Capítulo 44 Parte 1 – Lótus do Esquecimento (I)


 Não era de se admirar que o ressentimento na Cidade Bibo fosse mais pesado do que até mesmo no Desfiladeiro Qianqi. O número de mortes no Desfiladeiro Qianqi havia sido dezenas de vezes maior, e ainda assim nunca produzira um ressentimento tão avassalador. Acontece que um poderoso demônio havia morrido ali — e morrido de forma tão brutal e trágica.

Lin Jiu finalmente entendeu o que Wei Liang queria dizer com aquele comentário. Ele havia dito antes a Wang Weizhi que, depois que o assunto da Cidade Bibo fosse resolvido, se ainda tivesse ânimo, poderia ir assistir ao “espetáculo” na casa de Zhuo Jin.

Claro que Wang Weizhi já não teria mais ânimo algum para isso. Wei Liang provavelmente já sabia, há muito tempo, que Huang Yinyue havia encontrado um fim horrível no Lago Bibo. Ele propositalmente deixou Ji Yuan absorver o ressentimento esmagador presente no lago para criar o boneco de sangue. O boneco, recém-formado, estava instável — Wei Liang forçou Ji Yuan passo a passo, obrigando-o a desencadear prematuramente o Eclipse da Névoa de Sangue.

Aquele momento era quando o boneco de sangue estava mais vulnerável, mais suscetível a ter resquícios de sua vontade agitados — e o amor de um pai por seu filho transcende até mesmo a vida e a morte.

Wei Liang destruiu impiedosamente a ilusão — não apenas para acabar com a técnica maligna de Ji Yuan, mas também para mostrar a verdade a Wang Weizhi.

O rosto afiado e bonito de Wang Weizhi estava tingido de um roxo profundo, seus olhos em forma de fênix tomados por veias vermelhas. Ele ainda rugia:

— Ahhhhh — matem! Eu vou matar! Vou matar todos eles — ahhhh!

Ele havia caído de joelhos, exatamente na mesma postura de Wang Yangyan na visão.

— Matar…!

Depois de muito, muito tempo, sua voz finalmente enfraqueceu. Lentamente, muito lentamente, ele ergueu a cabeça. Sua garganta estava completamente rouca. Fitou Wei Liang com ódio feroz e perguntou:

— Onde está Wang Yangyan? Eu vou matá-lo.

As sobrancelhas de Wei Liang se curvaram levemente, e ele lançou ao jovem um olhar sem emoção alguma — fosse Wang Yangyan entregar ou não a chave, o destino de Huang Yinyue jamais teria mudado.

Mas essa era a fúria da juventude — quando a raiva transborda, são os mais próximos que acabam recebendo o peso. Os verdadeiros culpados ainda viviam, mas o primeiro pensamento dele era odiar o próprio pai.

Considerando sua pouca idade e o quanto acabara de ser abalado, Wei Liang não disse nada severo. Apenas esboçou um leve sorriso e respondeu:

— Por que eu deveria saber?

Wang Weizhi assentiu firmemente.

— Certo. Isso é um assunto de família. Eu mesmo vou resolver.

Seus olhos perderam o foco. Depois de um tempo, ergueu o olhar para Wei Liang, atônito, e disse suavemente:

— A partir daqui, nossos caminhos se separam.

Wei Liang soltou um breve “hum”, puxou Lin Jiu para perto e a abrigou sob o guarda-chuva preto enquanto saía dos limites da Cidade Bibo.

Wang Weizhi permaneceu parado, o olhar tornando-se cada vez mais frio e firme. Já não tinha motivo para seguir aqueles dois — agora tinha algo muito mais importante a fazer.

A chave. Era a chave. Foi a chave que matou Huang Yinyue. A chave que Wang Yangyan protegeu foi o que a matou. Wang Yangyan matou Huang Yinyue — não era de se admirar que ele nunca tivesse coragem de aparecer diante dele novamente!

Aquela coisa caíra nas mãos de Wang Mingzhu, mas ela já estava morta. O único que sabia o paradeiro da chave havia partido deste mundo — onde, afinal, ela poderia estar?

Um sorriso distorcido e feroz se espalhou pelo rosto bonito do jovem.

— Wang Chuan’en, você matou minha mãe por causa da chave. Eu vou encontrá-la — e destruí-la com minhas próprias mãos!

Então, ele ergueu lentamente a mão, retirou a faixa de cabeça e a jogou no chão, pisando nela com força.

— Ainda não sou forte o bastante. Não posso deixar que eles saibam… que eu descobri a verdade! Todos vocês… apenas esperem…

Passo a passo, o jovem avançou, a postura se endireitando a cada passo. Quando finalmente deixou a Cidade Bibo para trás, os últimos traços de juventude haviam desaparecido de seu rosto.

Aos dezessete anos, ele foi forçado a crescer da noite para o dia…

O agora amadurecido Wang Weizhi puxou sua espada com um som metálico, firmou-se contra o vento e voou na direção do território da família Wang.

Em meio às ruínas destroçadas, Qin Yunxi respirou fundo e de forma aguda, forçando-se a sair do transe empático.

Chave! É a chave! Uma luz ardente acendeu-se em seus olhos. Então, em nossa vida anterior, Wang Weizhi obteve a chave!

Essa chave, passada de geração em geração na família Wang, tinha a habilidade de abrir um portão arcano que existia entre a realidade e a ilusão. Um artefato assim — se considerado crucial, era absolutamente vital; se considerado inútil, não valia nada.

Para que cultivadores ascendessem, precisavam passar por duas tribulações do coração — uma menor durante a formação do Núcleo da Alma, e uma maior no estágio de Grande Ascensão, pouco antes de alcançar a imortalidade.

Usando a chave da família Wang para abrir o portão, era possível invadir a provação ilusória de outro cultivador e interferir em sua tribulação. Mas isso era um ato mesquinho e autodestrutivo. Um único erro, e o próprio espírito primordial do invasor poderia ser despedaçado na ilusão, sem jamais se recuperar.

Qingyin havia recebido a semente de um demônio interior justamente durante sua tribulação de Grande Ascensão. Em outras palavras, o demônio interior que a fez falhar na ascensão… devia ter sido obra de Wang Weizhi!

Qin Yunxi estava discretamente eufórico — depois de tanto tempo suportando passivamente, finalmente estava prestes a agarrar o destino pela garganta! Se conseguisse encontrar a chave antes de Wang Weizhi, poderia virar todo o jogo!

Só que… por que Wang Weizhi odiava tanto Qingyin? Seria apenas porque ela havia ferido Huang Yinyue, levando-a a ser capturada por Wang Minglang?

Qin Yunxi não pôde evitar um sorriso sarcástico, balançando a cabeça.

— Garoto tolo. Nem sabe quem é o verdadeiro inimigo.

Ele ocultou sua presença e deixou apressadamente a Cidade Bibo, refletindo sobre o paradeiro da chave.

Wang Mingzhu… Se fosse qualquer outra pessoa, talvez ele não tivesse pista alguma. Mas Wang Mingzhu…

Ele já tivera uma pequena ligação com ela. Muitos anos atrás, salvara sua vida. Durante aquele incidente, vira tudo o que havia para ver. Naquele pequeno esconderijo na montanha, ela chegou a se atirar em seus braços, mas, com o coração voltado para Qingyin, ele acabou recusando-a.

Será que está escondida lá? Ele se perguntou, agarrando-se àquele fio frágil de esperança enquanto alterava seu rumo, voltando pela memória até a pequena caverna onde encontrara Wang Mingzhu pela primeira vez.

Enquanto isso, uma Lin Jiu atordoada era conduzida por Wei Liang a um movimentado mercado mortal. Seu corpo ainda tremia de vez em quando — a dor de Wang Yangyan havia sido tão profunda que ela não conseguia se desvencilhar totalmente da ligação empática. Em meio ao barulho e ao movimento da multidão, sentia um frio cortante, os braços latejando, a cabeça pesada e pulsante. A dor irradiava do peito para cada membro. Até mesmo a luz do sol sobre sua pele parecia fria.

Wei Liang guardou o grande guarda-chuva preto, segurou-a com um braço e, com o outro, a protegeu da multidão. Rostos desconhecidos passavam um após o outro. Lin Jiu olhava para eles de forma vaga — alegres, irritados, tristes, apáticos — observando-os entrar e sair de seu campo de visão.

Depois de caminhar sabe-se lá por quanto tempo, um pensamento começou a se formar com clareza em sua mente —

Será que as outras vítimas do Lago Bibo não foram mais trágicas que Huang Yinyue? Dor e morte não têm hierarquia, então por que ela só sentia aquela raiva avassaladora e sede de vingança diante dos outros, mas não aquela dor que se enraizava nos ossos?

A resposta era empatia. Conduzida pelo estado empático, cada onda de emoção de Wang Yangyan havia sido projetada em sua consciência. Naquele momento, ela era Wang Yangyan. Observar o sofrimento dos outros jamais se compararia a vivê-lo na própria pele.

Quem não passou por isso jamais poderia compreender de verdade como a dor e o luto se infiltram por cada fio da alma e da carne, aprisionando uma pessoa num casulo sufocante, levando-a à loucura. Palavras comuns de consolo não passam de coçar uma coceira por cima da bota, e dizer a alguém para abandonar o ódio é apenas conversa vazia de quem nunca foi tocado.

Quem nunca suportou essa dor não tem o direito de pregar ideais elevados de perdão e pacifismo.

*Sábios não são benevolentes, veem todas as pessoas como cães de palha.*¹ Não é que os sábios olhem de cima e tratem as pessoas com desprezo — mas que compreendem, melhor do que ninguém, o que significa ser tratado como um cão de palha.²

Então… por que o céu e a terra não são benevolentes?

Lin Jiu sentiu o lótus do carma girando vertiginosamente em seu mar espiritual. Seu coração batia com força e, antes que percebesse, havia apertado instintivamente a mão de Wei Liang.

O passo dele vacilou levemente. Seus olhos se arregalaram um pouco, mas, um momento depois, ele envolveu a mão delicada dela com firmeza em sua palma. Seu caminhar se tornou mais leve. Notando o estado pensativo dela, não a levou diretamente ao destino, mas vagueou com ela pelas ruas animadas, misturando-se ao agito da multidão mortal.

Deve ter sido algum tipo de festival. Com o cair da noite, cada vez mais rapazes e moças enchiam as ruas. Ao pôr do sol, já não havia idosos ou crianças — apenas casais e grupos de jovens, enquanto os vendedores ambulantes desmontavam suas barracas para dar lugar às de lanternas.

Lanternas de todos os formatos eram acesas com chamas quentes. Lin Jiu voltou a si e percebeu que estava em um belo paraíso terrestre.

A lua recém começava a surgir por cima das copas das árvores, seu brilho suave se misturando às luzes coloridas. A multidão animada, vestida com roupas vibrantes, cintilava pelas ruas, radiante.

Lin Jiu se virou para olhar Wei Liang, apenas para perceber que sua expressão estava longe de ser agradável. As sobrancelhas cobertas de gelo, ele lançava um olhar frio ao grupo de jovens que tentava se aproximar.

Ela e ele chamavam atenção demais — tanto pela aparência quanto pela aura. Mesmo de mãos dadas, sinal claro de seu relacionamento, sua mera presença na multidão atraía a atenção de rapazes e moças ousados, que não resistiam a tentar se intrometer entre os dois.

Mas um único olhar de Wei Liang bastava para fazê-los recuar, como um Doulong repreendido. Independentemente do gênero, todos instintivamente se encolhiam. Ainda assim, a rua estava lotada. Afugentava um grupo e logo outro se aproximava.

Lin Jiu, só então, percebeu que sua mão estava completamente envolta pela dele. Sem saber como reagir, simplesmente fingiu não notar e deixou que ele a conduzisse.

Após alguns passos, ela parou de repente.

— Não esquecemos de alguma coisa?!

Wei Liang olhou para ela com diversão diante de seu ar surpreso, inclinando levemente a cabeça e falando num tom profundo e firme:

— Oh? O que seria?

— Ancião Xing!

Wei Liang soltou um leve “ah” e respondeu com tranquilidade:

— Enquanto lutava contra o fantoche de sangue, coletei várias Frutas Protetoras do Coração no fundo do lago. Esse remédio deve ser tomado à meia-noite — então não há pressa.

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Notas:

¹ No Tao Te Ching (cap. 5), clássico fundamental do taoismo, a frase “O universo em si não é benevolente, vê todas as criaturas como cães de palha; sábios não são benevolentes, veem todas as pessoas como cães de palha” ilustra a imparcialidade do Céu, da Terra e dos sábios, que agem sem benevolência (ren) ou sentimentalismo. Tal como cães de palha — valorizados durante o ritual, descartados após — tratam todos os seres sem apego, refletindo a crítica taoista à parcialidade moral confucionista.
² “Cães de palha” eram figuras caninas feitas de palha, usadas como objetos cerimoniais na China antiga, substituindo o sacrifício de cães vivos. O termo passou a ser usado figurativamente para qualquer coisa descartada após o uso.


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