Capítulo 86: Imortal
Na primavera do décimo ano de Jinghong, uma praga desconhecida se espalhou. O Imperador Jinghong enviou vários grupos de médicos imperiais do hospital da corte e também mandou oficiais buscarem respeitosamente médicos renomados entre o povo, mas a praga não pôde ser contida e ainda mostrava sinais de se alastrar.
Diante da praga, todos estavam em perigo, e ninguém caminhava pelas ruas. Mesmo a cidade de Jing, a mais próspera de todas, estava mais desolada que o normal. Sempre que alguém tossia ou espirrava, os passantes fugiam apavorados, com medo de que, se demorassem, também fossem infectados.
Embora o Imperador Jinghong tenha enviado médicos renomados e remédios para as áreas afetadas, à medida que a praga saía do controle, começaram a surgir rumores. Por exemplo, diziam que o Imperador Jinghong não havia obtido o trono de forma legítima, e por isso os céus enviaram um castigo para que o povo sofresse.
Outros diziam que, quando a Imortal Kong Hou estava no palácio do Imperador Jinghong, o imperador e a imperatriz a maltratavam e a deixavam passar fome. Ela precisava bordar até a meia-noite e era frequentemente xingada e espancada. O povo não sabia como viviam as pessoas importantes no palácio. Só conseguiam imaginar Kong Hou como uma jovem sendo maltratada por um padrasto ou madrasta e a compadeciam.
Nas regiões onde a praga ainda não havia chegado, as pessoas se escondiam em suas casas e amaldiçoavam o imperador por ser mesquinho — ele mesmo bebia mingau de carne e colocava três colheres de óleo em seus macarrões, mas não era capaz de deixar a Imortal Kong Hou comer sequer as sobras. Tinham acabado de conseguir alguns bons anos, e agora estavam em desgraça novamente.
Os rumores chegaram aos ouvidos dos oficiais. Esses, porém, não ousaram relatar diretamente, e apenas mencionaram em seus relatórios que “o povo estava indignado”. O Imperador Jinghong sabia que os rumores estavam se espalhando entre a população, mas aquele não era momento para discutir sobre isso. Nem mesmo havia como fazê-lo.
Durante aqueles dias, ele convidou médicos renomados, reuniu medicamentos e até escreveu uma confissão de seus próprios crimes para queimar como sacrifício aos céus. Mas a praga ainda assim não diminuía. O Imperador Jinghong parecia frágil, após dias sem conseguir comer ou dormir. Porém, no segundo dia do quarto mês do Décimo Ano de Jinghong, ele teve de começar a se purificar e queimar incenso às três da manhã. Vestido com vestes negras do dragão, caminhou, parando a cada três passos e se curvando a cada nove, sem usar sua carruagem ou receber apoio de seus atendentes, até chegar diante do altar montado pelo Departamento de Astronomia.
O altar havia sido construído durante a noite em conjunto pelo Departamento de Astronomia, o Departamento de Assuntos Domésticos e o Ministério das Obras. Embora faltasse um pouco de imponência, ele tinha todos os elementos necessários.
— Pai, Imperador — o príncipe herdeiro viu a aparência abatida do Imperador Jinghong e se aproximou para ajudá-lo. O imperador o afastou.
— Não é necessário.
Ao se dirigir aos deuses, era preciso sinceridade. Ele e Ji Kong Hou já tinham mágoas antigas. Se não fosse respeitoso diante do altar, temia que Kong Hou estivesse ainda menos disposta a aparecer. Ao subir no altar imortal, o Imperador Jinghong ergueu suas vestes e se ajoelhou.
— Pai, Imperador! — os filhos imperiais reagiram com força ao verem seu onipotente pai se ajoelhar daquela forma. Ele, que sempre foi tão imponente, agora se curvava assim?
— Não façam barulho diante do altar! — o rosto do príncipe herdeiro estava sombrio. Mas, pensando no povo entregue ao desespero, cerrou os dentes e também se ajoelhou. O imperador deposto havia lançado o povo ao fogo. Ele e o Pai Imperador derrubarem a Família Ji não tinha sido errado.
Mas por que os céus eram tão injustos? Desde que o Pai Imperador subiu ao trono, trabalhou arduamente, erradicando a corrupção, executando oficiais fraudulentos. Deu ao povo uma vida boa e feliz, e nunca violou o caminho de um governante. Por que os céus não toleravam isso?
Se pudessem obter o perdão dos céus para poupar os inocentes, que mal havia em se ajoelhar?
Os outros príncipes, cheios de ressentimento, ao verem o príncipe herdeiro se ajoelhar, esconderam suas expressões rancorosas e também se ajoelharam.
Os generais, os oficiais eruditos, os guardas, os taijian[1] — todos se ajoelharam. O silêncio dominava o local.
O sol aos poucos se deslocava até o centro do céu azul e sem nuvens. À medida que o tempo passava lentamente, os corações de todos afundavam pouco a pouco.
O Imperador Jinghong tremia ao se mover de joelhos até a frente da mesa do altar. Tirou de dentro das mangas um documento contendo seus crimes, acendeu-o e o jogou no caldeirão. Em seguida, prostrou-se nove vezes diante da tábua de jade com o nome da Imortal Kong Hou.
Um imperador não se prostrava com facilidade — apenas quando seus ancestrais faleciam ou ao prestar culto aos céus. Naquele momento, ao ajoelhar-se e se curvar diante daquela tábua, era como se colocasse Kong Hou numa posição superior à sua e a si mesmo em humilhação.
Quando se permanece por muito tempo em uma posição elevada, é difícil curvar a cabeça diante de quem um dia foi derrotado, e ajoelhar-se. O Imperador Jinghong não queria, mas, por este mundo, por esta dinastia, sua honra pessoal não importava.
Um dia a mais, uma hora a mais, significavam incontáveis vidas.
Ele não era o Imperador Ji deposto, que não se importava com o povo. Ele não podia apostar e agir como bem entendesse.
O livro de seus crimes havia se consumido por completo. A última trilha de fumaça esvoaçou com o vento e desapareceu. Ao encarar o céu vazio, o Imperador Jinghong pareceu envelhecer uma dúzia de anos num instante.
Ele ajoelhou-se ali em silêncio, como uma árvore ressecada afundando na água. Os outros temiam a água e não ousavam se aproximar. Não podiam resgatá-lo do afogamento.
Se a praga continuasse a se espalhar, cada vez mais pessoas seriam infectadas, e mais da metade do país não conseguiria escapar da desgraça. Ele tentou isolar as cidades contaminadas, mas esse método se mostrou ineficaz. Enquanto houvesse vento e água, a praga poderia alcançar outros lugares.
Será que teriam que matar todos os infectados?
O Imperador Jinghong não conseguia aceitar essa escolha cruel.
O sol subia devagar. O tempo passava. A figura do Imperador Jinghong já estava à beira do colapso. O príncipe herdeiro se aproximou dele e, entre soluços, disse:
— Pai Imperial, sua saúde é o mais importante. Nós, seus filhos mais jovens e eu, ficaremos ajoelhados aqui.
Ele queria dizer: Já está quase meio-dia e a Imortal Kong Hou não deu nenhum sinal de que virá. Ela não virá.
Talvez os imortais e os mortais fossem realmente mundos separados; talvez a Imortal Kong Hou ainda estivesse zangada por eles terem tomado o trono da família Ji. Mas, de qualquer forma, mesmo que a Imortal Kong Hou não viesse, eles teriam que encontrar outros métodos. Todo mal tem um remédio, só não o haviam descoberto ainda.
— Se eu soubesse disso antes... talvez não devesse ter conquistado este mundo — disse o Imperador Jinghong, em um tom de desânimo. — Mesmo sob o governo do deposto Imperador Ji, o povo ainda poderia sobreviver com dificuldade. Seria melhor do que isso... serem atormentados pela praga enquanto eu nada posso fazer.
O Imperador Jinghong, com pouco mais de cinquenta anos, estava exausto após tanto tempo ajoelhado. Agora que sua esperança se desfizera, sua energia se esvaíra completamente. Por isso, não se referiu a si mesmo como zhen, mas como “eu”.
— Pai Imperial, não pense assim. Mesmo que o deposto Imperador Ji ainda estivesse no trono, a praga teria aparecido do mesmo jeito. Aquele imperador deposto era inútil e só sabia aproveitar os prazeres da vida. Se fosse ele no comando agora, o povo infectado não sofreria ainda mais? — O príncipe herdeiro enxugou as lágrimas. — Pai Imperial, por favor, cuide-se. O mundo ainda espera por você.
O Imperador Jinghong esboçou um sorriso amargo. Um governante não era onipotente.
Quando lutava pelo trono, a imperatriz do imperador Ji deposto o encarara do alto do Palácio Sol de Fênix e dissera:
— Espero que o novo imperador trate bem o povo. Um dia, entenderá o quão difícil é ser um imperador que não se desvia de suas virtudes ou de suas ações.
Naquele tempo, ele estava cheio de vigor e pensou apenas que a antiga imperatriz o estava amaldiçoando.
Agora, entendia que ela não lhe havia mentido. Não era difícil ser imperador — difícil era ser um bom imperador.
— Deixe pra lá — suspirou o Imperador Jinghong, estendendo a mão para o príncipe herdeiro, pronto para retornar ao palácio. Mas ele havia ficado ajoelhado por tempo demais. Assim que tentou se levantar, sentiu dores por todo o corpo e caiu no chão.
Coincidentemente, nesse momento, uma luz cruzou o céu. Nuvens multicoloridas giravam, e uma nave de jade que brilhava em meio à luz passou flutuando.
— Imortais! — gritou o chefe do Departamento de Astronomia, perdendo toda a compostura. — A Imortal apareceu!
Todos olharam para o céu. Viram a nave imortal envolta de luz e vento, descendo lentamente.
— Imortal!
Eles se curvaram e prostraram-se, chorando de alívio.
— O povo será salvo! — gritou, entre lágrimas, um oficial de barba e cabelos brancos enquanto se prostrava. — Seremos salvos!
Quando a nave de jade estava na metade do caminho, ela parou. A multidão em êxtase notou isso e cessou os clamores, continuando apenas a se curvar, com esperança de que a imortal não os abandonasse.
— Niangniang! — exclamou uma oficial do alto do muro do palácio, apontando para o céu. — Uma imortal está saindo da nave!
A imperatriz levantou a cabeça, olhando, atônita, para o céu.
Entre as luzes cintilantes, uma jovem desceu voando, seus cabelos dançando ao vento, sua pele branca como a neve, intocada pela poeira do mundo. Sua beleza era tamanha que as pessoas esqueciam sua aparência, esqueciam tudo, e apenas sentiam que esta era a mulher mais bela do mundo.
A jovem voava com o vento. No instante em que o sapato limpo tocou o altar, sua capa esvoaçou, e seus olhos brilharam como estrelas.
— Majestade — disse a jovem, dando alguns passos à frente. Olhou para o desleixado Imperador Jinghong e fez um leve aceno com a cabeça. — Vossa Majestade não precisa disso tudo — por favor, levante-se.
— Vo-você... — O Imperador Jinghong olhou para a jovem imortal, incapaz de formar palavras.
— Faz sete anos que não nos vemos — disse a jovem, levantando a mão. O imperador se ergueu do chão sem perceber, com suas dores desaparecendo. Ele olhou, chocado, para a jovem, e deu um passo para trás antes de se ajoelhar. — Este mortal saúda a Imortal Kong Hou.
Apenas Ji Kong Hou, que partira com os imortais, poderia dizer a ele que não se viam havia sete anos.
Todos os presentes estavam em choque. Em suas memórias, Kong Hou era uma menina de rosto delicado, com olhos grandes e brilhantes. Mesmo sabendo que ela havia se tornado uma imortal, não conseguiam imaginar sua aparência atual.
A imortal de pé no altar era impecável, suas roupas brilhavam em meio à luz. Ninguém ousava desrespeitá-la. Ela não era mais a princesa da dinastia anterior — era outra pessoa por completo.
De pé sobre o alto altar, Kong Hou olhou ao redor para o vasto palácio. Quando era menina, nunca tivera a chance de estar ali — nem antes de seu país ser deposto, nem depois.
Jamais imaginou que sua primeira vez ali seria recebida por todos ajoelhados.
Ela olhou para a base do altar. Ajoelhados ali estavam os filhos e netos imperiais, os cem oficiais. Entre eles, estavam os príncipes que a haviam humilhado, os oficiais da dinastia anterior que haviam se rendido e a ignorado.
De repente, naquele instante, seu coração tornou-se tão calmo quanto a água.
O passado realmente não tinha mais nada a ver com ela.
— A Imortal veio de muito longe. Aceitaria vir comigo para descansar? — O príncipe herdeiro curvou-se profundamente diante de Kong Hou, tentando convidá-la a permanecer no palácio.
— Um momento. — Kong Hou olhou para a nave de jade no céu. — Tenho dois amigos que vieram comigo. Suas Majestades se incomodariam?
— Os bons amigos da Imortal são nossos ilustres convidados; serão muito bem recebidos.
— Que bom. — Kong Hou assentiu com a cabeça e voltou o olhar para a nave de jade.
Eles viram um imortal de vestes brancas voando em sua espada, belo e impecável como um jade sem defeitos.
Fora os imortais, quem mais no mundo poderia possuir tamanha perfeição?
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Notas:
[1] Taijian (太监): título para os eunucos da corte imperial chinesa, que geralmente serviam como atendentes pessoais dos membros da família imperial.
Capítulo 87: Você Tem Estado Bem?
— Saudações, Imortal. — O Imperador Jinghong e o príncipe herdeiro viram a expressão distante do imortal de vestes brancas e não estranharam. Na imaginação das pessoas comuns, os imortais habitavam os céus, inalcançáveis. Por isso, quando apareciam com atitudes altivas, ninguém se sentia ofendido.
Todos, inclusive o imperador, pensavam assim.
A aparência de Huan Zhong fez com que todos sentissem que os “imortais” eram ainda mais misteriosos, o que aumentou a reverência coletiva. Quando Lin Hu recolheu a nave de jade e pousou, quase ninguém teve coragem de encará-lo diretamente. Ele seguiu silenciosamente atrás de Huan Zhong e olhou em direção ao sudeste.
Parecia vir daquela direção um ressentimento sombrio e energias malignas. Seriam cultivadores cometendo atrocidades no mundo mortal?
Mas ao ver que o Mestre e a Senhorita Kong Hou permaneceram em silêncio, Lin Hu desviou o olhar e fingiu não ter percebido nada.
— Imortais, por favor, por aqui. — O príncipe herdeiro se curvou e fez um gesto convidativo. Como senhor do palácio oriental, fazia muitos anos que ele não se curvava humildemente diante de ninguém. No entanto, seus gestos fluíam com naturalidade, como se de fato venerasse os três cultivadores.
Kong Hou o observou. Ele tinha traços corretos e a testa limpa. Era o rosto de um monarca sábio. O príncipe herdeiro era mais de dez anos mais velho que ela, então, quando ela ainda era uma princesa marionete no palácio interno, raramente o via. Mesmo quando se encontravam em banquetes, o príncipe herdeiro a cumprimentava educadamente como “princesa” e jamais a incomodava, apesar de sua posição na dinastia anterior.
Kong Hou não pretendia envergonhar esse príncipe herdeiro benevolente e virtuoso. Apenas assentiu com a cabeça e desceu do altar. Os oficiais ajoelhados no chão a viram e todos recuaram sobre os próprios joelhos, abrindo um amplo caminho para ela.
A longa cauda de seu vestido varreu o chão como pedras de rio sob o luar — fria e bela, de uma elegância superior.
Abaixo da torre de Astronomia, no momento em que a nave de jade apareceu, os guardas não conseguiram conter-se e se ajoelharam. Quando viram o príncipe herdeiro vindo com os imortais, queriam espiar, mas não ousaram. Só depois que o grupo passou é que se atreveram a levantar a cabeça e dar uma olhada.
— Você viu?
— Só consegui ver os sapatos da imortal. Os sapatos da Imortal são tão lindos — brilham, sem um grão de poeira.
— Aquele vestido também é maravilhoso. Se alguma niangniang do palácio visse, ficaria tentada.
— Se fosse qualquer outra pessoa, tudo bem. Mas essa é a Imortal. Nem mesmo a consorte nobre mais favorecida ousaria copiar as roupas de uma imortal.
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Kong Hou havia deixado esse palácio fazia sete anos. Na época, sentia que o palácio imperial era imenso e opressor, um lugar do qual jamais escaparia por toda a vida. Mas ao vê-lo novamente, notou que algumas paredes estavam manchadas pela água da chuva. Certas lajotas do chão estavam rachadas. Os muros altos não pareciam tão altos assim. Vista do céu, a construção parecia um grão de poeira, tão pequena que mal podia ser vista.
Os portões estavam abertos. A via central, que teoricamente só o imperador poderia usar — até mesmo a imperatriz só teria essa honra durante sua cerimônia de coroação —, hoje estava sendo oferecida a ela. O imperador, o príncipe herdeiro e até mesmo os oficiais da corte a recebiam, convidando-a a caminhar por aquele caminho.
Ela claramente já não se importava com o passado, mas, ao pisar naquela trilha, Kong Hou ainda sentiu como se tivesse sido libertada de suas correntes. Parou e olhou para a placa sobre o portão do palácio.
Huan Zhong percebeu que ela havia parado de repente e a observou.
— O que foi?
— Quando eu tinha seis anos — disse Kong Hou, apontando para os portões —, fui protegida por uma criada e fugi até atrás dessa porta. Mas tive azar e fui encontrada pelos guardas da patrulha, que me levaram de volta.
Huan Zhong poderia destruir aquela porta de cobre com um simples movimento da manga. Mas para Kong Hou, que na época tinha apenas seis anos, aquelas eram as portas da liberdade. Se escapasse, poderia se esconder no vasto mundo a partir dali. Se não escapasse, enfrentaria a morte ou o cativeiro.
Aquelas palavras suaves, ditas agora, carregavam o desespero de sua infância.
Ao pisar ali novamente, Kong Hou sentiu que estava alcançando aquela garotinha assustada de antigamente.
O príncipe herdeiro, que ia à frente mostrando o caminho, inclinou-se ainda mais. Tinha medo de que, se fizesse qualquer ruído, despertasse o ódio de Kong Hou.
Quando passaram pelos portões de cobre vermelho, o príncipe herdeiro quis acelerar o passo, mas os três imortais atrás dele não pareciam notar sua urgência. Caminhavam lentamente e até conversavam sobre o passado.
O sangue nas paredes já havia sido lavado há muito tempo. Kong Hou se lembrava de que, naquela noite, muitas pessoas morreram, e o sangue jorrando tingira os muros do palácio. Na verdade, quando ouviu as incontáveis orações, ela ainda hesitava em vir ao mundo mortal. Então, recebeu um selo de mensagem voadora do Mestre do Pavilhão Sun.
O Mestre Sun disse que havia feito uma leitura para ela. Ela carregava um pecado.
Esse pecado não era por culpa dela, mas por causa de seu pai-imperador, o deposto Imperador Ji.
O deposto Imperador Ji havia sido incompetente e insensato. A corte vendia cargos e títulos em troca de dinheiro, e os funcionários inescrupulosos sugavam o sangue do povo. Uma parte da riqueza ia para os bolsos desses oficiais, mas a maior parte alimentava os cofres pessoais do Imperador Ji. Como filha dele, Kong Hou havia desfrutado do título de princesa. Também havia usado o que o imperador deposto roubara. Não importava se ela soubesse dos fatos ou não — ela havia se beneficiado.
Se não se livrasse desse pecado, quando tentasse entrar no Estágio de Manifestação da Mente, seria mais difícil do que escalar os céus.
Por causa da carta do Mestre do Pavilhão Sun — e também por conta da culpa que sentia pelas pessoas do mundo mortal —, Kong Hou decidiu vir ao mundo dos mortais. Depois de resolver esse assunto, cortaria todos os laços com ele.
Seguiram o príncipe herdeiro até o Palácio da Fênix. Esse era o palácio onde as imperatrizes-viúvas da Dinastia Ji costumavam viver. Quando o Imperador Jinghong subiu ao trono, sua mãe já havia falecido, então o Palácio da Fênix foi trancado.
O nome do palácio era auspicioso, e suas antigas donas sempre tiveram status elevado. Por isso, o príncipe herdeiro o preparou especialmente para Kong Hou.
— Imortais…
— Obrigada, Alteza, mas não precisa arranjar outros palácios para eles. Eles podem ficar nos demais salões deste — interrompeu Kong Hou. — Se Vossa Alteza não se opuser, pode me contar o que está acontecendo no mundo mortal.
— Sim. — O príncipe herdeiro não esperava que imortais fossem tão informais a ponto de homens e mulheres diferentes viverem no mesmo palácio. Mas, ao ver que os três imortais não demonstravam qualquer desconforto, não ousou comentar. Aproveitou a chance para falar sobre a praga.
— Os remédios não fazem efeito. Mesmo que os doentes fiquem isolados, a infecção ainda ocorre. Até o vento parece ajudar...
Kong Hou franziu o cenho. Se a praga conseguia se espalhar com o vento, não seriam apenas as cidades vizinhas — com o tempo, o país inteiro poderia ser encoberto por essa doença.
"Como pode haver uma praga tão forte no mundo mortal?"
— Onde a praga é mais grave? — perguntou Kong Hou.
— Nas cidades do sudeste. — O príncipe herdeiro ficou radiante ao ver que Kong Hou estava disposta a agir. — Eu e os demais faremos o possível para fornecer todos os ingredientes medicinais que a Imortal precisar.
— O Sudeste… — Kong Hou se virou para Lin Hu. — Ancião Lin, poderia ir verificar para mim?
— Imortal, o Pai-Imperador está organizando um banquete no Palácio da Tartaruga Negra e espera que os imortais compareçam.
— Falta mais de uma hora para o meio-dia — ainda dá tempo. — Lin Hu olhou para o céu e voou, transformando-se em um feixe de luz que desapareceu no horizonte.
Antes que o príncipe herdeiro pudesse dizer “Imortais, por favor, descansem”, viu a luz desaparecer. Ficou boquiaberto. Muito tempo depois, murmurou:
— Isso sim é magia imortal…
Kong Hou o ignorou. Naquele momento, nenhum dos oficiais estava presente, e ela não estava com disposição para manter as aparências com o príncipe herdeiro. Estendeu a mão, vasculhou seu anel de armazenamento e tirou um frasco de fluido espiritual. Derramou algumas gotas no chão.
— Isso é… — Ao ver que Kong Hou o ignorava, o príncipe herdeiro não se desencorajou. Já havia se ajoelhado, o resto era irrelevante.
— Fluido espiritual — disse Kong Hou. — Seu corpo é frágil. Quando o Ancião Lin voltar da região da praga, ele ainda terá resquícios do local. E se você for infectado?
— Obrigado, Imortal. — O príncipe herdeiro se comoveu. Não esperava que Kong Hou fosse tão atenciosa a ponto de perceber um detalhe como esse.
— Não me agradeça — respondeu Kong Hou em tom distante. — Você será um bom imperador no futuro. Só não quero que morra e acabe causando mais problemas para milhares de pessoas.
Suas palavras não foram gentis. O sorriso do príncipe herdeiro congelou por um instante, mas logo compreendeu. O que a Imortal Kong Hou dissera deixava claro que ela não se importava nem um pouco com a destruição da Dinastia Ji. Como membro da família imperial, ele não pôde evitar de pensar demais. Chegou até a sentir uma leve ameaça nas palavras dela.
Porque ele seria um bom imperador, ela cuidaria dele. Mas e se não fosse?
Algumas palavras não podiam ser ditas com tanta franqueza, tampouco questionadas. O príncipe herdeiro se curvou e disse:
— Imortal, por favor, aguarde e veja.
Kong Hou arqueou uma sobrancelha, mas não disse nada.
Ela e Huan Zhong sentaram-se à frente da mesa, com o príncipe herdeiro ao lado. O clima logo ficou constrangedor. O príncipe tentou puxar conversa para aliviar o ambiente, mas um não estava disposto a falar, e o outro só respondia com frases vagas. O príncipe herdeiro pensou que, se continuasse falando, os dois acabariam achando-o tagarela demais.
Mas, se não falasse e os três continuassem sentados em silêncio, não ficaria ainda mais constrangedor?
Coincidentemente, um atendente do palácio veio anunciar que o banquete estava pronto. Sua Majestade e a imperatriz aguardavam os três imortais.
— Por favor, peça ao Pai-Imperador e à Mãe-Imperatriz que aguardem um pouco. Iremos em seguida — disse o príncipe herdeiro, aliviado. Aquele silêncio constrangedor finalmente chegaria ao fim.
— Sua Majestade e a niangniang não precisam ser tão formais. Depois disso, meu carma com o mundo mortal estará encerrado, e não aparecerei mais — disse Kong Hou. O carma temia que o povo e os oficiais começassem a depender dela, e que, no futuro, ao enfrentarem dificuldades, soubessem apenas rezar e clamar aos céus, em vez de se fortalecerem. — Então, quer vocês sejam amigáveis ou não, eu os ajudarei desta vez. Vida e morte são aspectos naturais do mundo. Vocês terão que se virar sozinhos no futuro.
O príncipe herdeiro fez uma careta.
— Entendo.
Se rezar e suplicar realmente resolvesse tudo, por que nenhum imortal aparecera nos últimos dias?
A Imortal Kong Hou aceitara vir porque já fora parte daquele país e tinha sentimentos pelo povo daqui.
Mas o mundo dos mortais e o mundo dos imortais eram diferentes, e a Imortal Kong Hou não poderia ajudá-los para sempre. Isso violaria as regras do mundo e facilmente faria com que o povo desenvolvesse o hábito de orar sempre que tivesse problemas.
Isso era bom. O príncipe herdeiro sorriu. Nascidos como mortais, precisavam se esforçar e contar com si mesmos.
O vento soprou. O príncipe herdeiro se virou e, de repente, viu a pessoa a quem Ji Kong Hou chamava de Ancião Lin aparecer diante dele. Abriu a boca:
— As habilidades dos imortais são realmente incríveis.
Lin Hu respondeu friamente:
— Apenas um detalhe, nada mais.
A capital ficava a mais de mil milhas da área afetada pela praga. Se alguém viajasse dia e noite numa carruagem, levaria mais de quinze dias para chegar. E o imortal… levou apenas uma hora.
— Ancião Lin, por favor, troque de roupa para irmos ao banquete — disse Kong Hou, ao notar muitos atendentes do lado de fora. — Falaremos sobre a praga depois do banquete.
— Sim. — Lin Hu assentiu. Lançou um olhar ao príncipe herdeiro e entrou no palácio para trocar de roupas.
— Imortal, por favor, por aqui — disse o príncipe herdeiro, guiando o caminho. Um tapete vermelho havia sido estendido à frente, e as damas de companhia seguravam jarros, leques e incensos. Era um tratamento digno de um imperador.
No salão principal, os oficiais da corte e os membros da família imperial estavam sentados solenemente, todos olhando para fora do salão.
Ao ouvirem a voz do príncipe herdeiro, todos baixaram a cabeça em respeito aos imortais.
Pisando nos tijolos dourados, Kong Hou entrou no grande salão. Seu sorriso era tênue e impassível ao encarar aqueles oficiais poderosos que nem ousavam levantar os olhos.
Seu olhar se moveu… e ela viu a princesa sênior sentada num canto, com a cabeça baixa.
— Há quanto tempo... — disse Kong Hou. — A Princesa Sênior tem passado bem?
Sua voz era agradável, como o tilintar de contas de jade.
Mas todos ali se lembraram de sete anos atrás, quando a princesa sênior havia forçado a Imortal Kong Hou a tocar a konghou diante deles.
Capítulo 88: Cultivador Maligno
A já ansiosa princesa sênior, é claro, lembrava do que todos os outros também se recordavam. Ela levantou o rosto e encontrou o olhar de Kong Hou, seus olhos cheios de medo e ligeiramente derrotados.
Sob o olhar de todos, ela se levantou e disse:
— Obrigada por se lembrar, Imortal. Tudo tem ido bem.
— Que bom — respondeu Kong Hou, observando que os traços da princesa sênior carregavam certa melancolia. Ela suspirou. — Naquela época, a Princesa Sênior queria me ouvir tocar uma música na konghou. Por diversos motivos, eu não pude. Agora que nos reencontramos, permita-me compensar aquela canção.
Ao ouvir isso, a princesa sênior ficou ainda mais inquieta. Todos agora queriam esquecer deliberadamente como ela havia forçado Ji Kong Hou a tocar uma música diante deles. Mas, embora pudessem fingir ignorância ou esquecer muitos assuntos, os verdadeiros envolvidos talvez não estivessem dispostos a cooperar.
— N-não é necessário...
— A Princesa Sênior não precisa ser tão formal — disse Kong Hou, puxando o grampo de cabelo com cabeça de fênix. O objeto se transformou em uma enorme konghou com cabeça de fênix. Sob os olhares chocados e apreensivos de todos, Kong Hou dedilhou levemente as cordas. — Com esta canção, desejo que o povo do mundo tenha uma vida feliz e segura.
O imperador Jinghong sentiu-se levemente inquieto. Inconscientemente, voltou-se para olhar a imperatriz ao seu lado. Ela sorvia chá com a cabeça abaixada, como se não notasse seu olhar. O imperador congelou. Subitamente, lembrou-se de muitos anos atrás, quando ainda não era imperador e, ao sentir-se inquieto, bastava olhar para sua esposa para ver um sorriso que o confortava.
Depois de tornar-se imperador, raramente buscava apoio da imperatriz diante dos outros. Olhando para o rosto dela, agora envelhecido, o imperador Jinghong ficou um tanto absorto. Parecia que fazia muito tempo desde a última vez que haviam estado a sós.
Dedos dedilhavam as cordas, e a música da konghou soava. A melodia serena era como um demônio que encantava a mente e despertava as emoções mais profundas das pessoas.
A imperatriz, antes inexpressiva; o imperador, tomado de arrependimento; os ministros, com expressões diversas; e a princesa sênior, com lágrimas nos olhos, soluçando "Yan Xing". A canção da konghou revelava as dores e alegrias do mundo mortal.
O Yan Xing de quem a princesa sênior falava era seu antigo marido, um erudito talentoso e amplamente conhecido. A princesa sênior e Yan Xing haviam vivido um grande amor. Mais tarde, Yan Xing fora acusado injustamente por um vilão e morreu no Departamento de Justiça. A princesa sênior, tomada pela dor, passou a odiar profundamente o deposto imperador Ji. E chegou até a odiar Kong Hou, a antiga princesa de apenas seis anos.
Seu amado havia morrido pelas mãos de um poderoso oficial e confidente do imperador tolo. Embora a princesa sênior parecesse bela e radiante, por dentro havia se corrompido. Passou a odiar o imperador inútil, os ministros malignos que invejavam os virtuosos, e todos os membros da família Ji.
O que mais odiava era estar separada de Yan Xing pela morte, sem jamais poder vê-lo de novo. Após a morte de Yan Xing, ela fez muitas coisas por seu irmão mais velho. Após a queda do deposto imperador Ji, tornou-se a nobre princesa sênior. Suas emoções precisavam manter a dignidade da família imperial, e ela nunca mais chorou por Yan Xing.
Yan Xing estava morto havia treze anos. A romãzeira que ela plantara para ele floresceu e deu frutos, mas não havia mais ninguém para comer as romãs com ela.
Orgulho, firmeza e indiferença se desfizeram diante daquela música. A melodia era como uma comporta se abrindo. As emoções acumuladas por tantos anos transbordaram, incontroláveis.
Kong Hou olhou para a princesa sênior, que chorava com as mãos no rosto, e suspirou.
Quando era mais jovem, tudo o que sentia era que a princesa sênior era agressiva e extremamente hostil com ela. Agora que havia superado a raiva e o rancor, ao observar a história entre a princesa sênior e a Dinastia Ji, Kong Hou só podia suspirar.
O pai biológico de Kong Hou a ignorava. Mesmo sendo uma princesa, ela raramente via o imperador, seu pai.
A princesa sênior era uma mulher inteligente, mas os vilões da dinastia anterior haviam destruído tudo.
As duas — uma princesa da antiga dinastia, a outra princesa sênior da dinastia atual — eram todas vítimas daquela calamidade.
Enquanto a música continuava, a imperatriz pareceu se perder por um momento, mas não se deixou afundar completamente nas emoções. Ela olhou para o imperador ao seu lado, dividido entre alegria e tristeza, depois virou o rosto e se levantou, caminhando em direção a Kong Hou.
Quando estava prestes a se aproximar, o imortal de vestes brancas ao lado de Kong Hou — imóvel como uma estátua de gelo — virou-se para ela. Seus olhos escuros estavam repletos de julgamento impiedoso.
A imperatriz parou e fez uma reverência ao imortal de branco.
Ela jamais havia visto um homem tão belo. Nem mesmo o Mestre Yan Xing, que havia encantado a capital no passado, podia se comparar a esse imortal.
A música cessou de repente. Kong Hou caminhou até a princesa sênior, que quase desmaiara de tanto chorar, e tocou com um dedo sua testa. A princesa sênior, aos poucos, parou de chorar. Ela levantou o rosto para Kong Hou, o rosto coberto de rastros de lágrimas.
Kong Hou colocou um lenço de seda na mão da princesa sênior. Não disse nenhuma palavra de consolo, apenas sorriu para ela antes de se virar para os oficiais.
Certas dores, quando escondidas por tempo demais, se tornam feridas gravadas no coração — feridas que nem mesmo a morte consegue libertar.
Às vezes, chorar não era fraqueza, mas uma forma de extravasar as emoções.
Segurando o lenço macio entre os dedos, a princesa sênior pouco a pouco recuperou a consciência. Enxugou o rosto cheio de lágrimas e então percebeu... aquele lenço... Ji Kong Hou havia lhe dado isso?
Ela olhou ao redor e viu que quase todos ainda estavam imersos na música, incapazes de perceber sua perda de compostura. Mordendo os lábios, levantou-se com sentimentos complexos.
— Obrigada, Imortal Kong Hou.
— Está se sentindo melhor? — Kong Hou sorriu ao fitá-la. — Lembre-se de descansar bem e abrir o coração. Isso faz bem à saúde.
A princesa sênior fez uma careta.
— Meu amado já faleceu. Que diferença faz se eu choro de dor ou tristeza?
Ela havia prometido a Yan Xing que continuaria vivendo e não falharia com ele. Perguntava-se se, dali a uma dúzia de anos, na ponte para a morte, ele apareceria para ela.
Como princesa da dinastia anterior, Kong Hou não tinha posição para insistir mais. Apenas tocou de leve a cabeça da princesa sênior.
— Sendo assim, Princesa Sênior, cuide-se.
— Obrigada — disse a princesa sênior em voz baixa, mas qualquer cultivador podia ouvir claramente.
— Imortal Kong Hou, eu poderia vê-lo mais uma vez? — Quando disse isso, a princesa sênior logo recuou. — Não, não... melhor não nos encontrarmos. Ele ainda deve ser um homem encantador, mas eu me tornei uma velha enrugada. Melhor não nos vermos.
Vida e morte, juventude e velhice — eram as facas mais cruéis no amor. O mais belo dos amores não resistia a essas lâminas.
Kong Hou não compreendia o amor, mas ao olhar para a princesa sênior, via dor e arrependimento. Nem mesmo a morte conseguia cortar um sentimento tão teimoso. "Será que algo como o amor tem mesmo esse poder?", pensou.
— Imortal — a imperatriz olhou os oficiais que haviam perdido a razão e caminhou até Kong Hou. — Como podemos despertá-los?
Kong Hou balançou a cabeça.
— Aqueles sem preocupações despertarão logo. Quanto aos outros...
De repente, ela parou. A Espada Gelo de Geada cortou o ar e voou em direção a um oficial sentado num canto.
A imperatriz não esperava que Kong Hou agisse tão subitamente. Ela congelou, tomada por um pensamento absurdo e assustador: "Se Ji Kong Hou viesse ao mundo mortal e decidisse não partir, será que o mundo inteiro se tornaria dela?"
O imortal e o mortal estavam separados. O que mortais como eles não podiam mudar era algo trivial aos olhos dos imortais.
— Malfeitores devem ser punidos diante dos céus.
Ao perceber que estava sendo atacado, o oficial no canto gritou de súbito e tentou recuar.
Mas estava claro que Kong Hou não pretendia poupá-lo tão facilmente. O talismã em sua mão brilhou intensamente.
— Encontrei você.
A imperatriz compreendeu que havia alguém de identidade desconhecida entre eles.
O oficial capturado se contorcia no chão. Ao ver a expressão impassível de Kong Hou, implorou:
— Imortal, por favor, poupe-me. Este humilde sabe...
— Imortal? — Kong Hou ergueu uma sobrancelha. — Como soube da minha identidade?
— Eu... eu vi a Imortal de longe e tenho algum conhecimento sobre sua posição...
— Sério? — Kong Hou olhou o oficial ajoelhado com um tom estranho. — Eu pensei que você fosse um subordinado de um cultivador maligno, e que até a praga estivesse ligada a você.
— Não! — exclamou o oficial. — A praga é altamente contagiosa — como esses humildes ousariam se aproximar?
— "Esses humildes"? Que pessoas seriam essas? — Kong Hou apontou para o céu e depois para o chão. — Caminhante do Dao, poderia explicar?
Ao ouvir as palavras "Caminhante do Dao", o oficial capturado congelou por um instante e então disse:
— Este humilde não compreende as palavras da Imortal...
Kong Hou sorriu friamente e apontou sua espada para o nariz do homem.
— Como cultivador, deve manter distância dos mortais para não se contaminar com a poeira do mundo. Você é um cultivador fingindo ser mortal, escondido entre os oficiais. Está coberto de energia demoníaca — você está ligado à praga.
No momento em que subiu ao altar, Kong Hou sentiu uma densa energia demoníaca e um forte ressentimento vindo do sudeste. Ela também ouvira o príncipe herdeiro dizer que a praga era mais severa naquela região. Kong Hou compreendeu.
Os cultivadores malignos estavam tão ousados que se atreveram a sacrificar pessoas vivas, usando os mortais para concretizar uma ambição absurda. O Mundo Lingyou era rigidamente controlado. As seitas protegiam seu povo, então os cultivadores malignos não conseguiam facilmente encontrar um número tão grande de pessoas para sacrificar.
Para fugir dos cultivadores das seitas ortodoxas, o mundo mortal era a melhor escolha. A energia espiritual era fraca ali, não havia flores ou ervas espirituais, mas havia muitas pessoas — e nenhum cultivador ortodoxo para interferir.
Os humanos frágeis caíam como trigo sob a foice. Com esses espíritos irados, o talismã capaz de alterar o clima foi despertado.
Kong Hou imaginava que os cultivadores malignos desprezavam os humanos e gostavam de vê-los em estados deploráveis. Eles provavelmente colocavam subordinados infiltrados entre as pessoas e, então, observavam com arrogância enquanto os mortais passavam da preocupação para o desespero absoluto.
A mentalidade dos cultivadores malignos, que tiravam prazer do infortúnio alheio, era algo que pessoas comuns não conseguiam compreender.
Ao chegar ao salão, ela aproveitou o momento em que todos estavam atordoados pela música para controlar aquele cultivador maligno.
Sem mais o disfarce de uma pessoa comum, o cultivador maligno revelou-se enegrecido e ressequido, como um cadáver que havia saído rastejando de sua tumba — maligno e aterrador.
O rosto da imperatriz estava pálido.
— Imortal Kong Hou, você quer dizer que essa praga não é um desastre natural, mas algo causado por pessoas?
Então, tantas mortes, tantas famílias destruídas, tudo isso por causa desses... desses seres desconhecidos...
Eram demônios? Deuses? Ou monstros?
— Talvez — respondeu Kong Hou, olhando para a energia demoníaca que envolvia o cultivador maligno, semelhante à que havia sentido no sudeste. Em seguida, pisou sobre ele. — Qual é a forma de desfazer a Formação de Sacrifício de Almas?
Capítulo 89: Sem Desculpas
— Não há solução — o cultivador maligno encolheu o pescoço para trás, deitado no chão, com medo até de levantar a cabeça. — Essa Formação de Sacrifício de Almas se chama Murchar de Dez Mil Ossos, criada pelo mais poderoso mestre de formações do reino dos cultivadores malignos. Usa as montanhas e rios como formação e a vida das pessoas como isca para obter incontáveis energias demoníacas e ressentimentos.
Huan Zhong, que estivera em silêncio atrás de Kong Hou o tempo todo, franziu levemente a testa ao ouvir “Murchar de Dez Mil Ossos”. Ele se aproximou de Kong Hou e puxou seu pulso.
— Huan Zhong, o que foi? — Kong Hou se virou para ele.
— Não pise nele — disse Huan Zhong. — Sujo.
O cultivador maligno: “…”
Ele estava sendo pisoteado como um capacho. Nem teve tempo de se incomodar com a sujeira do chão, e ainda por cima estavam reclamando que ele era sujo. Essas seitas ortodoxas eram descaradas demais nas palavras e ações. Até as táticas de humilhação eram criativas.
Kong Hou tirou o pé das costas do cultivador maligno. Esfregou o sapato no chão e disse, percebendo:
— Você está certo.
— Matar alguém é só encostar a cabeça no chão. Vocês falham como seitas ortodoxas ao abusar de reféns assim — o cultivador maligno notou o movimento de Kong Hou e murmurou baixo —. Isso não é algo que nós, cultivadores malignos, fazemos?
— Mestre, como cultivador ortodoxo, decidi realizar seu último desejo e deixar sua cabeça tocar o chão — Lin Hu puxou a espada e ficou à frente do cultivador maligno.
O cultivador maligno implorou por misericórdia:
— Mestre Espiritual, poupe-me. As palavras dos cultivadores malignos não valem — não as tome como verdade.
— Está dizendo que Murchar de Dez Mil Ossos é mentira? — A ponta da espada tocou a testa do cultivador maligno, que estremeceu de medo. O frio da lâmina parecia invadir sua mente.
— Não, não, não, nós cultivadores malignos às vezes somos muito honestos — falou imediatamente. — Sou único entre eles — gosto de fazer coisas boas.
Lin Hu não quis perder tempo com ele. Guardou a espada e perguntou:
— Não há mesmo jeito de derrotar essa formação?
— Uma formação assim foi criada para acumular raiva e ódio — não precisa de solução — o cultivador maligno falou baixinho, com medo que a espada pousasse nele por acidente.
Lin Hu olhou para Huan Zhong com um leve receio nos olhos. Quando a Formação Murchar de Dez Mil Ossos se formasse, a maior parte do mundo mortal seria sugada para dentro dela. A raiva e o ódio acumulados seriam trazidos pelos cultivadores malignos para o Mundo Lingyou, que seria afogado em emoções negativas. Como seria aquilo?
Ele nem ousava pensar — nem aceitar que o pacífico Mundo Lingyou se tornasse um caos.
Ao ouvir isso, a imperatriz primeiro ficou chocada, depois furiosa. Ela puxou a pesada coroa de fênix, jogou-a no chão, caminhou até o cultivador maligno e agarrou suas roupas, gritando com raiva:
— Vocês, imortais, estão nas alturas — o que acham que somos, meros mortais, gado para matar à vontade? São pessoas, com carne e sangue, com famílias, pais e filhos!
A voz dela quebrou, e a compostura de imperatriz sumiu.
— O inútil imperador nos atormenta, os imortais distantes nos veem como gado — o que nós, mortais, fizemos de errado?
Vendo uma simples mortal se atrever a gritar com ele, o cultivador maligno zombou:
— Que relação tem a vida e a morte dos mortais conosco? São um bando de seres inúteis e de vida curta. Quando enfrentam problemas, só sabem implorar a deuses e budas. Merecem isso.
— Nós, mortais, somos minúsculos e inúteis, mas não seremos assim para sempre — a imperatriz empurrou o cultivador maligno com expressão calma. — E daí se você é um imortal? Na frente da vida e da morte, o que você tem de diferente da gente?
— Nós, mortais, podemos sentir medo e raiva antes de morrer. Você também — a imperatriz bateu no cultivador maligno. Ele tentou reagir, mas Kong Hou sacou a Espada Gelo d’Água e apontou para sua garganta.
O cultivador maligno se conteve e puxou a mão para trás.
— Viu? Você também é lixo que teme os outros — a imperatriz bateu de novo nele. — Um dia...
Um dia, os mortais vão contar por si mesmos para melhorar a vida. Não precisarão mais rastejar nem se curvar como cães diante dos imortais.
Mas... será que esse dia realmente virá?
A imperatriz olhou para trás, atordoada. Até ela só ousava descontar sua raiva naquele imortal maligno porque Ji Kong Hou estava ali. Se Ji Kong Hou sumisse, teria coragem? Perguntou a si mesma. A resposta era clara: não.
Ela não ousaria se opor a esses imortais. Temeria que, se eles ficassem irritados, mais pessoas sofreriam. Então, no fim das contas, só faria concessões e faria tudo o que pudesse para que o povo pudesse viver.
— Imperatriz niangniang, volte e descanse — Kong Hou percebeu que a imperatriz não estava bem e falou. — Meus amigos e eu vamos ao local da praga e não participaremos deste banquete.
Ela só viera ali para encontrar o cultivador maligno escondido, não para o banquete.
A imperatriz não entendia a Formação Murchar de Dez Mil Ossos, mas pelas palavras do imortal maligno, podia imaginar que o assunto não era simples, quase impossível de resolver. Não sabia se Ji Kong Hou estaria em perigo. Não poderia simplesmente assistir enquanto ela se arriscava.
— Você... — a imperatriz começou amarga. Deu um passo para trás e se curvou profundamente. — Não podemos retribuir sua grande ajuda. Muito obrigada.
— Não precisa me agradecer — Kong Hou subiu no ar para impedir que a imperatriz continuasse a se curvar. Seu rosto, que normalmente sorria, estava sério. — Eu já pensei que, se tivesse conseguido impedir as ações do meu pai, o imperador, no passado, talvez muitas pessoas não tivessem sofrido.
A imperatriz ficou em silêncio. Quantos anos Ji Kong Hou teria tido naquela época, cinco ou seis? Quando a patrulha a capturou e trouxe de volta, o rosto dela estava coberto de poeira, que os servos colocaram de propósito. Ela parecia excepcionalmente desleixada, mas aqueles olhos eram grandes e brilhantes. A imperatriz não sabia que poderia ser a morte esperando por ela.
Diante de um par de olhos assim, seu coração amoleceu. Pediu a Seu Majestade que deixasse uma filha imperial como um fantoche. Seria mais útil do que matá-la. Ela e Seu Majestade já não estavam mais apaixonados, mas ele ainda a respeitava e aceitou sua sugestão.
Depois disso, fez com que os criados do palácio observassem Kong Hou constantemente para que ela não tivesse contato com membros da dinastia anterior. Deixar a jovem viver foi a maior bondade que ofereceu aos sobreviventes daquela dinastia.
Naquele momento, ela se alegrava por ter sido tão comovida no passado. Caso contrário, ao enfrentarem os eventos de hoje, o povo do mundo estaria desamparado, com sua vida e morte nas mãos desses imortais.
— Niangniang, adeus — Kong Hou se virou para olhar Huan Zhong e puxou a ponta do seu manto. — Vamos.
— Tudo bem — Huan Zhong sorriu para Kong Hou de forma radiante.
O coração de Kong Hou tremeu levemente. Olhando para o sorriso de Huan Zhong, a preocupação e a decepção em seu peito foram desaparecendo aos poucos.
— Por favor, espere um momento — a grande princesa, com os olhos inchados de tanto chorar, levantou-se. — Eu errei com você nesses anos.
Não importava o quão hábil e virtuoso seu marido tivesse sido, nem o que ela tivesse feito pelo povo nesses anos, isso não apagava o fato de que ela havia despejado seu ódio e mágoas em uma criança que nada sabia.
— Estamos em lados diferentes; não adianta falar de certo ou errado de novo — Kong Hou olhou para a grande princesa, sem emoção. — A água não pode voltar para trás, as pessoas não podem recomeçar. A antiga eu passou por tudo isso. A eu do presente não precisa desse pedido de desculpas. A partir de agora, estaremos em lugares diferentes. Qual o sentido de levantar isso novamente?
Huan Zhong segurou a mão de Kong Hou com delicadeza. Olhou friamente para os nobres e poderosos no salão, com suas expressões torcidas, e disse:
— Quando ela era fraca, vocês a intimidavam. Agora que ela está forte, só então percebem que estavam errados.
— Ha — Huan Zhong raramente ria, e muito menos com desprezo. Seus olhos eram como gelo no inverno. — Que risível.
— Eu... — a grande princesa ficou atônita enquanto via Kong Hou e os outros dois imortais voarem para longe.
Ela olhou para o trono. Seu irmão imperial havia despertado. Não sabia se ele ouvira as palavras de Ji Kong Hou. Ele apenas a olhava, atordoado, com uma expressão triste e arrependida.
— Imperatriz...
— Vossa Majestade... — a imperatriz se voltou para ele, com expressão calma e serena. — A imortal Kong Hou e seus amigos estão indo para o local da praga. Eu irei para a sala de meditação orar pelo povo.
Terminando, ela se endireitou e saiu, sem esperar pela reação do imperador Jinghong.
O imperador Jinghong suspirou, abatido. Virou-se e viu que o príncipe herdeiro também despertara. Disse:
— Príncipe herdeiro, acompanhe zhen até o templo ancestral para orar.
— Sim — o príncipe herdeiro se levantou, olhando para fora da porta, onde a luz do sol brilhava.
##
— Ancião Lin, por que está trazendo esse cultivador maligno junto? — Kong Hou olhou para o cultivador maligno que Lin Hu segurava na mão e soltou o aperto na mão de Huan Zhong. — Pra que mantê-lo vivo?
— Vamos levá-lo conosco para explorar a formação. Se não conseguirmos vencer, usaremos ele para preencher o olho da formação. Se a derrotarmos, deixaremos ele vivo — o tom de Lin Hu era calmo, como se não fosse uma ameaça.
O cultivador maligno queria chorar. Os cultivadores ortodoxos que encontrara antes se preocupavam com a honra e a reputação das seitas ortodoxas em suas ações; quando é que já tinha visto pessoas assim? Não havia como danificar ou parar essa formação. Ele estava fadado a morrer nela, criada pelo próprio lado dele.
— Essa é uma boa ideia — Kong Hou assentiu e falou para Huan Zhong. — Huan Zhong, vamos acelerar.
O mundo mortal era muito menor que o Mundo Lingyou. Da capital até as cidades infectadas no sudeste, nem precisariam de uma hora.
Quanto mais se aproximavam, mais forte ficava a energia demoníaca, a miasma e o ódio. Pessoas comuns não viam, mas Kong Hou, cultivadora, podia. O céu acima do sudeste estava encoberto por um ressentimento negro. A energia do ressentimento agitava as nuvens e caía com a chuva.
A chuva, carregada de energia demoníaca e ressentimento, caía sobre árvores e flores. A água escorria por riachos até rios, e os rios seguiam seu curso enquanto a energia demoníaca se espalhava para a próxima cidade.
Kong Hou inalou profundamente. A jusante daquele rio havia uma cidade extremamente próspera, com mais de duzentas mil pessoas. Se ela fosse infectada...
Ela tirou um frasco de remédio espiritual que Qing Yuan Shishu havia feito e despejou no rio. A energia negra no rio desapareceu instantaneamente.
— É inútil — o cultivador maligno não conseguia se mexer, preso por talismãs. Olhou para o rio que havia ficado claro momentaneamente. — Enquanto a chuva continuar, esse rio será infectado de novo.
Quando ele terminou de falar, viu o cultivador de espada de manto branco tirar do punho um selo que brilhava com luz dourada. Quando o selo tocou a água, a energia demoníaca ao redor recuou, e a luz dourada devorou ainda mais dessa energia.
— O que é isso? — Kong Hou percebeu que a energia demoníaca em um raio de dez milhas desaparecera após o selo dourado tocar a água. A luz até parecia se espalhar para fora, forçando a energia a fugir.
— Selo das Montanhas e Mares — Huan Zhong explicou pacientemente a Kong Hou. — Pode estabilizar as montanhas, proteger as águas e subjugar o mal.
— Selo das Montanhas e Mares... — Kong Hou parecia lembrar-se dele. Vendo a energia demoníaca desaparecer quase cem milhas ao redor, exclamou baixinho: — Agora lembro. O Selo das Montanhas e Mares é um dos artefatos de nível celestial que o Mestre Espiritual Zhong Xi possui. Quem o carrega não pode ser invadido pelo mal. Por que um talismã do Mestre Espiritual Zhong Xi está com você?
Quando o cultivador maligno ouviu as palavras “Mestre Espiritual Zhong Xi,” seus ombros tremeram e uma onda de frio subiu pela sua espinha.
Porque a energia demoníaca dissipou-se rápido, Kong Hou finalmente se interessou em conversar.
— Não é à toa...
— Não é à toa o quê? — Huan Zhong olhou para Kong Hou preocupado, ansioso e um pouco apreensivo.
— Não é à toa que você se mostrou tão desinteressado quando mencionei os rumores do Mestre Espiritual Zhong Xi. Pelo visto vocês são amigos próximos — Kong Hou suspirou. — Se não fossem, por que ele daria um talismã divino tão importante a você?
De fato, pelo jeito de Huan Zhong, ele não gostava de falar sobre bons amigos em particular.
Lin Hu: “...”
Essa garota provavelmente era meio burra.
Capítulo 90: Por Favor
Huan Zhong não sabia se ria ou chorava. Suspirou. Quando estava prestes a falar, percebeu que Kong Hou tinha uma expressão aterrorizada, como se tivesse descoberto algo assustador.
Seguindo o olhar de Kong Hou, Huan Zhong viu que a energia demoníaca, que antes havia sido dispersada, voltava — e ainda mais forte do que antes. Ela cobria o céu e a terra, envolvendo tudo na escuridão.
— Por que está assim? — Kong Hou olhou ao redor, atordoada, vendo as flores e as árvores balançarem dentro da energia demoníaca, como se a vitalidade delas fosse sugada. Seu sorriso se transformou em pânico.
— Calma, não pense demais — Huan Zhong tocou a cabeça de Kong Hou com energia espiritual para acalmá-la. — Vamos primeiro até o olho da formação.
— Já disse antes: essa formação não tem solução — o cultivador maligno falou com urgência. — Se forem agora, além de serem infectados pela energia demoníaca, que proveito terão? Essa formação foi criada no mundo mortal — a energia demoníaca foi atraída do coração dos humanos daqui. Os talismãs, até mesmo os divinos, são inúteis contra ela.
— Se os talismãs divinos do mundo da cultivação fossem eficazes contra essa formação, por que os mestres de formação do reino maligno gastariam quase um século para criá-la?
— Os cultivadores ortodoxos cultivam a mente antes do corpo. A energia demoníaca pode facilmente atrair demônios mentais. Se os cultivadores ortodoxos se enredarem com esses demônios, os cultivadores malignos vencem. Mas eu tive azar — vou morrer com essa formação.
— Antes de vir ao mundo mortal, o mestre me disse que os cultivadores ortodoxos são falsos cavalheiros, que gostam de salvar os aflitos e os que estão em perigo. Se eu encontrar cultivadores ortodoxos no mundo mortal, devo fingir ser fraco e estúpido. Devo avisá-los da existência da formação e dizer para não irem. Mas cultivadores ortodoxos têm um defeito — se disserem para não irem, eles vão.
— Cultivadores poderosos que morrem em terror são o melhor alimento para a Formação Murchar de Dez Mil Ossos.
— Tudo no mundo se gera e se domina — quando as emoções de Kong Hou se acalmaram, Huan Zhong olhou friamente para o cultivador maligno. Tirou sua espada voadora, colocou Kong Hou sobre ela e voou para longe.
— Nosso mestre não gosta de cultivadores malignos, especialmente os que se acham espertos — Lin Hu suspirou. — Me diga, o que eu faço com você?
O cultivador maligno abriu a boca. Sentiu o gosto de sangue. Nem teve chance de falar de novo — porque uma espada atravessou sua garganta, e sua plataforma espiritual foi destruída por uma explosão de energia espiritual.
Ele caiu das nuvens no rio sem fundo, seu corpo se misturando com a energia demoníaca, afundando nas águas negras.
No momento antes de morrer, seu pensamento foi: "Os cultivadores ortodoxos são mentirosos."
Huan Zhong e Kong Hou viajaram para o sudeste. Kong Hou viu a energia demoníaca girando como um tornado sobre uma cidade enorme. A cidade exalava cheiro de morte, soldados empurravam carrinhos cheios de cadáveres para serem enterrados em valas.
Dentro dos portões da cidade, as pessoas gritavam e choravam, sua raiva subindo ao céu.
— Mãe... mãe... — um menino descalço gritava enquanto corria atrás de um carrinho de madeira. Suas roupas estavam tão sujas que não se podia ver a cor. O rosto coberto de lama. Ele estendia a mão, querendo puxar os cadáveres cobertos por um pano velho no carrinho.
O soldado que empurrava o carrinho tinha expressão cansada e entorpecida. Vendo o menino correr atrás, parou e disse com voz rouca:
— Volte, não faça barulho.
Ele já via tanta morte todo dia que perdeu a capacidade de sentir pena. Não só as pessoas estavam presas naquela cidade, como os soldados também. Quinzena atrás, eram dez mil soldados. Agora, só oito mil restavam. Os sobreviventes haviam queimado os outros dois mil com as próprias mãos.
A morte não parava. Talvez, quando todos os da cidade morressem, a morte que pairava ali desapareceria.
Ao ouvir o choro do menino, o guarda continuou. Sob o pano, um braço pendia, inchado e negro. Mas ninguém se assustava ao ver aquele braço.
Quem naquela cidade nunca tinha visto cadáveres de vítimas da praga?
Choros, suspiros, maldições, orações.
Esses sons cobriam a cidade e esperavam pela sua morte.
Kong Hou saltou da espada voadora. Enquanto se firmava, viu um velho cair ali perto. Avançou para ampará-lo, mas alguém puxou sua manga.
— Irmã mais velha, não vá — uma criança com cabeça grande e corpo pequeno olhou fixamente para ela. — Ele já está morto.
Aquele par de olhos, que deveria ser inocente, não demonstrava emoção ao falar de morte, como se falasse de tomar café da manhã.
A voz de Kong Hou tremia.
— E se... ele ainda estiver vivo?
— Então está prestes a morrer — a criança respondeu. — Eu vi. Você pode voar.
A garganta de Kong Hou ficou seca.
— Mm-hmm.
— Você é uma especialista marcial? — os olhos calmos da criança finalmente se iluminaram. — Você pode sair daqui?
O vento soprava no rosto de Kong Hou. Ela olhou para a cidade envolta em névoa negra e ficou em silêncio. Um objeto frio foi colocado em sua mão. Ela olhou para baixo e encontrou os olhos brilhantes da criança.
— Esta jade é quente no inverno e fria no verão — explicou o menino, tentando provar que a jade era verdadeira — vale cidades inteiras. É verdade, eu não estou mentindo! Minha avó era uma junzhu da dinastia anterior; ela era de sangue imperial.
— O que você quer que eu faça? — Kong Hou perguntou baixinho, segurando a jade do tamanho da unha do polegar.
— Espere aqui! — A criança correu para dentro do quarto atrás dele e logo voltou com um monte de roupas de bebê. — Leve ela, mesmo que seja para ser sua serva. Desde que... desde que você cuide dela e dê o que comer.
— Minha irmã não come muito; papai diz que ela é como minha mãe. Minha mãe come bem pouco a cada vez, mesmo — o menino tinha medo de que Kong Hou recusasse, e os olhos ficaram vermelhos. — Por favor, leve ela embora. Eu prometi ao papai que cuidaria dela.
A criança, de uns oito ou nove anos, era magra como um bambu, a voz tremendo de medo, mas ainda assim falava do desejo de proteger a bebê de um mês.
Kong Hou tocou na criança enrolada nas roupas. Respirava fraco, estava presa à energia demoníaca. Nem tinha força para chorar. Se ficasse naquela cidade, provavelmente não viveria mais um dia.
Vendo Kong Hou em silêncio, a criança se ajoelhou e fez uma reverência profunda.
— Por favor, eu imploro.
— Levante-se — Kong Hou ouviu o som da testa da criança batendo no chão e se abaixou para puxá-lo para cima. — Um homem se ajoelha para o céu, para a terra e para os pais, e não facilmente para mais ninguém.
Ela nunca tinha segurado uma criança antes, então não ousava fazer movimentos bruscos. Vendo que os olhos do menino ainda estavam fixos nas roupas de bebê, Kong Hou se virou para olhar e viu Huan Zhong se aproximar.
— Huan Zhong, venha me ajudar. — A criança era muito frágil. Ela tinha medo de fazer muita força e enfraquecer ainda mais aquele corpo já tão débil.
Huan Zhong: “…”
Olhando fixamente para a criança nos braços de Kong Hou, Huan Zhong estendeu a mão com rigidez e pegou a bolinha macia em seus próprios braços.
As roupas de bebê pareciam estar caindo?
A criança estava quase caindo?
Será que as crianças ficam confortáveis nessa posição?
Quando Lin Hu chegou, viu o Mestre parado feito estátua ao lado da senhorita Kong Hou, sustentando algo usando uma poderosa onda de energia espiritual aos seus pés. Franziu a testa. Seria algum talismã maligno que explodiria se mexessem?
Ele rapidamente se aproximou e olhou para o lado de Huan Zhong. Então recuou três passos silenciosamente, esperando que o Mestre não o percebesse.
— Lin Hu. — Huan Zhong olhou para ele sem expressão, seu perfil ainda perfeito e impecável.
— Mestre, vou até o olho da formação para olhar — disse Lin Hu.
— Você tem sangue de yao; não deve se aproximar do olho da energia demoníaca.
— Não, o efeito diminuto do sangue não é importante — Lin Hu respondeu.
Huan Zhong não falou nada e o encarou com olhos impassíveis.
Kong Hou não percebeu o que Huan Zhong e Lin Hu estavam dizendo. Ela esfregou a parte inchada na testa do menino e devolveu a jade para ele.
— Devolvo isso para você. Sua mãe deixou isso para você, eu não posso ficar com isso.
O menino balançou a cabeça.
— Não estou mentindo, a jade é muito valiosa. Por favor, aceite.
— Vou salvar sua irmã. — Kong Hou segurou o rosto dele. Se ele continuasse a balançar a cabeça, ele ia cair. — Eu não vou apenas salvá-la — vou salvar você e todos da cidade também.
O menino ficou imóvel.
— Você é... uma médica?
— Não sou — Kong Hou forçou um sorriso. — Sou parente distante da sua avó.
O menino franziu a testa.
— Mas mamãe me disse que o bisavô era um junwang e os parentes da vovó eram todos da família imperial da dinastia anterior. Você... — Papai raramente mencionava a família imperial anterior na frente da mamãe, mas em particular, quando me ensinava a ler e escrever, dizia que os membros daquela família eram arrogantes e extravagantes. Quando o imperador atual subiu ao trono, todo mundo aplaudiu, e muitas vilas até convidaram grupos para cantar por três dias e noites.
— A dinastia anterior tinha uma má reputação. Essa irmã mais velha parecia tão bonita. Por que ela dizia ter ligação com a dinastia anterior? Não estaria se complicando?
O menino disse, em voz baixa:
— Irmã mais velha, vá embora. Nem os médicos imperiais que Sua Majestade mandou conseguem fazer algo contra a praga. Não fique aqui para morrer também.
— Tão jovem, e já sabe o que é ser enterrado? — Kong Hou se levantou e olhou para trás. Viu que o bebê tinha sido passado dos braços de Huan Zhong para os do Elder Lin. Tirou uma garrafa de fluido espiritual e pingou uma gota na boca da menina.
— Huan Zhong, vou voar para olhar acima do olho da formação. — Kong Hou tirou o Guarda-Chuva de Ocultação que tinha recebido do reino secreto e o ergueu sobre a cabeça. — Você e Elder Lin fiquem aqui me esperando.
— Vou acompanhá-la — Huan Zhong a deteve e disse. — Não vá sozinha.
Kong Hou balançou a cabeça lentamente.
— Apenas me esperem aqui embaixo. Huan Zhong, eu preciso pagar a dívida que a família Ji tem com o povo.
— Vou pagar junto com você. — Huan Zhong pegou o guarda-chuva da mão dela e olhou para ela com carinho. — Você me acompanha a buscar remédios pelas montanhas e rios, eu te acompanho para derrotar essa formação. Por favor?
Kong Hou olhou para ele, atônita, sem saber o que dizer.
Huan Zhong de repente se curvou e encostou o rosto no ombro dela antes de se afastar rapidamente.
Kong Hou ficou confusa.
— Huan Zhong?
Ele apertou os lábios, o rosto ficando ligeiramente vermelho.
— Pensei em uma nova maneira de fazer charme.
— Você...
Os olhos dele refletiam a expressão confusa de Kong Hou.
— Por favorzinho?
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