornar para a seita.

Desde que ingressara na Seita do Amanhecer Claro, tantas pequenas e felizes memórias haviam se acumulado…

A canção chegou ao fim, e as súcubos haviam desaparecido por completo. Após um tempo incerto, Ling Bo recobrou a consciência. Olhou lentamente para Kong Hou, que havia transformado seu talismã de vínculo vital de volta em um prendedor de cabelo e o colocou novamente nos cabelos.

— Kong Hou… — Ao olhar para ela novamente, Ling Bo ficou pasma. Aquele controle sobre um talismã de vínculo vital não parecia ser de alguém que acabara de alcançar o estágio de Ativação da Mente. Que talento aterrorizante era aquele?

Kong Hou sorriu abertamente para ela e então disse:

— Celestial Ling Bo, rápido, me ajuda a levantar.

Ling Bo viu o rosto pálido dela e imaginou que tivesse esgotado toda a energia espiritual. Foi ajudá-la. No entanto, alguém atrás dela foi mais rápido. Um raio de luz branca cruzou sua visão. Quando conseguiu enxergar claramente, ele já estava segurando Kong Hou.

— Concentre-se, acalme sua energia — Huan Zhong empurrou uma pílula de condensação de energia na boca de Kong Hou e estendeu a mão para apoiar sua cintura. No entanto, a mão estava fechada em punho frouxo, sem se aproveitar da situação para tocar nela com a palma aberta.

Ling Bo recuou a mão em silêncio.

— Como está se sentindo? — Huan Zhong canalizou um pouco de energia espiritual para a plataforma espiritual de Kong Hou. Ao ver a cor em seu rosto melhorar, soltou-a lentamente.

— Não, não está ruim — os olhos de Kong Hou brilhavam ao olhar para Huan Zhong, como se estivesse muito feliz. — Agora há pouco, senti como se minha consciência estivesse em sintonia com o Cabeça de Fênix. Ele podia sentir minhas emoções, e eu sabia exatamente como tocá-lo da melhor forma possível.

Kong Hou tocou o prendedor de cabelo em forma de cabeça de fênix. Nunca havia gostado tanto de seu talismã de vínculo vital quanto naquele momento. Parecia ser uma parte inseparável de seu corpo.

— Você chegou à porta da Compreensão da Mente — Huan Zhong olhou para o rosto ligeiramente corado da jovem. — Você tem um talento incrível.

— Sério? — Os olhos de Kong Hou se arregalaram, cheios de alegria e empolgação.

Os lábios de Huan Zhong se curvaram levemente.

— Eu nunca mentiria para você — Ele retirou sua espada voadora e saltou sobre ela, puxando Kong Hou junto. — Descanse um pouco. Relaxe a mente e não pense em nada.

— Sim — Kong Hou assentiu. Sentou-se com as pernas cruzadas sobre a espada e fechou os olhos para meditar.

Ling Bo puxou seu shidi, que havia esgotado toda sua energia espiritual, para cima de seu próprio talismã de voo. Virou-se e perguntou:

— Mestre Espiritual Huan Zhong, voar pelo reino secreto assim não vai chamar atenção demais?

Huan Zhong se virou para Lin Hu para que ele explicasse.

— Senhorita Ling Bo, se o reino secreto não possuir inteligência, então seguir a pé é o melhor método. Mas este reino secreto é inteligente, portanto, nossos movimentos não podem ser ocultados dele. Se escolhermos caminhar, apenas perderemos tempo — disse Lin Hu, puxando o cultivador de meia-idade para cima de seu próprio talismã voador. Ele se virou e perguntou a Jin Ling: — Senhorita Jin Ling, quer subir?

— Não é necessário, eu consigo — respondeu Jin Ling, retirando sua própria espada voadora e saltando para o céu.

Após ver a técnica de espada da Celestial Ling Bo e o ataque sonoro da Celestial Kong Hou, Jin Ling se sentia extremamente culpada. Como mulher, ela não podia ter um desempenho tão terrível. Isso prejudicaria a imagem feminina.

Voando silenciosamente no meio do grupo, Jin Ling olhou com emoções confusas para Kong Hou, que meditava sobre a espada de voo do Mestre Espiritual Huan Zhong. Se fosse ela no lugar da Celestial Kong Hou, não conseguiria confiar completamente em um membro de outra seita, especialmente sendo alguém com um talento tão notável. Se outras seitas quisessem destruí-la, esta seria uma ótima oportunidade.

"Muitas coisas belas são destruídas pela inveja. Será que Kong Hou não sente medo?"

Jin Ling não sabia se Kong Hou tinha medo ou não. Mas quando chegaram a um caminho bloqueado por uma barreira, Kong Hou ainda não havia despertado.

Ninguém se surpreendeu com a barreira que surgiu de repente. O espantoso foi que uma imagem apareceu do nada na encosta da montanha ao lado da barreira. Essa imagem era extremamente estranha: uma pessoa bonita segurava uma espada, matava alguém e comia seu coração; uma pessoa feia chorava à beira do rio; e dois transeuntes sem expressão passavam ao lado.

Jin Ling se sentiu tonta e enjoada só de olhar. Rapidamente fechou os olhos para estabilizar a mente e não ousou olhar de novo.

Ling Bo estava em situação melhor do que Jin Ling. Observou a mulher feia chorando, com a mão cobrindo a boca, e franziu a testa. "Será que a pessoa bonita comeu os parentes dela para ela estar chorando assim no chão?"

"Essa imagem é um aviso?"

— Mestre? — Lin Hu se virou para Huan Zhong.

Huan Zhong puxou sua espada. Uma poderosa essência de espada voou em direção à barreira. À medida que a barreira oscilava, foi cortada ao meio com um único golpe.

— Essa imagem possui uma formação. Quem olha por muito tempo acaba se perdendo dentro dela e não consegue sair — disse Huan Zhong com frieza. — Truques baixos. Um reino secreto que recorre a esse tipo de tática não é raro. — Ao falar, ele brandiu a espada mais uma vez. A imagem na encosta foi destruída, e a mulher que chorava à beira do rio virou um monte de pedras.

Saltando novamente para a espada voadora, Huan Zhong lançou um olhar para Kong Hou, que ainda não havia sido despertada com a perturbação, e disse friamente ao grupo:

— Vamos.

Um assunto que pode ser resolvido com a espada... não é um assunto.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro e o cultivador nômade de meia-idade ficaram boquiabertos com a cena, sem conseguir reagir. Em que estágio de cultivo estaria esse Mestre Espiritual Huan Zhong para conseguir cortar, com um único golpe, uma barreira criada por um reino secreto?

Que tipo de experiência uma pessoa tão poderosa poderia ganhar entrando nesse reino? Veio só para ver a paisagem?

Além da barreira havia outro mundo, com montanhas altas, rochas nuas, um sol escaldante e uma temperatura tão alta que a pele ardia só de estar exposta. Jin Ling rapidamente tirou três guarda-sóis de seu anel de armazenamento. Entregou um para Ling Bo, e quando foi dar um a Kong Hou, lembrou que ela ainda estava em estado de meditação. Então sua mão, estendida na direção de Kong Hou, hesitou de forma constrangedora. Ela não sabia se devia recuar ou simplesmente empurrar o guarda-sol.

— Para que é isso? — perguntou Huan Zhong, pegando o guarda-sol e olhando para Ling Bo, que já o tinha aberto para se proteger do sol.

— Mestre Espiritual, com esse tipo de sol, as pessoas bronzeiam com facilidade. Seria necessário tomar muitas pílulas clareadoras para recuperar a cor original — explicou Jin Ling, apontando para o sol ardente acima e depois lançando um olhar para a pele alva de Kong Hou. — A pele da Celestial Kong Hou é branca e delicada. Seria uma pena se ela ficasse bronzeada.

— Não é necessário — respondeu Huan Zhong, devolvendo o guarda-sol para Jin Ling.

Jin Ling pegou o objeto de volta e olhou com pena para a desavisada Kong Hou. "Esse é o resultado de confiar facilmente em um homem. Espero que, quando ela acordar e perceber que escureceu bastante, não fique com raiva do Mestre Espiritual Huan Zhong."

Enquanto pensava nisso, Jin Ling viu Huan Zhong tirar um guarda-sol de jade com hastes reforçadas de seu anel de armazenamento. Ela não sabia do que ele era feito, mas mesmo à distância, era possível sentir fios de frescor e energia espiritual emanando dele.

Ao ver Huan Zhong abrir o guarda-sol e posicioná-lo sobre a cabeça de Kong Hou, Jin Ling silenciosamente voou para longe do Mestre Espiritual Huan Zhong.

Ela ainda era jovem, sua mente ainda era impressionável — não podia suportar esse tipo de coisa.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro viu a cena e imediatamente se levantou sobre a espada voadora. Sorriu com adulação para Ling Bo.

— Shijie, eu seguro o guarda-sol para você, assim você não se cansa.

Ling Bo empurrou o guarda-sol para ele.

— Segure direito.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro assentiu várias vezes como um cachorrinho. O humor de Ling Bo imediatamente melhorou. Seus shixiong e shidi realmente eram bons, como se esperava. Sabiam elogiá-la em público e dar-lhe prestígio.

— Me ajudem!

Um pedido de socorro veio do chão. A Celestial Ling Bo olhou para baixo. O Shixiong Chang De estava meio enterrado na lama, apenas a cabeça e uma mão de fora, tentando agarrar algo para desacelerar a queda.

— Shixiong! — Ling Bo e seu shidi viram aquilo e entraram em pânico. Ling Bo saltou para voar até ele. Huan Zhong acenou com a mão, usando energia espiritual para empurrá-la de volta. A Celestial Ling Bo caiu novamente sobre a espada voadora e se virou, encarando Huan Zhong com raiva. — Mestre Espiritual, qual é a sua intenção?

— O Caminhante do Dao Chang De é uma pessoa muito calma. Se realmente estivesse em uma situação dessas, não pediria ajuda de forma tão desesperada — disse Huan Zhong, lançando um feitiço e apontando para o espaço à frente de Ling Bo e do discípulo da Seita do Amanhecer Claro. — Olhe de novo.

Ling Bo voltou a olhar. Aquilo não era o Shixiong — era um esqueleto tentando sair do chão. Ela sentiu um leve suor frio. "Se não fosse pelo Mestre Espiritual Huan Zhong estar presente hoje, eu já teria pulado para socorrer."

Huan Zhong olhou friamente para o esqueleto. Um espírito maligno como aquele, que não aceitava a morte, podia ser destruído com um único golpe de espada. Ele tirou de dentro do anel uma garrafa de orvalho espiritual dada pelo abade do Templo da Paz Silenciosa. Deixou cair uma gota sobre o esqueleto.

Num piscar de olhos, o esqueleto virou pó, e o espírito maligno se dissipou em uma nuvem de fumaça verde.

Kong Hou abriu os olhos e viu Huan Zhong derramando o orvalho espiritual sobre o esqueleto. Ao ver o espírito flutuar e desaparecer, perguntou:

— Huan Zhong, o que você está fazendo?

— Ajudando o espírito a seguir adiante — respondeu Huan Zhong, vendo Kong Hou se levantar. Ele ajustou a posição do guarda-sol para que a luz do sol não recaísse sobre ela.

— Uau — exclamou Kong Hou, surpresa. — Você sabe de tudo.

Na verdade, tudo que Huan Zhong fizera foi usar energia espiritual para pingar o orvalho do abade sobre o esqueleto. Qualquer cultivador ortodoxo poderia fazer o mesmo.

Huan Zhong balançou a cabeça.

— Não sei de tudo. O mérito é do orvalho espiritual. O abade do Templo da Paz Silenciosa me deu isso — há dharma nele.

— Mas você também tem seus méritos — disse Kong Hou. — Ouvi dizer que o abade do Templo da Paz Silenciosa raramente recebe visitas. Ele te dar o orvalho prova sua excelência.

Ao ouvir isso, Huan Zhong ficou levemente surpreso e, em seguida, riu.

Ser completamente confiado por alguém, e ser considerado extremamente poderoso aos olhos dela… era um tipo de elogio impossível de recusar. Huan Zhong pensou: "Se neste momento Kong Hou quisesse ver o oceano, eu a levaria para encontrar o oceano. Se quisesse tocar as estrelas, eu a levaria para colhê-las."

Quando se é confiado de forma tão sincera por alguém… não se quer deixá-la decepcionada, nem um pouco.

— Me dá o guarda-sol, eu seguro — disse Kong Hou, estendendo a mão para pegar o cabo. Seus dedos roçaram o dorso da mão de Huan Zhong. A ponta dos dedos dele tremeu levemente, e ele soltou rapidamente. O dorso da mão parecia entorpecido e quente ao mesmo tempo, como se o calor se espalhasse da mão para o coração.

Kong Hou notou que o rosto de Huan Zhong estava levemente avermelhado e se aproximou dele. Colocou o guarda-sol cobrindo os dois.

— O sol está tão forte — por que você não se protegeu?

Olhando para o rosto alvo de Kong Hou, Huan Zhong deu um passo para o lado.

— Está tudo bem.

— Seu rosto está vermelho — disse Kong Hou, puxando a manga dele para fazê-lo voltar. — Um defeito apaga cem qualidades — cuide bem do seu rosto.

Se ela visse esse rosto bonito ser queimado pelo sol sem fazer nada, seria um pecado.

Tendo se recuperado do susto, Ling Bo estava prestes a agradecer Huan Zhong. Mas ao se virar, viu ele e Kong Hou de pé tão próximos um do outro que preferiu ficar em silêncio. Desta vez, não importava o que o Shixiong Chang De dissesse, ela não acreditaria que os dois tinham apenas uma amizade pura.

Mesmo que fosse espancada até a morte… ela não acreditaria.

Depois de ajudar o espírito a seguir adiante, não encontraram mais nenhuma outra ilusão estranha no caminho. Mesmo quando passaram pela cadeia de montanhas desoladas, nada aconteceu. Então… qual era o objetivo da existência dessas montanhas? Deixá-los mais tempo sob o sol?

Fora da cadeia de montanhas, como esperado, surgiu outra barreira. Havia uma estela ao lado, com os dizeres: “Portão da Vida e da Morte”.

Tudo que envolvia vida e morte sempre parecia mais assustador.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro se preparava para dizer algo, quando viu Huan Zhong pisar sobre a estela. A estela rachou.

— Vamos.

Lin Hu: "..."

Por que ele sentia que o Mestre estava especialmente… exibido hoje?

O que mais o surpreendia era que o Mestre havia cortado o céu, depois a barreira. Com a plataforma espiritual instável, ele não deveria estar se sentindo muito bem por dentro. Mas no momento, o Mestre parecia como sempre. Tirando algumas tosses, estava bem melhor do que quando saiu da Seita Radiante.

Será que algo bom havia acontecido no tempo em que ele foi transportado para outro lugar?

Kong Hou pensava que haveria gelo e fogo do outro lado do Portão da Vida e da Morte. Mas o que encontrou foi céu azul, nuvens brancas, montanhas verdes, águas cristalinas. Era um paraíso, com luz solar suave e quente, e energia espiritual abundante. Ao pisar ali, a pessoa se sentia confortável e esquecia todas as coisas ruins.

— Um lugar tão bonito assim com certeza esconde um problema — disse Kong Hou, coçando o queixo, sem ousar andar por aí. — Não vai ser fácil nos enganar assim.

Ling Bo e os outros também achavam aquele lugar bonito demais, o que o tornava estranho. Isso os fez lembrar do riacho encantador que encontraram logo ao entrar no reino secreto. Ling Bo se virou para seu shidi.

— Me siga, e não se afaste.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro assentiu com a cabeça e apertou com mais força o punho sobre a espada.

Eles caminharam pela trilha estreita. Exceto por algumas ervas espirituais raras ao longo do caminho, não encontraram nada fora do comum.

— Shijie.

— Não me siga. Fique mais distante.

O som de duas mulheres discutindo veio ao longe. Kong Hou soube, só de ouvir, que aquelas duas acumulavam rancor há muito tempo.

— Shijie, eu realmente não tenho intenção nenhuma de me aproximar do He Shixiong. Acredite em mim.

— É importante pra mim acreditar em você? Vá até o lago e olhe seu rosto. Mesmo que você se aproxime dos homens, acha que eles olhariam pra você de novo?

A briga se intensificou. Duas mulheres vestidas com túnicas azuis surgiram por entre as árvores. A que vinha na frente tinha o rosto bonito e carregado de raiva. A que vinha atrás parecia apavorada. Caminhava com as costas curvadas, como se estivesse acostumada a se submeter aos outros.

Quando ela levantou a cabeça, Jin Ling não pôde conter o ar que escapou entre os lábios. Que tipo de rosto era aquele? O lado esquerdo podia ser considerado bonito, mas o lado direito era coberto de buracos e infecções com pus.

Essas duas cultivadoras eram da aliança dos nômades?

Ela achava se lembrar de algumas pessoas da aliança dos nômades que usavam túnicas azuis. Mas, quando haviam entrado no reino secreto, sua atenção estava toda voltada ao grupo de Kong Hou, então não guardava muitos detalhes sobre os cultivadores nômades.

Aquilo era uma briga de duas mulheres por causa de um homem?

Em que época elas viviam? Todos ali eram cultivadores, tinham status e cultivação — será que lhes faltavam homens? Se os homens do mundo da cultivação não fossem bons o suficiente, ainda havia o mundo mortal. Precisavam mesmo ser tão venenosas assim? Que vergonha.

As duas cultivadoras nômades também os notaram. A mulher bonita reconheceu Kong Hou e os demais. Guardou a arma e fez uma reverência.

— Saudações, Amigos do Caminho.

— Saudações, Amigos do Caminho — respondeu Kong Hou, desviando o olhar das duas. Fingiu não ter ouvido a discussão. — Encontraram algum perigo pelo caminho?

A cultivadora de rosto bonito fez uma careta.

— Só consegui sobreviver. Queria colher umas ervas espirituais, mas estavam protegidas por feras espirituais. Acho melhor ir ao mercado mesmo. Gastar um pouco mais é melhor do que perder a vida.

— As senhoritas são cultivadoras nômades do oeste? — perguntou o cultivador de meia-idade do grupo de Kong Hou, examinando-as com curiosidade. Cultivadores nômades vinham de todos os lugares e só se reuniam por causa do ancião da aliança dos nômades. Ele não conhecia nenhuma delas.

— Saudações, Amigo do Caminho Lu Yi — disse a cultivadora desfigurada em voz baixa. — Viemos do oeste.

Lu Yi, o cultivador nômade de meia-idade, ficou um pouco sem graça. A outra sabia seu nome, mas ele não sabia o delas. Todos eram cultivadores nômades, e Lu Yi queria viajar com eles. No entanto, só havia conseguido sobreviver graças aos discípulos das seitas. Não tinha cara de pedir ao Mestre Espiritual Huan Zhong para levar mais duas pessoas, então ficou em silêncio.

— Amigos do Caminho, tomem cuidado. Este reino secreto parece problemático — advertiu a cultivadora mais feia com voz baixa, virando-se para partir. Mas antes que desse alguns passos, uma trepadeira saiu disparada de uma árvore e a ergueu no ar, arremessando-a ao chão em seguida.

— Ai... — Jin Ling recuou dois passos. Só de olhar, seus ossos doíam. Não sabia como aquela garota estava.

Kong Hou avançou um passo. Huan Zhong pousou a mão sobre seu ombro.

— Eu vou.

— Cuidado — disse Kong Hou, sem insistir. Assentiu levemente com a cabeça.

Huan Zhong cortou a trepadeira com alguns golpes de espada. Fitou a cultivadora no chão, toda desarrumada e incapaz de se levantar, e disse com frieza:

— Levante-se.

E foi embora sem esperar uma resposta.

A cultivadora esfregou o lado direito do rosto com uma expressão apagada. Conseguiu se erguer com esforço e seguiu em silêncio atrás de Kong Hou e dos outros.

Eles atravessaram um mar de flores. Um rio claro bloqueava o caminho. Kong Hou estava prestes a tirar o barco de jade para atravessá-lo quando ouviu um tapa atrás de si.

Virou-se, surpresa. Por algum motivo, a cultivadora bonita havia esbofeteado a cultivadora desfigurada. Lu Yi estava parado ao lado das duas, sem saber se devia ou não intervir.

Ling Bo as olhou friamente e disse com impaciência:

— Se quiserem brigar, vão brigar mais pra lá. Não nos atrapalhem.

A cultivadora bonita então agarrou as roupas da cultivadora desfigurada, arrastando-a até a beira do rio.

— Olhe pra você. Não fique se fazendo de coitada na frente dos homens. É nojento.

O discípulo da Seita do Amanhecer Claro viu a cena e não conseguiu se conter:

— Shijie, isso é demais...

— Cale a boca — disse Ling Bo friamente. — Antes de entender a causa da questão, não julgue quem está certo ou errado.

O shidi calou-se. Virou-se e olhou para a Celestial Kong Hou, que era a mais gentil entre eles. Não esperava que, ao ver aquela cena, ela também não reagisse.

Ele realmente não entendia a mente das mulheres.

Afinal… qual era o problema daquelas duas?

Capítulo 78: Murchar

— Não, não, não… — A cultivadora desfigurada cobriu o rosto e implorou: — Por favor, me poupe.

A cultivadora bonita soltou uma risada sarcástica, largou a outra e a deixou cair no rio. A desfigurada conseguiu sair da água. Deitou-se à margem, olhando para Kong Hou e os outros com um pedido de socorro no olhar.

— Acha que alguém vai te salvar? — O desprezo na voz da cultivadora bonita ficou ainda mais evidente. — Esse rosto é repugnante; seria melhor se morresse.

A cultivadora desfigurada cobriu o rosto e chorou baixinho, lançando olhares ocasionais na direção de Kong Hou. Esperava que alguém tomasse partido e dissesse que aparência não importava.

Jin Ling sentiu uma pontada de culpa sob aquele olhar. Tentou se esconder, como se isso diminuísse o sentimento. Sua cultivação não era forte, e tinha entrado no reino secreto apenas para ganhar experiência. Quem imaginaria que algo daria errado ali dentro? Só conseguira sobreviver graças a Ling Bo, Kong Hou e Huan Zhong. Não se atrevia a abrir a boca e trazer mais problemas para eles.

— Isso é… — O jovem shidi da Seita do Amanhecer Claro era impetuoso. Ao ver aquela cena, respirou fundo, furioso. Se Ling Bo não o estivesse segurando, já teria avançado. Jovens sempre eram um pouco impulsivos.

— Você não entende as mulheres — disse Ling Bo, usando uma técnica de transmissão sonora diante do olhar indignado do shidi. — Essa cultivadora nômade mais bonita já está no Estabelecimento da Fundação. Pelo tom de voz dela, acho que sua posição na aliança dos nômades não é baixa. Uma mulher assim não agiria de maneira tão agressiva e opressora na frente de estranhos, especialmente discípulos de grandes seitas como nós.

Homens ou mulheres — se tivessem certo status, tentariam se mostrar sob uma boa luz diante de desconhecidos. Aquela cultivadora bonita era estranha, desafiando os limites dos outros o tempo todo.

Já a cultivadora desfigurada era ainda mais esquisita. Apesar de ter cultivação, parecia uma mulher frágil e comum diante da outra, se deixando humilhar sem oferecer resistência. Só sabia chorar.

— Muitas mulheres não conseguem evitar mostrar seu melhor lado diante de homens bonitos. Assim como a maioria dos homens tenta parecer elegante e educado diante de mulheres bonitas — comentou Kong Hou, de repente. — Mesmo que ela não se interesse por homens, pelo cuidado com que se veste, dá pra ver que é alguém que se importa com a impressão que causa. E alguém que se importa com isso não mostraria um lado tão repulsivo na frente de estranhos.

Ling Bo e Kong Hou trocaram um olhar, em silenciosa concordância.

O jovem shidi da Seita do Amanhecer Claro ficou pasmo com aquelas palavras que pareciam fazer sentido, mas também não faziam. Quando olhou de novo para as duas cultivadoras, não conseguiu evitar pensar: “Elas estão encenando pra gente, ou a briga é real?”

— Mas por que fariam isso aqui? — perguntou, gaguejando. — Estão... brincando com a nossa cara?

— Elas não fazem parte da aliança dos nômades — disse Huan Zhong, em um tom calmo, como se estivesse falando sobre o tempo.

— Não fazem parte da aliança? Não são discípulas de nenhuma seita… então de onde... saíram? — O discípulo da Seita do Amanhecer Claro sentiu um calafrio subir pelas costas. Não conseguia ver nada de errado com as duas cultivadoras.

— Por que não me ajudou? — A cultivadora desfigurada olhou para Kong Hou, cheia de ódio. — É porque sou feia? Não me considera uma pessoa?

Seu rosto se contorceu em raiva. Já não tinha nada da timidez de antes.

Antes que o grupo pudesse reagir, ela avançou de repente para a cultivadora bonita e arrancou o rosto da outra, colocando-o sobre o próprio. Virou-se e soltou uma risada baixa.

— Agora estou bonita?

O pobre shidi da Seita do Amanhecer Claro deu dois passos para trás, apavorado, quase sem conseguir respirar.

— Já que vocês não gostam do meu rosto, que tal me darem os seus? — A cultivadora começou a rir. Seus membros e corpo se curvaram em ângulos anormais. Os olhos injetados de sangue fitaram Kong Hou e Ling Bo. — Eu gosto dos rostos de vocês... me deem eles.

Ela passou a língua carmesim pelos lábios.

— Por que não me ajudaram? Se tivessem me ajudado, eu teria deixado vocês irem embora — disse, rindo e chorando ao mesmo tempo. — Eu odeio vocês. Quero os seus rostos!

— Sua atuação foi exagerada demais — disse Kong Hou, inclinando levemente a cabeça, com um ar inocente. — Pessoas que são constantemente humilhadas não discutem tanto enquanto são agredidas. Só o silêncio faz o agressor parar.

A expressão da cultivadora congelou. Em seguida, gritou:

— Está mentindo! Todos vocês são loucos obcecados por aparência!

— Errado. Quem julga as pessoas pela aparência é você — retrucou Kong Hou, animada, sem medo, amparada pela presença de Huan Zhong. — Na sua cabeça, pessoas feias são inúteis e medrosas, enquanto as bonitas são arrogantes e insuportáveis. Você despreza as mulheres, bonitas ou não, porque todas se tornam ridículas aos seus olhos quando disputam homens.

— Acho que você não sabe que o mundo da cultivação mudou bastante. As cultivadoras andam muito ocupadas — ocupadas cultivando, explorando montanhas e rios, comprando roupas e se arrumando — não têm tempo sobrando pra brigar por homem. — Kong Hou bufou. — Não sei o que você é, mas com certeza não entende a mente humana.

A cultivadora ficou sem palavras. Seu corpo tremeu e ela se endireitou.

— Está falando bobagem. Quinhentos anos atrás, duas cultivadoras lutaram até a morte por causa de um homem.

Quinhentos anos atrás…

Kong Hou piscou para Huan Zhong e então disse:

— Até você sabe que isso foi há quinhentos anos. O mundo muda com o tempo. O mundo da cultivação hoje tem uma nova mentalidade, uma nova aparência. Seu pensamento retrógrado já está ultrapassado.

— Sério? — O olhar da cultivadora ficou mais sério.

— Claro — Kong Hou apontou para Huan Zhong. — Olha esse cultivador ao meu lado: cultivação altíssima, aparência impecável, tão perfeito que parece saído de um sonho. Mas vê alguma de nós três brigando por ele?

A cultivadora olhou para Huan Zhong. Seu semblante pareceu ficar insatisfeito, como se se lembrasse de algo. Resmungou com frieza:

— Sendo assim, vocês passaram nesta prova. Podem ir.

— Dizem que se encontramos alguém, é porque havia um laço do destino. Já que você conhece tão bem este reino secreto… posso te fazer uma perguntinha? — Kong Hou percebeu que a cultivadora não pretendia atacá-los e teve outra ideia.

—Não. —A cultivadora jogou no chão a máscara de rosto humano que usava, arremessando-a com força. Assim que tocou o solo, a máscara desapareceu, e a bela cultivadora se desfez em nada.

—Não seja assim. —Kong Hou entendeu completamente. Aquilo não era uma disputa entre duas mulheres por um homem, e sim uma provação do reino secreto.

O reino secreto queria testar se elas valorizavam mais a aparência ou o interior. E, pela situação atual, parecia que haviam falhado nesse teste.

—Eu só queria perguntar onde está a Árvore Busca-Nuvens dentro do reino secreto. —Kong Hou olhou com esperança para a cultivadora, que voltara a ter um rosto deformado. Mesmo diante da feiura assustadora da outra, ela não desviou o olhar. —Por favor, ajude-nos.

—A Árvore Busca-Nuvens floresce uma vez a cada mil anos e dá frutos. Após o amadurecimento dos frutos, seus galhos murcham e as raízes morrem. —A voz da cultivadora era calma. —Havia uma Árvore Busca-Nuvens neste reino secreto, mas isso foi há cinco séculos. Ela deu frutos naquela época e já murchou há muito tempo. Até suas raízes apodreceram.

—Murchou? —A mente de Kong Hou esvaziou. Nos últimos dias, ela havia encontrado diversos ingredientes ao lado de Huan Zhong. Pensava que logo conseguiriam reunir tudo para preparar o remédio e curar Huan Zhong. Mas agora descobria que a Árvore Busca-Nuvens já não existia havia muito tempo.

Assim como a alegria intensa que sentira ao receber as notícias do Mestre do Pavilhão Sun, agora sentia uma tristeza de mesma intensidade.

Uma mão quente apertou a sua. Kong Hou ergueu a cabeça, atônita, e encontrou os olhos calorosos de Huan Zhong. Abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Sentia-se péssima por dentro, como se um grande emaranhado de algodão tivesse sido enfiado dentro de si — impossível de arrancar.

—Não tem problema. Podemos procurar com calma. Mesmo que não encontremos, tudo bem. —Huan Zhong viu que o rosto de Kong Hou estava pálido, como se ela não conseguisse aceitar a notícia. Apressadamente, começou a acariciar suas costas. —Está tudo bem, tudo bem. Se não houver aqui, ainda há outros lugares.

Kong Hou começou a se recompor aos poucos e apertou a mão de Huan Zhong de volta.

—Você tem razão — vamos encontrar, com certeza.

—A Árvore Busca-Nuvens não é algo fácil de encontrar — disse a cultivadora com frieza. —Ela tem esse nome porque consegue mudar de aparência e se move sem deixar rastros. É ainda mais difícil de capturar que as próprias nuvens.

—Tenho sorte, então com certeza vou encontrá-la. —Com receio de que Huan Zhong ficasse pensando demais, Kong Hou tratou de calar a cultivadora. —Você pode ir embora.

A cultivadora: "..."

Agora há pouco estava implorando, e agora vem com essa?

Será que todas as cultivadoras do mundo da cultivação são tão falsas hoje em dia?

Ela revirou os olhos e desapareceu em fumaça.

—O que era aquela cultivadora, afinal? —perguntou Jin Ling, olhando para a margem vazia do rio.

—Deve ser a inteligência do reino secreto —respondeu Lin Hu. —A imagem que vimos antes e as palavras “Portão da Vida e da Morte” eram pistas para nós. Elas nos induziam a julgar certas situações com base em certo e errado de forma superficial.

O reino secreto queria que aprendessem a enxergar o interior das pessoas, a distinguir verdade de mentira, a valorizar o caráter em vez da aparência. Mas esse tipo de teste não pareceu surtir muito efeito com eles.

Depois de saber que a Árvore Busca-Nuvens já havia murchado, o humor de Kong Hou ficou visivelmente abalado. Com medo de que Huan Zhong percebesse, ela manteve um sorriso no rosto.

Huan Zhong talvez já tivesse notado. Mesmo que não tivesse, não soltou sua mão.

##


Nos dias seguintes, o reino secreto permaneceu tranquilo e o grupo de Kong Hou colheu muitas ervas espirituais. Numa certa noite, enquanto Lin Hu e Kong Hou entravam na floresta para colher frutos, comentaram sobre como a aparência de Huan Zhong estava especialmente boa nos últimos dias.

— Quando fui transportado para outro lugar, coisas estranhas aconteceram?

— Coisas estranhas? — Kong Hou refletiu profundamente. Depois balançou a cabeça e respondeu: — Não.

Lin Hu ficou ainda mais confuso. Será que o Mestre havia sido afetado pela ilusão yao e de repente alcançado um grande esclarecimento?

— Não, tem uma coisa — Kong Hou jogou os frutos frescos para Lin Hu. — Eu pratiquei cultivo em dupla com o Huan Zhong.

— Cultivo em dupla? — Lin Hu olhou para o corpinho pequeno de Kong Hou. — A senhorita Kong Hou é tão jovem. Mestre...

— Já terminou? — Huan Zhong apareceu atrás deles, com uma expressão de grande serenidade.


Capítulo 79: Ferida de Espada

As palavras de Lin Hu foram cortadas quando viu Huan Zhong. Seu olhar percorreu Huan Zhong dos pés à cabeça, cheio de clara desaprovação. No entanto, algumas coisas não eram adequadas para dizer na frente de Kong Hou, então ele reprimiu o impulso.

Huan Zhong pegou dois frutos das mãos de Kong Hou, que ela acabara de colher.

— Lembre-se de descansar um pouco.

Kong Hou assentiu. Ela imaginou que os dois tinham assuntos para conversar, então correu para o lado.

Havia algumas construções de estilos variados num terreno vazio próximo. Essas construções eram talismãs para cultivadores morarem temporariamente enquanto viajavam.

Kong Hou levou os frutos para sentar ao lado de Ling Bo.

— Esses frutos estão realmente frescos.

Ling Bo não precisou de convite e estendeu a mão para pegar os frutos. Pegou uma bacia de água e os lavou.

— Cheios de energia espiritual, doces e crocantes — disse ela. — Quero levar para a seita e plantar.

— Esses frutos só são tão deliciosos porque crescem num lugar com energia espiritual tão densa — Kong Hou colocou todos os frutos na bacia e fez sinal para Ling Bo lavar tudo. Ling Bo fingiu não perceber a indireta e virou-se para olhar seu jovem shidi.

O jovem shidi entendeu imediatamente o que a shijie queria dizer. Arregalou as mangas e começou a lavar os frutos.

Não importava quem lavasse, apenas que alguém lavasse. Kong Hou escolheu um fruto grande e vermelho para comer.

— O que você planeja agora?

— Primeiro, encontrar meu shixiong mais velho — Ling Bo lembrou que Kong Hou e os outros estavam procurando algo chamado Árvore Buscadora de Nuvens. — Vocês encontraram o que queriam?

Kong Hou balançou a cabeça em silêncio. O espírito do reino secreto não lhe mentira. Talvez realmente não houvesse uma Árvore Buscadora de Nuvens ali dentro. Essa árvore não tocava o solo, e seu paradeiro era incerto. Ela tinha procurado na névoa e até na água, mas não encontrou nada.

— Muitas coisas dependem do acaso. Não tenha tanta pressa — Ling Bo estava num raro bom humor para conversar com uma jovem. — A Seita Radiante vê a espada como sua vida. Para eles, nada é mais importante que a espada.

Se essa jovem realmente ficasse com o Mestre do Espírito Huan Zhong, o melhor seria que vivessem na Montanha Nuvem Esplêndida. Para discípulos da Seita Nuvem Esplêndida, os dias na Seita Radiante não eram fáceis.

Kong Hou não sabia por que Ling Bo de repente mencionara como eram os cultivadores da espada da Seita Radiante, mas assentiu meio atordoada.

— Ah.

Olhando para sua expressão despreocupada, Ling Bo franziu levemente a testa. Essa era uma jovem que não sabia que assuntos comuns como esse podiam transformar uma deusa numa velha.

— E se você não encontrar o item — Ling Bo não quis insistir. Embora fosse orgulhosa, tinha a mente clara. Sabia que não era apropriado falar demais sobre certos assuntos.

— Primeiro, vamos enviá-la para o Caminho Amigo Chang De — Kong Hou olhou para o céu. — Nunca entrei num reino secreto antes. Desta vez, posso aprender e ampliar meu conhecimento.

Ling Bo ficou em silêncio. Normalmente, quando um discípulo entrava na seita, passava a primeira década quase toda cultivando na seita. Mesmo que houvesse reinos secretos, eles não eram adequados para recém-chegados explorarem.

Mas o cultivo de Kong Hou crescia rápido demais. Parecia inadequado aplicar essas tradições comuns a ela.

Existem vários tipos de reinos secretos. Alguns aparecem de repente e estão cheios de perigos. Outros foram deixados pelos ancestrais das seitas. Esses não são tão perigosos, mas há possibilidade de passar por dificuldades dentro deles.

Há também outro tipo, como o que estavam agora. Esses reinos secretos aparecem de vez em quando. Todos os cultivadores, independentemente da seita, podem entrar. O bem e o mal são difíceis de distinguir, e a vida e a morte podem mudar num instante.

— Sendo assim, fique aqui mais alguns dias. Este lugar está cheio de energia espiritual. Se você meditar aqui um dia, vale cinco ou seis dias fora — Ling Bo viu Jin Ling saindo do quarto e acenou. — Venha, coma frutas.

Jin Ling viu Ling Bo sentada de pernas cruzadas no almofadão, com os cabelos soltos casualmente para trás. Aquela não parecia a Celestial Ling Bo que ela conhecera na primeira vez, aquela que precisava que jogassem pétalas de flores na frente dela.

As pessoas realmente são diferentes em público e em privado. Jin Ling olhou para Kong Hou. Ela não era muito melhor que a Celestial Ling Bo. Felizmente, as duas eram cultivadoras bonitas. Mesmo desleixadas, ainda eram bonitas.

Se uma das duas estivesse vestida com capricho, a outra não aceitaria ser casual. Mas parecia que tinham combinado e de repente ficaram “desleixadas”.

— Estamos aqui há alguns dias. Não sei quando encontraremos o Caminho Amigo Chang De — disseram. Estavam há dois dias ali e só se viam, sem mais nenhum ser vivo por perto. Os homens restantes já tinham visto seus lados mais cruéis e brutais, então podiam relaxar um pouco e não manter tanto esforço para pareceram bem.

— Que tal você fazer uma leitura? — Ling Bo levantou uma sobrancelha para Kong Hou.

Kong Hou tocou a carapaça de tartaruga de jade e balançou a cabeça.

— Não, vou esperar o Huan Zhong fazer.

Alguns dias atrás, ela havia previsto que deveriam ir para o sul. Embora tivessem salvo por acaso o shidi de Ling Bo, nada mais na viagem tinha sido fácil.

Num momento tão importante, era melhor que alguém mais poderoso fizesse a leitura.

Olhando para as três mulheres conversando enquanto comiam frutas, a expressão de Lin Hu ficou especialmente séria.

— Mestre, como resolverá seu assunto com a senhorita Kong Hou?

Huan Zhong olhou para ele em silêncio, esperando suas próximas palavras.

— A senhorita Kong Hou é jovem. Você agir assim... não é apropriado — Lin Hu disse o que pensava, no fim. — Não use a confiança que a jovem tem em você para fazer coisas intempestivas.

— A coisa intempestiva que você fala é o cultivo em dupla universal quando Kong Hou e eu estamos juntos? — Huan Zhong olhou para Lin Hu com um olhar cheio de significado. — Lin Hu, eu não esperava que você pensasse assim...

Lin Hu ignorou a diversão nas palavras de Huan Zhong. Sua voz involuntariamente ficou mais alta.

— Mestre, suas palavras são verdadeiras?

O cultivo em dupla universal é algo que exige carma. Cultivadores que encontram essa oportunidade são raros.

Então, para os outros, quem possui essa chance é, sem dúvida, filho do caminho do céu.

Esse método de cultivo pode acelerar o avanço, e a energia espiritual pode ser usada para purificar os meridianos. Em termos simples, mesmo que o Mestre não consiga encontrar todos os ingredientes para sua medicina, ele pode contar com a senhorita Kong Hou para estabilizar sua plataforma espiritual e viver mais um século.

— Mestre — Lin Hu respirou fundo —. Acho que o senhor deveria ir falar com a senhorita Kong Hou e dizer que está disposto a servi-la em qualquer função.

Huan Zhong: “...”

Ninguém podia garantir o que aconteceria em cem anos. Talvez o Mestre pudesse usar esse tempo para encontrar uma maneira de se recuperar completamente.

— Não estou brincando — Lin Hu falou sério —. O céu é benevolente e deixa uma chance para todos os seres. Talvez a senhorita Kong Hou seja sua chance. Quando a conheci, achei que ela era uma jovem amigável e simpática, e escolhi acompanhá-la para protegê-la.

Mas Kong Hou era realmente muito cativante, especialmente para os mais velhos. Lin Hu tinha dificuldade em sentir qualquer coisa negativa sobre ela. Sabendo que ela e o Mestre tinham esse tipo de carma, ele entendeu tudo. Nessa viagem, ele e o Mestre não estavam protegendo ela, mas, na verdade, dependiam dela.

— Não precisa ser assim — Huan Zhong balançou a cabeça —. É bom que Kong Hou e eu tenhamos carma. Mas ser bom com ela não é por causa dessa oportunidade.

Lin Hu abriu a boca para responder, mas Huan Zhong o interrompeu.

— Vou discutir isso com Kong Hou; não fique falando coisas provocativas, tipo “servi-la em qualquer função” — Huan Zhong se virou para olhar Kong Hou, que ria alto enquanto conversava com Ling Bo. — Minha amizade com ela não precisa dessas coisas.

Huan Zhong não gostava de falar muito e raramente interrompia as pessoas. Só falava quando estava muito descontente. Lin Hu não esperava que o Mestre ficasse bravo por causa dessas poucas palavras.

Quando homens começam a ficar sensíveis por pequenas coisas, muitas situações não têm volta. Mas, desta vez, Lin Hu não advertiu Huan Zhong. Ele era amigo e professor do Mestre, mas não planejava assumir o papel de pai.

— Huan Zhong — depois de um tempo, Kong Hou se levantou e acenou para eles —. Venha ajudar a gente.

Huan Zhong caminhou até eles sem pensar.

— O que aconteceu?

— Venha adivinhar para onde devemos ir agora — Kong Hou olhou com os olhos bem abertos para Huan Zhong.

A expressão de Huan Zhong suavizou.

— Não combinamos de ir para o sul?

— A gente realmente vai continuar na direção que eu adivinhei? — Kong Hou parecia um pouco insegura.

— Sua leitura foi muito boa — Huan Zhong lançou um olhar para o jovem shidi da Seita Alvorada Clara. — Se não tivéssemos ido para o sul, talvez não tivéssemos encontrado outros amigos do caminho nem conhecido a Árvore Buscadora de Nuvens.

— Sério? — Kong Hou não parecia muito convencida.

— Eu acredito em você — Huan Zhong viu que o céu já estava completamente escuro. — Vamos ficar aqui mais uma noite e partiremos amanhã.

Ninguém teve objeções. Durante a viagem, haviam encontrado muitas ervas espirituais e tudo estava seguro. Não teriam nada contra voltar, muito menos em seguir para o sul.

Quem acompanha um grupo tem que se reconhecer. Se está junto e ainda reclama, tem algo errado na cabeça.

Ling Bo olhou para seu shidi acompanhante. Seguir o Mestre do Espírito Huan Zhong e os outros era, naquele momento, a escolha mais segura.

##


O sol nasceu novamente. Chang De estava encostado no tronco da árvore com seus dois shidi. Quando o primeiro raio de sol apareceu, ele abriu os olhos. Desde que entraram no reino secreto, não tinham tido um dia de paz.

Primeiro, foram perturbados pelos yao ilusórios. Depois, foram forçados a viver em quartos estranhos. Quando se levantavam de manhã, viam um monte de pedras espirituais num canto dos quartos. Se não pegassem as pedras espirituais, não podiam sair dos limites.

Depois, resgataram uma cultivadora que estava sendo intimidada por outra cultivadora. Mas a cultivadora vítima, desfigurada, na verdade havia feito algo errado com a outra. Eles foram duramente repreendidos pela bela cultivadora. Por culpa, nem podiam contra-argumentar.

Em seguida, foram perseguidos por súcubos que pareciam segui-los de propósito, aparecendo de vez em quando para que não pudessem descansar muito tempo.

Se fossem cultivadores com mente um pouco mais fraca, talvez já tivessem perdido a razão com o assédio constante das súcubos. Mas Chang De era diferente. Ele era o discípulo mais velho da Seita Alvorada Clara. Os shidi e shimei da seita nem sempre eram maduros e compreensivos, mas ele já estava acostumado a lidar com todo tipo de situação.

As súcubos podiam facilmente deixar as pessoas inquietas, mas nem as mais irritantes delas chegavam aos pés dos discípulos da seita com suas personalidades estranhas.

Ele se levantou e viu que o manto externo que cobria um dos shidi havia caído na lama. Curvou-se para puxar o manto de volta para cima do shidi.

Os dois shidi dormiam profundamente. Mesmo com a luz do sol brilhando em seus rostos, apenas viravam as costas para o sol e continuavam dormindo.

Chang De suspirou. Tão desprevenidos. Se estivessem viajando sozinhos, não sobreviveriam contra cultivadores malignos. O reino secreto não tinha estações definidas. Em alguns lugares flores floresciam, em outros fazia um calor incomum, e havia áreas cobertas de neve.

Olhando para o lago próximo, começou a se preocupar com os outros shidi e com a Shimei Ling Bo. O grupo de cinco havia se separado após entrar no reino secreto. O shidi mais jovem havia entrado na seita há apenas uma década, e Ling Bo Shimei era uma pessoa orgulhosa. Normalmente, com a tolerância deles, tudo ficava bem, mas ninguém no reino secreto os toleraria.

Antes mesmo de se tornar pai, ele já se preocupava como um. Chang De sentia que a maior “cultivação” de sua vida não era o caminho da espada, mas esses shidi e shimei.

Um leve cheiro de sangue se espalhou pela floresta. Como cultivador da espada, seus sentidos eram extremamente aguçados. Ele percebeu que algo estava errado e acordou seus dois shidi.

— Levantem-se — disse —. Algo está acontecendo.

— Shixiong mais velho? — os dois shidi saltaram do chão com suas espadas e rapidamente se aproximaram de Chang De.

— Não entrem em pânico — Chang De se virou para eles —. Quanto mais vocês se desesperarem, mais fácil será para os demônios mentais entrarem. Vocês estão assim no reino secreto, relativamente seguro. Se encontrarem cultivadores malignos, o que vão fazer?

Os dois shidi ouviram a lição docilmente e não ousaram discutir.

— Sigam atrás de mim e fiquem atentos às suas costas — Chang De estava preocupado que alguém tivesse se metido em perigo e decidiu dar uma volta para investigar.

Chegaram do outro lado do lago. Ele viu um cultivador da aliança nômade deitado na água, o sangue vazando dele e tingindo a água ao redor de vermelho. Tinha uma impressão desse cultivador nômade. O outro havia se curvado levemente para ele ao entrar no reino secreto.

— Shixiong mais velho — os dois shidi queriam puxar a pessoa para fora da água. Chang De os deteve.

— Não se mexam — balançou a manga e usou energia espiritual para tirar o homem do lago. Sua expressão ficou grave. — Ele já está morto.

A expressão dos dois shidi também mudou. Desde que entraram no reino secreto, encontraram muitos eventos estranhos, mas nunca tinham se preocupado com a vida. Agora, de repente, alguém estava morto. Isso significava que o reino secreto não era seguro?

— É uma ferida de espada — Chang De olhou as lesões no cadáver. — Um golpe atingiu a plataforma espiritual, outro atravessou o coração. Os ferimentos são pequenos e precisos. O atacante deve ser um especialista na espada.

— Essa pessoa morreu por causa de outras pessoas, não por causa do reino secreto.

— Shixiong mais velho, não há anéis de armazenamento no corpo, nem bolsas de armazenamento.

Poucas pessoas haviam entrado no reino secreto, e todos sabiam quem usava espada. Essa pessoa não tinha itens de armazenamento. Não era que ele não tivesse, alguém os havia tomado.

Matar por riqueza, cruel e impiedoso.

Com o status e força da Seita Alvorada Clara, Seita do Esplendor, Seita da Nuvem Resplandecente e Seita da Sorte Primária, os discípulos das seitas definitivamente não matariam por riqueza. Eles não faltavam com ervas espirituais e remédios. Mesmo se faltassem, não usariam táticas assim.

Se um discípulo fosse realmente assim, a seita não o manteria, muito menos o aceitaria como aprendiz.

Os discípulos da seita não fariam isso. Os culpados mais prováveis eram os cultivadores nômades. Esses cultivadores eram, em nome, da aliança nômade, mas, a menos que algo grave acontecesse, não interagiam muito. Por isso, não se conheciam bem.

Quando Chang De pensava nisso, o ancião da aliança nômade chegou apressado com três cultivadores nômades. Devem ter sentido o cheiro de sangue e vieram verificar.

Chang De não se surpreendeu com a chegada deles. Além do ancião da aliança, os outros três não eram habilidosos em disfarces. Ele os detectou se aproximando de longe.

Quando os quatro da aliança chegaram, viram os discípulos da Seita Alvorada Clara vasculhando as roupas do cadáver e logo tiraram conclusões precipitadas. Quando perceberam que o cultivador caído era da aliança nômade e que as feridas fatais tinham sido feitas por espadas, as expressões dos quatro ficaram feias.

Se não fosse pelo respeito ao status de Chang De, alguém teria apontado a espada para ele e perguntado: “Foi você que o matou?”

Depois de um longo silêncio, Chang De decidiu explicar:

— Quando chegamos, esse companheiro do caminho já estava deitado na água.

Os cultivadores nômades olharam para a água. O lago estava limpo, sem vestígios de sangue.

Chang De olhou também. Vendo o lago claro, franziu um pouco a testa. Para onde tinha ido o sangue?

O shidi de Chang De percebeu e gaguejou:

— Shixiong, eu usei um feitiço de limpeza no lago por hábito, agora há pouco.

Então... o sangue havia sumido.

Por que você não usou um feitiço de limpeza na sua cabeça?

Chang De quase xingou, mas conseguiu se controlar com seus anos de compostura. Quem saberia a dor de conviver com seus shidi e shimei que viviam arrumando confusão para ele?

— Por que usaria um feitiço de limpeza no lago? Quem é que você pensa que vai enganar? — um cultivador jovem entre os nômades falou sarcasticamente —. Que coincidência, hein?

— Proteger a fonte de água, preservar o meio ambiente — o shidi da Seita Alvorada Clara parecia não captar o sentido oculto das palavras do nômade. Tirou um pano branco grande do anel de armazenamento e cobriu o rosto do morto. — Aos olhos de todos aqui, parece que você me entendeu errado.

O ancião da aliança nômade examinou o corpo. Encontrou duas feridas, ambas fatais. Ele ficou em pé, hesitou um momento e disse:

— Por favor, companheiro do caminho Chang De, conte-me o que aconteceu.

Chang De sabia que esses cultivadores nômades não acreditavam nele. No entanto, naquela situação, era normal que eles desconfiassem. Ele não ficou irritado por isso e contou todo o ocorrido.

— Você é quem está dizendo tudo isso — disse o jovem cultivador nômade —, quem sabe se não está mentindo para nós?

Esse companheiro do caminho que morreu não tinha defeitos terríveis, mas muitos pequenos. Gostava de se aproveitar dos outros, falava demais sem pensar e não era bonito.

Esses pequenos defeitos eram desagradáveis, mas não ao ponto de alguém matá-lo. Mas para esses discípulos orgulhosos da seita, talvez fossem crimes imperdoáveis.

— Companheiro do caminho, o que quer dizer? Fale claramente — a expressão de Chang De ficou fria. Colocou as mãos atrás das costas e pareceu extremamente autoritário. — Se quiséssemos matar alguém, por que ficaríamos aqui conversando com vocês?

Suas palavras pressionavam, mas os quatro cultivadores nômades provavelmente não teriam chances contra os três cultivadores da espada.

O cultivador nômade não gostou do tom, mas vendo os outros três ficarem calados, fechou a boca. Se rolasse um conflito e os outros não o apoiassem, ele nem teria chance de fugir.

— Posso entender os sentimentos do companheiro do caminho, mas, antes que tudo fique claro, não falem precipitadamente — a expressão de Chang De amoleceu um pouco —, para evitar conflitos desnecessários.

— O companheiro do caminho viu alguma figura estranha quando chegou? — o ancião da aliança nômade era confiável em suas ações e seu tom ao perguntar era ainda mais tranquilo.

— Não — Chang De balançou a cabeça. Não queria um grande conflito com a aliança nômade. Fez uma reverência típica dos mais jovens para o ancião. — Quando meus dois shidi e eu chegamos, o corpo desse companheiro do caminho já estava no lago.

O ancião da aliança nômade lançou um olhar para Chang De. Parecia inclinado a acreditar nele. Virou-se para confortar os outros cultivadores nômades, evitando que o clima ficasse mais tenso. Não valeria a pena irritar toda a Seita Alvorada Clara por algo sem provas.

A pessoa estava morta e o culpado era desconhecido. Se eles irritassem a Seita Alvorada Clara agora, significaria cortar relações com todos os discípulos da seita antes de sair do reino secreto. As dez seitas interagiam entre si. Todos os discípulos falariam em defesa da Seita Alvorada Clara.

Às vezes, o reconhecimento de status era uma posição natural. Discípulos de seita ficavam mais próximos de outros discípulos de seita. Era normal.

— Obrigado, companheiro do caminho, por nos contar — o ancião preparava-se para levar o corpo do cultivador nômade. — Os caminhos do reino secreto são desconhecidos. Se o companheiro do caminho não se importar com nossa baixa cultivação, por favor, permita que viajemos com vocês.

Muitas vezes, quando o conflito é exposto, fica mais fácil de resolver. Escolher viajar com os discípulos da Seita Alvorada Clara era melhor do que lutar sozinho.

Antes que Chang De pudesse responder, ouviu vozes próximas. Agarrou o cabo da espada.

— Estão vindo outras pessoas.

Os cultivadores nômades se entreolharam. Onde?

Depois de um tempo, finalmente ouviram vozes vindo de cima de suas cabeças.

Usar talismãs voadores no reino secreto? Os cultivadores nômades fizeram expressões estranhas. Queriam mesmo ser alvo? Ou achavam que o reino secreto era lugar de diversão? Ficaram sem graça para criticar isso. E se fossem pessoas da aliança nômade?

— Shixiong mais velho, parece a voz da Shimei Ling Bo — o discípulo da Seita Alvorada Clara olhou para o céu e levantou a voz. — Companheiros do caminho que estão no céu, este aqui é um discípulo da Seita Alvorada Clara e convida vocês para descer.

— Seita Alvorada Clara? Esse é um dos meus shixiong — Ling Bo estava radiante e elogiava Kong Hou. — Você tem um talento incrível para adivinhação. Realmente os encontramos seguindo para o sul.

Olhando para a expressão alegre de Ling Bo, Kong Hou permaneceu em silêncio.

Quando ela fez aquela leitura, só pensava em qual direção era mais auspiciosa, não nisso.

Será que esse mal-entendido não estava um pouco grande demais?

Capítulo 80: Resolvido

Quando Ling Bo viu Chang De e os outros shixiong, puxou seu shidi e voou até eles como um passarinho recém-nascido voltando ao ninho. Ela reagiu tão rápido, como se finalmente tivesse sido liberada de uma grande dificuldade.

Ao ver Ling Bo e o jovem shidi aparecerem, o olhar de Chang De os percorreu e então suavizou. Por mais cansadas que as crianças estivessem, quando sua segurança era incerta, o shixiong sempre se preocupava. Felizmente, ambos estavam bem e não tinham sido atacados. E eles também... provavelmente não haviam atacado ninguém.

Quando os cinco discípulos se reuniram, ficaram um pouco animados. Chang De olhou para o céu e viu o Mestre Espiritual Huan Zhong em cima da espada voadora, e Kong Hou atrás dele, observando-os. Percebendo seu olhar, a senhorita Kong Hou sorriu e acenou para ele.

Chang De sorriu e fez uma leve reverência para os dois.

Os quatro cultivadores nômades viram Ling Bo e os demais aparecerem. Sentiram-se um pouco divididos. Alegravam-se por não terem descido para lutar contra os membros da Seita Alvorada Clara, mas odiavam não poder desabafar sua insatisfação diante daqueles discípulos de seita.

— Shixiong, isso é... — Ling Bo notou o cadáver próximo e sua expressão mudou levemente.

— Alguém morreu aqui? — Pensando no que tinham enfrentado no reino secreto, Ling Bo ficou um pouco intrigada. — Quem é a vítima?

— Um companheiro do caminho da aliança nômade. — Com os membros da aliança nômade presentes, Chang De não falou muito.

Ling Bo olhou para os quatro da aliança nômade e assentiu levemente para eles.

O jovem cultivador nômade que pressionara Chang De não disse nada desagradável na frente de Ling Bo e retribuiu a saudação.

— O que aconteceu aqui? — Kong Hou desceu voando. O reino secreto estava cheio de energia espiritual, e quase nenhum odor saía do cadáver exposto ao tempo. Tirando a pele exposta estar um pouco estranha e as roupas molhadas, o corpo não começara a inchar.

A vítima não parecia estar morta há muito tempo, a menos que a energia espiritual do reino secreto pudesse influenciar a velocidade das transformações no cadáver.

— Celestial Kong Hou. — Os quatro cultivadores nômades viram Kong Hou, e o ancião da aliança nômade se curvou para ela. — A vítima é um cultivador nômade da nossa aliança. Não faz muito, a Celestial Companheira do Caminho encontrou seu corpo no lago. Ele tem duas feridas de espada e o culpado é desconhecido.

Kong Hou retribuiu a reverência e circulou ao redor do cadáver. Depois de fazer uma reverência à vítima, levantou o pano branco. Era um homem de aparência comum. A menos que fosse um ótimo falador, com muitos artifícios para conquistar mulheres, isso não parecia um crime passional.

As duas feridas de espada eram rápidas e cruéis. Se fosse um cultivador poderoso, poderia fazer dois furos no corpo em um piscar de olhos.

Os mais habilidosos com espada no reino secreto eram os discípulos da Seita Alvorada Clara e da Seita do Esplendor. E, somando o fato de que os discípulos da Seita Alvorada Clara foram os que encontraram o corpo, Kong Hou percebeu que os cultivadores nômades suspeitavam deles. Porém, por serem poucos, não tinham coragem de dizer isso em voz alta.

Mas, se essa questão não fosse esclarecida, mais conflitos se acumulariam, dificultando a resolução futura.

Kong Hou ficou de pé e olhou ao redor. — Suspeito que o culpado ainda não tenha ido muito longe.

O ancião da aliança nômade contou o ocorrido para Kong Hou para que ela espalhasse a notícia. Mesmo que esses discípulos de seita não quisessem ajudá-los, a Seita Alvorada Clara não faria algo tão absurdo como matar todos eles na frente das outras seitas.

Então, ao ouvir isso de Kong Hou, ele ficou intrigado. Será que ela queria proteger a Seita Alvorada Clara ou realmente tinha encontrado o culpado?

— A vítima deve ter morrido há menos de duas horas. O culpado o matou e não deve ter saído voando num talismã, com medo de ser encontrado. Deve ter escolhido viajar a pé — Lin Hu, que havia descido, olhou para o cadáver e falou calmamente —. O culpado é um especialista em espada. Mas, se cultivadores da espada como eu querem matar, matam com um golpe só. Não precisa de um segundo ataque.

Lin Hu ficou em pé e olhou para os membros da aliança nômade. — O culpado e a vítima provavelmente tinham antigas inimizades.

— Isso... — o ancião da aliança nômade não sabia quais conflitos os membros da aliança tinham, então franziu a testa e ficou em silêncio.

— Ancião. — o cultivador nômade de meia-idade que tinha sido salvo, Lu Yi, viu os membros da aliança nômade. Estava feliz, mas seu ânimo caiu ao ver um cultivador nômade morto. Se não tivesse encontrado esses companheiros do caminho das seitas no caminho, ele poderia ter acabado como aquele cadáver.

— Lu Yi? — o ancião da aliança nômade viu Lu Yi aparecer atrás dos discípulos da seita e demonstrou surpresa no olhar. — Por que você está com a Celestial Kong Hou?

— O companheiro do caminho Wang Jia e eu entramos no reino secreto juntos. Felizmente, com a ajuda dos companheiros do caminho da Seita Alvorada Clara e depois da ajuda da Celestial Kong Hou, eu sobrevivi. Quando fomos atacados pelas súcubos antes, pensei que iria morrer, então mandei o companheiro Wang Jia sair primeiro. Se ele tivesse encontrado vocês, poderia contar o que aconteceu. Não sei o que aconteceu com ele depois que ficou sozinho.

Se soubesse antes que encontraria discípulos de seita, não teria deixado o companheiro Wang Jia sair sozinho.

Ao ouvir Lu Yi dizer que os discípulos da Seita Alvorada Clara o tinham resgatado, o ancião da aliança nômade ficou ainda mais certo de que o culpado não era um membro da Seita Alvorada Clara. Em um momento perigoso, os discípulos da Seita Alvorada Clara podiam ajudar os cultivadores nômades. Eles não eram pessoas que matariam cultivadores nômades sem motivo algum. Ao ouvir Lu Yi mencionar Wang Jia, o ancião da aliança nômade apontou para o cadáver no chão e suspirou.

A pessoa no chão era Wang Jia.

Lu Yi entendeu imediatamente. Murmurou chocado:

— Como isso pôde acontecer? Eu mandei Wang Jia sair para me proteger. Mas isso acabou sendo o sinal da morte dele.

— Isso não é culpa sua. Não pense demais — o jovem discípulo da Seita Alvorada Clara bateu no ombro dele e suspirou —. Você não poderia esperar por isso.

Lu Yi forçou um sorriso e parou de falar.

O cultivador nômade que tinha discutido com a Seita Alvorada Clara estava com uma expressão embaraçada. Vendo Lu Yi, que havia sido ajudado pela Seita Alvorada Clara, e o discípulo confortando Lu Yi, o jovem cultivador nômade foi percebendo, apesar da impulsividade, que a Seita Alvorada Clara não tinha nada a ver com a morte de Wang Jia.

— Agora há pouco, do outro lado da margem, senti cheiro de sangue — Chang De era uma pessoa meticulosa e logo pensou em outra possibilidade. — Mas a energia espiritual no reino secreto é tão densa... como o cheiro de sangue poderia se espalhar tão longe?

Talvez o culpado já tenha percebido que membros da aliança nômade estavam se aproximando e tenha usado esse meio para garantir que encontrassem o cadáver. Mas por que ele faria isso? Queriam mirar na Seita Alvorada Clara ou tentar plantar discórdia entre a Seita Alvorada Clara e os cultivadores nômades?

A aliança nômade era apenas um local para os cultivadores nômades trocarem recursos e interagirem. Eles não eram tão unidos quanto os discípulos de seita. Mesmo se fosse para plantar discórdia, a Seita Alvorada Clara, com seu status, não temeria o poder da aliança nômade. E a aliança nômade, com sua força, não teria coragem de causar problemas para a Seita Alvorada Clara sem provas.

O que o culpado pretendia com tudo isso?

— Esse culpado é cruel demais. Quer plantar discórdia entre a seita e os cultivadores nômades? — Kong Hou percebeu. — Táticas como jogar a culpa nos outros são coisas que só pessoas vilãs fariam.

Nos livros de história, vilões usavam essas táticas para prejudicar os outros. Se a vítima não percebesse, coisas piores aconteceriam.

Chang De olhou de lado para Kong Hou e entendeu imediatamente o que o culpado queria. Não era mirar na Seita Alvorada Clara, mas sim no conflito entre seitas e cultivadores nômades.

— Lin Hu. — Huan Zhong desceu da espada voadora e foi ficar ao lado de Kong Hou, bloqueando o olhar de Chang De por acaso.

— Sim. — Lin Hu se curvou e arremessou a espada voadora no ar antes de voar para cima.

— Para onde o Ancião Lin está indo? — Kong Hou viu Lin Hu desaparecer num piscar de olhos e sentiu um pouco de inveja. Não sabia quanto tempo precisaria cultivar para alcançar a velocidade do Ancião Lin.

— Para encontrá-lo. — Huan Zhong adivinhou o pensamento de Kong Hou e riu. — Lin Hu é mais rápido que eu. É um talento sanguíneo, algo que não se consegue só com cultivo. Não foi sorte Lin Hu ter conseguido nos encontrar em dois dias depois de ser transportado para outro lugar.

Como cultivador discriminado pelo reino secreto por causa do seu sangue, Lin Hu não tinha sorte aqui.

— Mestre Espiritual Huan Zhong, o reino secreto é complicado e imprevisível. Será problemático mandar esse companheiro do caminho procurar? — O ancião da aliança nômade sabia que Lin Hu tinha saído para procurar o culpado, mas o lugar estava cheio de formações. A geografia mudava constantemente e não seria fácil achar quem quer se esconder.

— Não importa. — O tom de Huan Zhong era calmo. — Só uma tentativa.

O cultivador da aliança nômade fechou a boca, constrangido. Sentia que, se continuasse conversando com esse Mestre Espiritual Huan Zhong, o clima ficaria ainda mais estranho. Virou-se e pegou uma bolsa de armazenamento para colocar o corpo de Wang Jia.

Kong Hou viu todos em silêncio e tirou um punhado de frutas do anel de armazenamento.

— Todos estão cansados — disse —. Querem frutas?

Os cultivadores nômades ficaram em silêncio, imóveis, olhando para as frutas vermelhas de Kong Hou.

— Obrigado. — Uma mão fina alcançou a de Kong Hou e pegou uma fruta.

— De nada, companheiro do caminho Chang De. — Kong Hou deu metade da fruta para Chang De e a outra metade para o ancião da aliança nômade. — Precisamos esclarecer qualquer mal-entendido para não comprometer a paz.

O jovem cultivador nômade corou e fez uma reverência a Chang De.

— Há pouco, eu ofendi você profundamente. Companheiro do Caminho, por favor, me perdoe.

— Não precisa disso — Chang De segurava um punhado de frutos espirituais, sem demonstrar qualquer expressão. — O caso foi uma grande coincidência, e é natural que tenham suspeitas. Mas, ao viajar, é preciso controlar o temperamento. Se encontrar alguém de mente fechada, pode causar um grande problema.

— Sim, obrigado, Companheiro do Caminho Chang De, pelo seu conselho — o rosto do jovem cultivador nômade ficou vermelho como brasa. Vendo que Chang De não guardava ressentimento, ele se recolheu no canto. Sua opinião sobre os discípulos da seita mudou completamente. Uma hora atrás, achava que eles eram falsos cavalheiros; agora, sabia que eram pessoas verdadeiramente honradas e generosas.

Mudar a opinião das pessoas às vezes acontece num piscar de olhos.

A relação entre os discípulos da Seita Alvorada Clara e os cultivadores nômades melhorou. Ao lado, Huan Zhong observava em silêncio as mãos vazias de Kong Hou.

Kong Hou não percebeu seu olhar. Tirou algumas frutas douradas espirituais da bolsa de armazenamento e enfiou na mão dele. Disse usando a arte sonora:

— Esta fruta dourada é benéfica para nutrir a plataforma espiritual. Mas são poucas, e não posso compartilhá-las com outros.

Ao ver a jovem puxar sua manga e empurrar várias pequenas frutas espirituais para ele, os olhos de Huan Zhong brilharam.

Ela dava coisas boas secretamente para ele e não queria dividir com os outros?

— Tudo bem — Huan Zhong colocou uma fruta espiritual na boca.

Como esperado, era doce, da ponta da língua até o coração.

Naquele exato momento, duas pessoas caíram do céu e pulverizaram uma rocha no chão.


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