Capítulo 46. O Bodisatva abre os olhos.


 O longo salão era espaçoso, e o templo na montanha estava mergulhado na escuridão, com o som da chuva abafando tudo.

Ke Chengxing piscou, confuso, sem entender o que a garota queria dizer. Mas logo compreendeu e a olhou com cautela.

Ela o chamou de Mestre Ke... Será que ela sabia quem ele era?

Ke Chengxing queria chamar Wan Fu, pedir ajuda, mas seu corpo estava dormente e ele não conseguia falar. Estava atordoado. Por um lado, não sabia o que tinha causado aquela mudança em seu corpo, e por outro, não sabia se a garota era humana ou um fantasma.

O som das tartarugas rolando veio do tanque de água. A garota deu dois passos à frente, e a luz tremeluzente projetou uma longa sombra atrás dela, enquanto as chamas dançavam.

Ke Chengxing percebeu isso e seus olhos se iluminaram.

Se havia sombra, ela não era um fantasma...

Essa garota era humana!

Mas, se era humana, por que estaria aqui?

E se ela não era um fantasma e não possuía magia, como conseguiu fazer com que ele não pudesse falar ou se mover?

Ke Chengxing se sentia como num sonho, em transe, como se tudo fosse irreal. O incenso que ele havia colocado diante do altar soltava fumaça, e o aroma era tão fragrante quanto inebriante.

"Um incenso normal teria um perfume desses?"

Pensava, atônito, enquanto via a garota se aproximar do altar e passar os dedos pela fumaça que se dissipava.

Ela disse suavemente:

— Chama-se “Vitória sobre Mil Cálices”.

Ke Chengxing a encarou.

— Ao queimar esse incenso, o perfume entra pelas narinas e é melhor do que beber mil garrafas de licor forte. Por isso é chamado de “Vitória sobre Mil Cálices — explicou a garota com voz clara. — No entanto, quem sente esse aroma, embora fique com o corpo rígido e a língua dormente, tornando-se vulnerável, ainda mantém a mente lúcida.

Ela inclinou levemente a cabeça e olhou para Ke Chengxing:

— Mestre Ke, quer me perguntar por que consigo me mover livremente e não sou afetada por esse incenso?

Ke Chengxing assentiu com força.

A garota sorriu e disse:

— Porque fui eu quem fez esse incenso.

Ke Chengxing ficou confuso.

Como assim aquele incenso fora feito por ela?

Aquele incenso tinha sido claramente preparado por Wan Fu. Para fazer a oferenda ao “Deus do Suborno” parecer mais sincera, Wan Fu tinha escolhido alguns bastões de incenso bem grossos. Naquele momento, Ke Chengxing até elogiou Wan Fu pelo bom trabalho.

Mas por que Wan Fu ainda não havia entrado?

Com sua natureza cautelosa, ele certamente teria voltado para verificar se Ke Chengxing demorasse demais dentro do templo.

E essa garota... será que ela não viu Wan Fu antes de entrar? Se o viu, por que Wan Fu não a impediu?

Um pensamento surgiu na mente de Ke Chengxing, um pensamento que ele nem ousava considerar.

A garota estava de costas para ele. Ela olhava para a estátua mal discernível através da fumaça esverdeada e disse com frieza:

— O velho mestre Ke cultua os deuses no meio da noite. Parece que está mesmo com medo. Mas o que o faz pensar que deuses e budas podem salvá-lo? Se realmente existissem deuses e budas neste mundo, minha irmã mais velha não teria morrido no tanque de flores da sua mansão.

"Irmã mais velha?"

As pupilas de Ke Chengxing se contraíram.

Ela chamou Lu Rou de “irmã mais velha”... Era a irmã mais nova de Lu Rou? Mas como Lu Rou poderia ter uma irmã mais nova?

Não! Lu Rou tinha, sim, uma irmã mais nova!

Alguns dias atrás, ele ouvira de sua mãe que uma parente distante da família Lu, chamada Wang Yingying, havia aparecido na residência e logo fora mandada embora. Lu Rou não tinha outros parentes em Shengjing, então só podia ser essa Wang Yingying.

Mas Wang Yingying só viera por causa do dote de Lu Rou e queria se aproveitar da situação. Por que então ela estaria colaborando com Wan Fu para levá-lo até ali?

Mil pensamentos passavam por sua mente, mas ele não conseguia organizá-los.

“Wang Yingying” continuou falando. Virou-se e olhou para Ke Chengxing, que estava encostado ao tanque d’água, e disse suavemente:

— Céu e Terra são testemunhas. Nem fantasmas nem deuses podem nos oprimir. Já passou da meia-noite, é o primeiro dia de abril. O Bodisatva abre os olhos — o bem e o mal serão revelados.

— Velho Mestre Ke, tenho algumas perguntas para lhe fazer. Por favor, responda com sinceridade.

Dizendo isso, ela caminhou até ele e se agachou lentamente. Estendeu a mão e agarrou seu pescoço.

Aquela mão estava fria e úmida, nada parecida com a mão de um ser vivo. No momento em que o envolveu, Ke Chengxing se arrepiou por inteiro.

A garota parecia frágil e esguia, mas era muito forte. Ela o agarrou pelo pescoço e o arrastou rudemente até o tanque d’água.

O enorme tanque continha as tartarugas que seriam libertadas no dia seguinte. Um cheiro desagradável de água parada invadiu seu nariz. À luz fraca, ele viu seu reflexo e o dela na superfície da água.

O rosto da garota era belo, com sobrancelhas como luas crescentes e olhos como águas outonais. Sua beleza celestial refletia-se na água, encantadora como o luar sobre a superfície de um lago.

Sua voz também era suave. Ela sussurrou em seu ouvido:

— Velho Mestre Ke, foi você quem matou minha irmã?

Ke Chengxing ficou atônito.

No instante seguinte, a imagem da Guanyin se despedaçou abruptamente, e ele sentiu sua cabeça sendo forçada para dentro da água, uma enxurrada invadindo seu nariz e sua boca.

Ke Chengxing se debatia com todas as forças, mas havia acabado de inalar o “Vitória sobre Mil Cálices”, e não tinha energia sequer para mover-se. Todo seu corpo era pesado como madeira e pedra. Só enxergava escuridão, como se tivesse sido lançado num abismo.

Quando estava prestes a perder a esperança, seu corpo subitamente ficou leve. Alguém o puxou para fora da água.

Ke Chengxing tossia, fraco.

“Wang Yingying” segurou seu cabelo e disse com calma:

— Por que não respondeu?

Ela obviamente sabia que ele havia inalado a fumaça venenosa e não podia se mover nem falar, mas mesmo assim fazia as perguntas com seriedade.

Ke Chengxing não conseguia falar. Olhava para “Wang Yingying” com olhos cheios de medo.

Aquela garota era louca!

“Wang Yingying” encontrou seu olhar e, de repente, soltou uma risada baixa. Essa risada era encantadora como uma flor de hibisco desabrochando — de uma beleza avassaladora.

Ela suspirou e disse:

— É curioso. Quando cometem maldades, as pessoas sempre esperam que os céus não saibam. Quando fazem o bem, têm medo de que os céus não saibam também. Os pecados são encobertos com adereços; as boas ações, alardeadas aos quatro ventos. No fim, parece que não faz diferença o Bodisatva abrir ou não os olhos.

Seus lábios se curvaram num sorriso, mas seus olhos permaneciam frios. De pé no salão vazio, ela era pálida e bela como um fantasma.

Ke Chengxing não conseguia dizer uma palavra.

Então, a mão que segurava seu cabelo se apertou ainda mais. A voz suave de “Wang Yingying” soou em seu ouvido:

— Segunda pergunta: a morte da família Lu foi ordenada pela residência do Grão-Preceptor Qi?

Ke Chengxing tentou abrir a boca para responder, mas sua língua estava rígida e ele não conseguia emitir som algum. No instante seguinte, a mão da garota o empurrou com força, mergulhando sua cabeça novamente na água.

O suspiro de “Wang Yingying” ecoou em seu ouvido. Ela disse:

— Por que não responde de novo?

A água fria invadiu seu nariz e seu peito. Ke Chengxing se sentia sufocado, incapaz de respirar. Queria se debater, gritar, mas sua voz era abafada dentro daquele imenso tanque d’água, perdida entre os salpicos das tartarugas, a chuva noturna no templo da montanha e o som distante dos sinos — sem encontrar saída.

Splash — a superfície da água rompeu novamente.

Ele viu o rosto belo da garota. Sua expressão continuava calma e gentil.

Lágrimas desciam pelo rosto de Ke Chengxing.

Ele se moveu com dificuldade, querendo implorar por misericórdia. Só queria que ela parasse de torturá-lo daquele jeito. Queria falar. Já que “Wang Yingying” estava ali por causa de Madame Lu, ele poderia contar mais sobre a morte dela e sobre a residência do Grão-Preceptor.

Sim, a residência do Grão-Preceptor!

Os verdadeiros culpados de tudo aquilo eram os da residência do Grão-Preceptor. Era para lá que ela deveria ir!

Ele moveu os lábios com dificuldade. “Wang Yingying” também percebeu seu esforço.

Ela pareceu levemente surpresa e perguntou baixinho:

— Mestre Ke, quer me contar uma nova pista?

Ke Chengxing piscou, assentindo com força. Desde que ela o deixasse ir, ele podia denunciar a residência do Grão-Preceptor!

Ele esperava ansiosamente, torcendo para que a garota parasse a tempo e o libertasse.

Mas, no momento seguinte, a sensação familiar de afogamento e sufocamento voltou.

A garota estava diante do tanque d’água, suas mãos brancas como neve agarrando os cabelos dele. Suas mãos eram finas e suaves, mas pareciam possuir uma força descomunal. Por mais que Ke Chengxing tentasse, não conseguia se soltar. Ela pressionou violentamente seu rosto contra a água.

Ela sorriu e disse:

— Mas eu não quero ouvir.


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