Capitulo 1
— O Mestre Yuexian garantiu que dará uma explicação ao nosso mestre. Mesmo enquanto busca pela alma de Fu Gongzi, não descansará até descobrir quem ousou ferir a jovem.
Do lado de fora da porta, uma voz ressoava abafada, como se viesse através de uma parede de água, arrastada, grave e distante. O som parecia pulsar em sua cabeça, misturado à dor que latejava em suas têmporas.
Fu Changling abriu os olhos com dificuldade, sentindo as pálpebras pesadas como chumbo. A penumbra do quarto oscilava diante dele, e por um instante não soube se ainda estava preso em um sonho.
As vozes voltaram, mais nítidas desta vez, carregadas de desdém:
— A senhorita Yue Min sempre foi arrogante. O mestre deveria tomar cuidado. Se ela não tivesse chamado o Sr. Fu de tolo, ele não estaria aqui, ferido dessa forma. As coisas estão se desenrolando…
Yue Min?
O nome atingiu-o como um estalo repentino. Uma sensação estranha lhe percorreu o peito, como se uma lembrança adormecida tentasse despertar. Fu Changling franziu a testa, pressionando os dedos contra o colchão para sustentar o próprio peso. Seu corpo ainda tremia, e cada movimento parecia pesado demais, mas ele forçou-se a se sentar.
O quarto girou levemente, e ele levou a mão à cabeça, tentando afastar a vertigem. O nome continuava ecoando dentro dele, misturado às vozes do lado de fora, até que não soube distinguir se o chamado vinha deles… ou de sua própria memória.
A dor era lancinante, latejava na cabeça, queimava no rosto, espalhava-se por cada parte do corpo. Ao tentar se mover, ele se engasgou, ofegante, e instintivamente levou a mão ao ferimento. O toque fez a raiva ferver em suas entranhas. Estava prestes a soltar um xingamento, mas, quando abriu os lábios, um silêncio absoluto o envolveu. Nenhum som saiu.
O choque foi imediato, embora aquela sensação não lhe fosse estranha. A família Fu carregava uma maldição antiga, palavras proibidas, seladas no fundo da garganta, que os condenavam ao silêncio. Nos tempos remotos, o próprio Núcleo Dourado havia lançado tal castigo, impedindo-os de falar livremente.
Mas aquilo não fazia sentido. Ele já havia rompido essas correntes aos dezoito anos, quando formara sua pílula espiritual e libertara-se da maldição. Então… por que agora, de repente, sua voz parecia que lhe havia sido arrancada outra vez?
Fu Changling despertou subitamente, tomado por uma estranha lucidez. Como poderia ainda estar consciente? Ele tinha certeza de que havia morrido, sua última lembrança era da travessia pela Ponte da Reencarnação, onde sua alma deveria ter se dissipado. Confuso, olhou ao redor com urgência.
O que viu o deixou ainda mais inquieto: estava em um quarto decadente, com paredes rachadas e sem qualquer sinal de conforto, nem colchas, nem mobília digna. Aquilo não fazia sentido. Como líder da Liga Imortal, Fu Changling havia vivido por anos cercado de luxo e reverência.
Então por que agora se encontrava em um lugar tão miserável, como se tivesse sido arrancado de sua glória e lançado à ruína? Algo estava profundamente errado.
Apesar da sala estar em ruínas, um espelho de bronze permanecia intacto, erguendo-se solitário entre os destroços como se fosse uma relíquia protegida do tempo. A superfície escura, ligeiramente embaçada, refletia tremores da chama da lamparina próxima, fazendo sua própria imagem oscilar.
Com o coração acelerado, ele se aproximou e agarrou a borda fria do espelho, inclinando-se para ver com clareza. Do reflexo, devolveu-lhe o olhar de um jovem: com traços suaves, contornos delicados, e aquele leve volume infantil nas bochechas que lhe dava um ar inocente, quase pueril. Seus lábios se curvaram num sorriso tênue, como se acolhessem a brisa morna da primavera de março. Por um instante, havia apenas aquilo: beleza intocada em meio à decadência.
Mas logo o encanto se quebrou. Do lado de fora, um sussurro rasgou o silêncio, abafado mas nítido o bastante para congelar-lhe o sangue nas veias:
— Mestre Yuexian não é apenas um servo do Mestre Fu? Como ousa procurar pela alma dele?
— Você não sabe disso — murmurou o estranho. — Mestre Yuexian, na verdade, é apenas um servo. Ele pertence às fadas que vieram como parte do dote da Sra. Fu, quando ela se casou. Já Mestre Fu… ele é o verdadeiro filho legítimo da família. A Sra. Fu foi acolhida e criada dentro da casa antes mesmo do nascimento de Mestre Fu. Ainda assim, no fundo, ela sempre nutriu o desejo de vê-lo morto.
As palavras caíram pesadas nos ouvidos de Fu Changling. Nomes e lembranças entrelaçaram-se em sua mente, Mestre Yue, Yue Min, a Maldição Proibida… tudo ecoava como fragmentos de um passado que ele acreditava esquecido.
Ele fechou os olhos por um instante, permitindo que a memória o tragasse. Aos poucos, as peças começaram a se encaixar. Sim… aquilo havia acontecido quarenta anos antes.
Naquela época, ele tinha apenas dezessete anos. Sob as ordens de sua madrasta, Yue Shiua, fora enviado à cidade de Baishui para exorcizar espíritos malignos. E não foi sozinho: a seu lado estava a fada serva, Yue Mingsi.
A cidade de Baishui era um território ancestral da família Fu. Nos últimos dois anos, quase cem pessoas haviam desaparecido misteriosamente ali.
Normalmente, a Porta Imortal não se envolvia em casos desse tipo. Porém, quando até mesmo uma ramificação da família Fu sumiu sem deixar rastros, os anciãos foram forçados a agir, e a família acabou punida pela negligência.
Foi nesse cenário que Yue Sihua, madrasta de Fu Changling, encontrou sua oportunidade. Com o patriarca ausente, ela lançou o jovem à frente do desastre. Chamou aquilo de “treinamento”, uma chance de crescimento. Mas, no fundo, tratava-se apenas de um disfarce cruel: ela queria se livrar dele. Só quando pisou em Baishui, Fu Changling compreendeu que não era um exercício. Era uma missão real. E ele já estava preso nela.
Ali, hospedaram-se na residência da outrora ilustre família Shangguan. Antigamente, aquele nome ecoava com respeito: havia entre eles um cultivador do Núcleo Dourado, cuja presença bastava para intimidar clãs inteiros. Mas a glória passara. O que restava era apenas um descendente frágil, com o espírito danificado e sem qualquer esperança de avanço. Ele vivia recluso, à espera da morte, como um fantasma vagando por sua própria casa. A mansão Shangguan, silenciosa e cheia de corredores vazios, parecia mais um túmulo aberto, um lembrete de que até os mais poderosos podem se tornar ruínas.
Na residência da família Shangguan, os acontecimentos rapidamente tomaram um rumo sombrio. A morte de Shangguan Yuemin marcou o início de uma desordem ainda maior: a busca por almas deixou de ser velada e passou a ser feita às claras, sem disfarces, como se o próprio tabu tivesse sido quebrado. A imprudência e a fome por conhecimento imortal cobraram, ali, um preço devastador.
Entre os que foram arrastados por esse caos estava Yue Mingsi. Tendo perdido uma oportunidade decisiva, ela voltou-se para um caminho ainda mais arriscado. Mais tarde, aventurou-se no Reino Xuanyi, um domínio temido até pelos mais poderosos. Poucos que atravessavam suas fronteiras retornavam vivos. Ali, a ambição dos cultivadores colidia com forças primitivas e indomáveis, poderes que nem mesmo os mais experientes ousavam desafiar.
Após assumir a liderança da Liga Imortal, Fu Changling voltou sua atenção para um mistério que há muito inquietava os reinos espirituais: o Cultivo do Demônio do Carma, uma prática sombria que corroía destinos e corações.
Sua investigação o conduziu até as ruínas da antiga residência da família Shangguan, um lugar impregnado por estranhas manifestações mágicas, onde o ar parecia vibrar com resquícios de algo profano. Entre os destroços, foram encontrados indícios da lendária Espada de Neve de Travesseiro, a mesma que um dia pertencera a Qin Yan.
Qin Yan, outrora um cultivador promissor, havia perdido o controle sobre o próprio destino. Consumido pela ambição, mergulhou nas profundezas do Demônio do Carma, e assim seu nome foi selado para sempre entre aqueles que ousaram desafiar os limites da imortalidade, e pagaram o preço.
Agora, a casa dos Shangguan, caída em ruínas, exibia os primeiros sinais de reparos mágicos. Era como se alguém tentasse despertar antigas forças adormecidas. Para Fu Changling, aquilo não era um simples indício: era a prova de que um acontecimento muito maior estava prestes a se revelar.
Era quase certo: Qin Yan estava por trás daquilo. Só de pensar nesse nome, Fu Changling sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, como se a sombra de um passado mal resolvido voltasse para sufocá-lo. Qin Yan não era apenas uma lembrança distante, ele era o espectro que assombrava cada etapa de sua vida.
Ambos haviam crescido lado a lado, da mesma idade, mas em mundos opostos. Qin Yan fora o primeiro discípulo do Palácio Celestial de Hongmeng, um prodígio venerado como se tivesse nascido sob a bênção dos céus. Já Fu Changling, mesmo esforçado, vivia esmagado pelas comparações cruéis.
“Veja como Qin Yan é superior!”, dizia seu pai, com o dedo em riste, cada palavra como uma lâmina cravada em seu coração. Essas feridas nunca cicatrizaram. Pelo contrário, abriram-se em noites intermináveis de insônia, alimentando sonhos recorrentes, pesadelos nos quais Qin Yan, mais uma vez, ascendia glorioso, conquistando o primeiro lugar na avaliação do Dao Imortal, enquanto Fu Changling permanecia para trás, atolado no peso sufocante da expectativa e da frustração.
Depois, Qin Yan se trancou na Prisão Karma. Ali, quebrou todos os tabus: matou o próprio mestre, desafiou os ancestrais e renasceu como o temido Lorde Demônio Sui Yan, soberano do Palácio Wushou. Foi ele quem exterminou a família Fu, reduzindo-a a cinzas, e quase arrancou a própria vida de Fu Changling, mergulhando-o ainda mais fundo no abismo de seu pesadelo.
Mesmo de olhos fechados, Fu Changling não encontrava descanso. Nos sonhos, Qin Yan surgia sempre: a espada escorrendo sangue, o olhar implacável que atravessava sua alma.
No fim, a vingança veio. Fu Changling o derrotou, e por um breve instante acreditou que a tormenta cessaria. Mas diante da morte, Qin Yan arrancou um fio de amor do próprio coração e o esmagou diante de seus olhos, uma maldição silenciosa, lançada sem palavras. Desde então, noite após noite, Fu Changling o reencontrava em sonhos, preso a uma lembrança que se recusava a morrer.
Mesmo em sua última jornada, quando a vida dos dois se esgotou, ambos correram lado a lado até o ponto da reencarnação, caindo no mesmo dia, como se os céus houvessem entrelaçado seus destinos em um nó impossível de desfazer.
Só de lembrar de Qin Yan, a cabeça de Fu Changling latejava, o peito se contraía, e o corpo inteiro era arrastado para a dor, uma dor que não vinha apenas do passado, mas de algo mais profundo, como se sua própria existência fosse refém daquele vínculo.
Fu Changling não queria pensar em Qin Yan, mas, naquele instante, sua própria sobrevivência dependia disso. Precisava recordar, ainda que cada memória fosse como uma lâmina em seu peito. Agora, diante da possibilidade de reencontrá-lo, uma única pergunta ressoava em sua mente como trovão: teria alguma chance contra ele?
Fechou os olhos e mergulhou no passado. Voltou aos dias em que ambos tinham apenas dezessete anos. Já naquela época, Qin Yan era reverenciado como o prodígio mais promissor abaixo do nível da Alma Nascente. Sua fama ecoava por todos os reinos, mas sua postura permanecia discreta, quase silenciosa, como um lago sereno que escondia a fúria de um oceano.
Diziam que, se o mundo o exaltava por ser o maior abaixo da Alma Nascente, era apenas porque sua verdadeira força já roçava limites inalcançáveis, capazes de rivalizar, e talvez até superar, aqueles que haviam transcendido.
Fu Changling sabia: sua base de cultivo estava arruinada, e nada poderia mudá-la. Qin Yan, por outro lado, sempre fora inabalável nesse caminho, um verdadeiro colosso. Mesmo enfraquecido, ainda irradiava um poder sufocante, capaz de esmagar qualquer um que ousasse enfrentá-lo.
Quando seus olhares se cruzaram, uma certeza cortante atravessou a mente de Fu Changling como uma lâmina gelada: ele vai me matar.
O instinto falou mais alto. Sem hesitar, saltou para trás, reunindo às pressas seus poucos pertences. Na vida passada, havia tido a sorte de ingressar cedo no Reino Secreto de Xuanji, uma sorte que, talvez, tivesse lhe dado tempo para sobreviver. Mas e agora? Estaria o destino disposto a repetir a mesma dádiva?
Diante de um Qin Yan que avançava sem freios, indiferente às leis celestiais, aos mortais e até mesmo às correntes espirituais mais antigas, só restava uma escolha: fugir.
Antes mesmo que Yue Mingsi pudesse abrir a boca para emitir qualquer julgamento, Fu Changling já se lançava para longe. Qin Yan não chegara a cruzar os portões da casa dos Shangguan, mas sua sombra já se espalhava como um presságio inevitável.
Hua Yangjun movia-se com a leveza de quem nascera para escapar de prisões. Com gestos precisos, dispôs seus instrumentos mágicos diante de si e, após uma rápida inspeção do próprio corpo, constatou que os ferimentos eram superficiais. Nada que o impedisse.
Ergueu o leque dourado e o pressionou contra a testa. As runas gravadas na arma cintilaram, e memórias seladas se abriram em sua mente como páginas de um livro esquecido. Murmurou baixas fórmulas, deixando que cada palavra ecoasse no vazio da cela. Quando o último som se apagou, uma onda invisível se espalhou: a prisão espiritual que o mantinha contido começou a se desfazer, estilhaçando-se em silêncio.
O impacto o fez tossir algumas vezes, mas logo recuperou o fôlego. Aproximou-se então da porta, ergueu o leque até os lábios e sussurrou:
— Durmam.
Do lado de fora, as vozes dos guardas cessaram de imediato. Seguiu-se um baque surdo, seco, corpos tombando, rendidos pelo feitiço.
No interior da cela vizinha, Fu Changling permanecia desacordado. Hua Yangjun se aproximou e, ao despertá-lo, não teve dúvidas: se ele ousasse quebrar a proibição imposta, a Divisão Yue Ming seria alertada instantaneamente.
Naquele instante, Fu Changling se via diante de Meiji Uetsu em seu auge. A pressão era esmagadora, mas, ainda assim, preferível à sombra de Qin Yan. Só de lembrar do antigo rival, uma centelha de coragem surgiu, não para lutar, mas para sobreviver. Fugir era a única escolha sensata.
Rápido como o estalo de um trovão, traçou em sua mente a rota de escape. Rasgou parte das próprias vestes, transformando o tecido em talismãs improvisados. Com dedos firmes, desenhou formações sobre os pedaços e selou cada traço com o sangue da ponta do dedo. Quando ativou os símbolos, uma luz fraca serpenteou pelo pano como se respirasse.
Com um chute seco, a porta se escancarou. Ele disparou para o corredor como uma flecha solta da corda. No mesmo instante, a formação de guardiões do Palácio Shangguan despertou. Os corredores tremeram, e as paredes brilharam em tons dourados e escarlates, denunciando a invasão.
Yue Mingji, que vigiava as barreiras, percebeu imediatamente: Fu Changling havia quebrado a proibição.
No andar superior, um jovem monge em fase de fundação ergueu a voz, alarmado:
— Fu Changling escapou! Rápido, capturem-no!
Assim que o alarme ecoou, o Palácio Shangguan mergulhou no caos. Vozeiros se erguiam em todas as direções, ordens se sobrepunham, e cultivadores corriam pelos corredores em busca do fugitivo. Embora poucos tivessem visto Fu Changling diretamente, o uniforme da família Fu era um estigma: tornava-o fácil de reconhecer em meio à multidão.
O coração de Fu Changling batia como um tambor. Ao perceber passos se aproximando de ambos os lados do corredor, ergueu-se de um salto e se ocultou na viga superior. O ar ali era rarefeito e estreito, mas ele já havia vivido caçadas piores em sua vida anterior. Sabia como desaparecer em silêncio.
Instantes depois, um grupo de jovens atravessou o corredor apressado. Entre eles, um rapaz sorridente segurava um violão às costas, alheio ao perigo. Quando passou sob a viga, Fu Changling desceu como uma sombra. Apoiado apenas em mãos e pés, prendeu-se às costas do rapaz. Um toque preciso no ponto vital da nuca, e o jovem desabou inconsciente, sem tempo sequer de reagir.
O espaço era exíguo, mas Fu Changling já havia aprendido a arte de trocar de pele em fendas ainda menores. Rápido, despiu o rapaz e vestiu suas roupas, ajustando o tecido ao corpo com a frieza de quem repetira esse ato incontáveis vezes. Depositou o corpo desmaiado sobre a viga transversal, escondido na penumbra.
Só então respirou fundo. Um passo calculado, e saltou de volta ao corredor, agora disfarçado, misturado à correnteza humana que se movia em busca dele próprio.
Fu Changling murmurou um feitiço para suprimir sua aura, depois agarrou um pedaço de madeira, abaixou a cabeça e se lançou no meio da multidão em fuga. Corria em direção à borda da vila, enquanto o caos se espalhava como fogo em palha seca.
De repente, um jovem monge em fase de fundação ergueu a espada para o céu, alarmado por uma onda de energia que distorceu o ar. A pressão espiritual era tão intensa que fez os transeuntes estremecerem. Fu Changling apertou o cajado com força, os músculos tensos, pronto para se esgueirar pela confusão.
Mas antes que desse o próximo passo, um grito cortante ressoou do alto:
— Parem!
O mundo silenciou. O próprio ar pareceu se comprimir.
Fu Changling ergueu lentamente os olhos, e viu. Suspenso no ar, pairava um homem de presença esmagadora. Vestia uma túnica preta sobre camisa escura, e na testa carregava uma marca carmesim que pulsava como fogo vivo. Seus olhos, da mesma cor, ardiam em um brilho hipnótico e cruel.
Nos braços, ele segurava uma criança. A pequena figura, imóvel, tinha os mesmos olhos rubros e feições que refletiam as do homem, como um espelho distorcido, ou uma chama dividida em duas partes.
O jovem à frente parecia humano à primeira vista, mas um olhar mais atento desmentia a ilusão. Fios finíssimos de seda espiritual se entrelaçavam em suas costas, cintilando como teias de aranha encantadas sob a luz. Cada gesto seu era preciso demais, coreografado como se mãos invisíveis conduzissem cada músculo.
Quando abriu a boca, o som que escapou era estranho, desprovido de calor ou vida. Seu corpo, rígido e sem vibração, revelava a verdade: uma marionete de madeira, manipulada com maestria, tão perfeita que quase enganava os sentidos.
A chegada da Divisão Yueming foi silenciosa, mas carregada de tensão. A família Yue, ancestralmente famosa por criar marionetes vivas, aperfeiçoara a arte de imitar a vida. Suas criações podiam sorrir, chorar e até sangrar, mas jamais possuíam alma. Entre eles, Yue Mingsi, embora considerado servo, era um dos artesãos mais habilidosos, capaz de infundir em seus bonecos uma aparência de humanidade que chegava a desconcertar.
Yuemingji, comandante da divisão, observava tudo com olhos aguçados, medindo cada detalhe. Sobre seu ombro repousava uma marionete menor, infantil, de feições serenas e olhos brilhantes que pareciam guardar segredos. De repente, a boneca se ergueu com delicadeza, como se respirasse, e sua voz doce e melódica rompeu o silêncio:
— Todos levantem a cabeça.
O comando ecoou como um feitiço antigo. Um arrepio percorreu os presentes, que, hipnotizados, obedeceram sem hesitar. Por um instante, o ar pareceu congelar, pesado e denso, como se o mundo inteiro tivesse parado para revelar um segredo antigo e perigoso, algo que poderia mudar tudo.
À medida que o boneco avançava, o coração de Fu Changling parecia querer rasgar-lhe o peito. Cada passo da criatura soava como o tilintar de correntes invisíveis, esmagando a esperança de fuga. Mas ele não vacilou. Sabia que o confronto com Yue Mingsi era inevitável, e se tivesse de lutar, seria em um golpe rápido e certeiro.
Com um gesto calculado, deslizou a mão pela manga até encontrar as matrizes ocultas. Seus dedos escolheram a Kunhuo, a mais instável, a mais violenta, famosa pela força explosiva capaz de virar o campo de batalha em cinzas.
No exato instante em que a marionete se lançou contra ele, Fu Changling fechou a mão e esmagou a matriz. O selo brilhou em chamas rubras, e uma onda de energia incendiária se expandiu em todas as direções, rasgando o ar com um estrondo.
Sem esperar para ver o resultado, girou o corpo e disparou em fuga, cada passo alimentado pela urgência da sobrevivência. Não ousou olhar para trás.
O círculo mágico atingiu o boneco em cheio, e as chamas se espalharam rapidamente, consumindo seu corpo artificial. A criatura caiu, soltando um grito agudo enquanto se desfazia em brasas. Yue Mingji reagiu de imediato, lançando uma técnica imperial de água sobre o boneco em chamas, enquanto convocava dezenas de monges para avançar contra Fu Changling.
Sem perder tempo, Fu Changling esmagou a matriz mágica em sua mão. Um leque espiritual de purificação escorregou de sua manga, e no exato momento em que a espada longa da Divisão Yueming se aproximava, ele usou a borda óssea do leque para bloquear o golpe. A lâmina se partiu com o impacto, e Fu Changling recuou com agilidade. O leque cortou sua mão como uma lâmina afiada, fazendo o sangue jorrar, enquanto o monge gritava e recuava.
Fu Changling se movia como uma pena ao vento, deslizando entre os combatentes com uma leveza quase sobrenatural. Seus movimentos pareciam lentos, mas já havia se dobrado atrás de uma parede, fora do alcance de qualquer ataque. Ao presenciar a cena, Yue Mingji ficou tomado pela fúria. Ergueu a mão direita, e o boneco, ainda envolto em brasas, soltou um novo grito e disparou em direção a Fu Changling, como se movido por pura vingança.
O fantoche avançava com uma velocidade quase inumana, e Fu Changling sentiu o calor do sangue escorrendo de sua palma ferida. Confirmando o corte com um olhar rápido, não hesitou: avançou diretamente para o confronto. Ambos se aproximavam como cometas prestes a colidir, energia e intenção prestes a se chocar.
Fu Changling cerrou os punhos, mantendo-os próximos ao corpo, preparado para reagir ao menor movimento. O boneco abriu a boca, presas afiadas como lâminas de uma fera selvagem se revelaram, mirando com precisão o pescoço de Fu Changling.
Então, no instante exato em que o impacto parecia inevitável, uma espada desceu do céu como um raio flamejante. Era Huaguang. A lâmina cortou o ar com um zumbido estridente, atravessou o boneco com precisão cirúrgica e cravou-se no chão com uma aura familiar e avassaladora.
A presença da espada mudou imediatamente o campo de batalha. O ataque do fantoche perdeu força, como se uma força maior tivesse interferido. Fu Changling, ainda respirando pesado, percebeu que não estava sozinho. O destino, ou algo ainda mais poderoso, interveio naquele momento, colocando-o no epicentro de uma batalha que estava longe de chegar ao fim.
A energia da espada explodiu como um raio celestial, lançando todos ao redor como folhas ao vento. Fu Changling, por estar mais próximo, foi arremessado contra duas paredes antes de desabar pesadamente no chão. A dor era lancinante, suas costelas latejavam como se fossem estilhaços, e uma pressão sufocante pulsava em sua cabeça. Atordoado, sentia o tempo desacelerar, como se estivesse suspenso entre o real e o espiritual.
Enquanto a poeira começava a baixar, uma figura surgiu, majestosa e imponente, como se tivesse emergido diretamente da própria montanha. Vestia um manto branco, bordado com a imagem de uma garça que parecia ganhar vida à luz do entardecer, e sua coroa de jade refletia a luminosidade com um brilho quase sobrenatural.
Cada passo que dava ecoava como trovões antigos, ativando discretamente a matriz de renascimento sob seus pés. Lentamente, avançou até a espada de jade branca cravada no centro da formação, um encontro marcado pelo destino, aguardando pacientemente pelo momento certo.
Com um movimento firme, a figura arrancou a espada do chão, assumindo a postura que Fu Changling conhecia tão bem. As mangas largas do manto branco esvoaçavam com o vento, como se dançassem com a própria energia do lugar. Na cintura, um pingente de jade, distintivo do Palácio Celestial de Hongmeng, balançava suavemente, refletindo um brilho puro e ancestral.
Quando a figura virou o rosto, os traços delicados revelaram uma juventude marcada por melancolia e mistério. Os olhos, intensos e flamejantes como os de uma fênix, carregavam uma tristeza profunda, guardiã de lembranças que o tempo jamais conseguiu apagar.
Fu Changling sentiu o peito apertar e o coração disparar. A certeza queimava dentro dele como uma chama que jamais se extinguiu:
— Qin Yan… está aqui! — murmurou, a voz carregada de reconhecimento e temor, como se o destino finalmente tivesse se materializado diante de seus olhos.
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