Capítulo 44. Subornando os Deuses


 O Templo Wan En era um templo renomado que existia há mais de cem anos e sobrevivera a duas dinastias.

Na atual Dinastia Liang, o Templo Wan En venerava Budas e Bodisatvas ortodoxos. Todos os anos, no primeiro dia do quarto mês lunar, ele se tornava um lugar animado. Mas, cem anos atrás, o Templo Wan En era apenas um templo humilde em meio à natureza.

Dizia-se que, há algumas centenas de anos, uma vila foi atacada por bandidos. Todos os dez membros de uma família foram mortos, exceto o filho mais novo do chefe da vila, que conseguiu escapar levado por um criado.

No meio da fuga, o criado não conseguiu continuar. O menino, que tinha apenas cinco ou seis anos, passou por um templo em ruínas. Faminto e exausto, estava à beira da morte. Ao erguer a cabeça, viu uma estátua de um deus consagrado no templo em ruínas. Ele se prostrou no chão, esperando que o deus abrisse os olhos e visse o sofrimento do mundo, para que os malfeitores fossem punidos.

Pouco depois de rezar, a criança morreu. Alguns dias depois, os bandidos foram capturados pelas autoridades. Algumas pessoas disseram que as divindades e Budas daquele templo em ruínas eram extremamente poderosos. Consequentemente, alguns comerciantes ricos pagaram para dourar novamente as estátuas e construir um templo maior nas proximidades.

Esse foi o antecessor do Templo Wan En.

O Templo Wan En estava sempre repleto de oferendas de incenso. Essa lenda era apenas um boato, criado para acrescentar um toque místico. No entanto, havia um salão lateral abandonado no templo, com uma estátua dilapidada que não era venerada.

Segundo os monges, aquela estátua não pertencia aos Budas ortodoxos. Ela havia sido deixada pelo abade do templo na dinastia anterior. Quando a dinastia caiu, o templo foi reformado. Considerava-se desrespeitoso destruir a estátua, mas ninguém a venerava. Com o tempo, o salão foi abandonado, e os monges passaram a usá-lo para armazenar os peixes e tartarugas que seriam libertados durante o Festival da Lótus Azul.

A chuva noturna era mais intensa que a da tarde. Não havia monges nem peregrinos no templo nas montanhas. Apenas as lamparinas, oscilando no salão, projetavam sombras longas das pessoas.

Duas pessoas estavam paradas diante da porta do salão lateral abandonado.

Ke Chengxing enxugou as gotas d’água do rosto e entregou a capa de chuva para Wan Fu.

Wan Fu a pegou e passou a bolsa para Ke Chengxing.

Ke Chengxing a pesou nas mãos e sussurrou para Wan Fu:

– Espere por mim do lado de fora.

Wan Fu assentiu. Ke Chengxing, carregando o embrulho, empurrou a porta levemente e entrou silenciosamente no salão.

Aquele salão era muito antigo. Não era digno nem majestoso como os outros salões do templo. Como ninguém o limpava há muito tempo, exalava um cheiro de podridão e mofo.

Ke Chengxing deu dois passos e quase tropeçou em algo no chão. À luz fraca das lamparinas, pôde ver claramente que havia várias bacias de água grandes e pequenas e cestos de bambu cheios de tartarugas e cobras-do-lodo prestes a serem soltas.

O cheiro de água lamacenta misturado ao odor de decomposição era quase insuportável.

Havia pouquíssimas lamparinas no salão, menos de dez, mal iluminando o local. Porém, isso o tornava ainda mais sombrio e assustador.

Uma rajada de vento frio soprou, fazendo Ke Chengxing estremecer involuntariamente. Ele apressou o passo e, suportando o cheiro nauseante, foi rapidamente até a frente da estátua no salão principal.

Era uma estátua abandonada. Ninguém a venerava havia muito tempo. A pintura estava descascando, os detalhes, esmaecidos. Dava para ver vagamente que era a figura de um homem de rosto esverdeado e cabelos vermelhos, com aparência imponente.

Ke Chengxing lançou um olhar rápido e então abaixou a cabeça, sem ousar encará-la diretamente.

Depois de muito procurar, encontrou finalmente um nicho caído aos pés da estátua. Apressado, endireitou-o, arrastou um tapete de oração rasgado e ajoelhou-se corretamente.

Por fim, Ke Chengxing tirou um punhado de incenso da bolsa de pano e o acendeu com um fósforo.

– Bodisatva, mestre, divindade...

Segurando os bastões de incenso, ele se prostrou e suplicou:

– Imploro que me salve. Por favor, envie uma divindade para capturar aquele fantasma feminino, para que ela não faça mal ao mundo.

A fumaça subia em espirais. A divindade de olhos fechados nada dizia.

Ke Chengxing estava ali para queimar incenso.

Wan Fu ouvira dizer que, no Templo Wan En, cada Bodisatva tinha uma função específica. Um salão cuidava dos casamentos, outro dos estudos, outro da saúde e outro da riqueza.

Havia salas para herdeiros e para fortuna oficial. Mas apenas aquela estátua abandonada no salão lateral era responsável por capturar fantasmas. Era uma relíquia da dinastia anterior, por isso ninguém a venerava. Peregrinos evitavam esse culto, temendo se meter em encrenca. Wan Fu sugerira que seria melhor esperar até a meia-noite e vir a esse salão lateral queimar alguns bastões de incenso para mostrar sinceridade. Naturalmente, a divindade atenderia ao pedido.

Além disso, o fantasma da senhora Lu vinha seguindo-o o tempo todo. Se ele a atraísse até esse salão, talvez ela ficasse presa pela divindade para sempre. Naquele instante, estaria livre e sem preocupações.

Wan Fu lhe dissera:

– Chefe, dizem que o submundo é arrogante. No mundo dos vivos, há um ditado: “usar as mãos dos outros para encurtar o próprio trabalho”. É melhor preparar mais incenso para subornar a divindade ou os servos dela.

Embora Ke Chengxing achasse esse método estranhamente absurdo, o medo do fantasma da senhora Lu era ainda maior. Como se diz, "doente em desespero consulta qualquer curandeiro". Assim, hesitou por um instante e aceitou a sugestão de Wan Fu.

Trouxe às escondidas incenso e velas para prestar culto à meia-noite.

Ke Chengxing não deixou Wan Fu entrar, porque suas preces à divindade não podiam ser ouvidas por outros.

Acendeu os bastões de incenso e os colocou no incensário. Depois de algumas reverências, retirou figuras de papel e as queimou cuidadosamente numa bacia de ferro.

A luz do fogo refletia em seu rosto, fazendo seus olhos parecerem ansiosos e cheios de medo.

Com aparência ao mesmo tempo miserável e sombria, murmurou baixinho:

– Divindade, Bodisatva, hoje queimo incenso para pedir que me salve. O ressentimento da senhora Lu é muito forte. Tenho medo de que ela me mate. Peço ao Bodisatva que a afaste ou a reencarne. Seria um ato meritório.

À medida que falava, foi criando coragem e acrescentou:

– Embora eu esteja errado, em termos de causa e efeito, a culpa é do Grão-Preceptor, que abusou do poder. A senhora Lu e eu éramos um casal apaixonado. Como as coisas chegaram a esse ponto?

Os olhos de Ke Chengxing se tornaram sombrios.

Naquele dia, no Restaurante Fengle, após acordar, percebeu que a senhora Lu poderia ter sido humilhada. Sentiu tanta raiva que chegou a querer matar o responsável. Ao saber que o sujeito ainda não havia partido, foi enfurecido encontrar-se com o jovem mestre da Mansão do Grão-Preceptor.

O jovem mestre nem sequer olhou para ele. Estava distraído enquanto a criada arrumava seu cinto. Ao ver Ke Chengxing exigindo explicações, o mordomo ao lado entregou-lhe uma pilha de notas bancárias.

Naturalmente, Ke Chengxing não queria se calar. O criado lançou-lhe um olhar e sorriu:

– Foi só um mal-entendido. Se o Senhor Ke quiser transformar isso num escândalo, a Mansão do Grão-Preceptor apenas perderá a reputação. Mas temo que será difícil para o Senhor Ke fazer negócios em Shengjing no futuro.

O mordomo suspirou e o alertou com simpatia:

– Mesmo que o Senhor Ke não se importe consigo, deve pensar na Madame. Ela já está velha. Se esse assunto se espalhar, temo que ela não suportará o choque.

Ke Chengxing não conseguiu dizer uma palavra.

A Madame Ke só se importava com a reputação da família Ke. Se ofendessem a Mansão do Grão-Preceptor, todo o setor comercial de Shengjing os rejeitaria. Como poderiam viver bem depois disso?

Além disso, eles simplesmente não podiam ofender a Mansão do Grão-Preceptor...

Ke Chengxing não teve escolha senão engolir a raiva.

Envolveu-se nesse problema sem entender como. Antes que pudesse decidir o que fazer, a senhora Lu acordou e começou a fazer um escândalo.


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