Capítulo 91: Encontrando Alegria na Adversidade
— Tá bom, tá bom… — Kong Hou cobriu o rosto, a voz fraca como o zumbido de um mosquito. — Então… então você não pode sair correndo sozinho.
Huan Zhong riu suavemente e pegou a mão dela.
— Eu vou andar ao seu lado.
— Atrás de mim. — Kong Hou puxou a mão de volta, apontou para trás de si e pegou de volta o Guarda-Chuva de Ocultação das mãos de Huan Zhong. — Fique bem perto.
Huan Zhong olhou para sua mão vazia. Levou a mão às costas, levou o punho direito até os lábios e tossiu de forma claramente fingida.
— Então deixo o trabalho para a celestial Kong Hou abrir o caminho.
Kong Hou: “…”
Ela não esperava que Huan Zhong também soubesse brincar. Virou-se e lançou um olhar fulminante antes de voar em direção ao olho da formação. Huan Zhong a seguiu em silêncio; um brilho de luz surgiu em sua mão, e a espada Rugido do Dragão apareceu.
O menino observou enquanto a bela mulher e seu companheiro se afastavam pelo céu. Seu pequeno corpo carregava um choque que não condizia com sua idade. Será que especialistas marciais conseguiam mesmo voar mais alto que as muralhas da cidade?
Ele se virou e caminhou até Lin Hu, olhando para Kong Hou no céu e depois para Lin Hu, que segurava sua irmã.
— Preocupado com ela? — Lin Hu perguntou.
— Não — o menino balançou a cabeça — estou muito tranquilo em entregar minha irmã a vocês.
Mesmo que não estivesse… essa era sua única chance de garantir a sobrevivência da irmã. Ele precisava estar tranquilo.
— Segure ela por enquanto. — Lin Hu viu que, apesar das palavras, a criança estava cheia de preocupação, e empurrou o embrulho de volta para os braços do menino. — Cuide de si. Eu vou lá ajudar um pouco.
O garoto ajustou cuidadosamente o modo como segurava a irmã. Percebeu que ela estava com uma coloração bem mais saudável do que antes e ficou eufórico. Agora há pouco, quando a bela irmã mais velha deu algo para sua irmã beber, ele teve medo de que ela não quisesse mais levá-la consigo se ficasse irritada, então nem ousou perguntar. Ao ver que sua irmã parecia muito melhor, supôs que a bela irmã devia ter dado algum tipo de remédio.
Será que ela realmente tinha um jeito de salvar toda a cidade?
Ele olhou para os dois que ainda estavam no ar, sem pousar. Um pensamento absurdo lhe passou pela cabeça — a bela irmã… seria ela a Imortal Kong Hou?
Na família Ji, quase ninguém ousava afirmar abertamente que era membro da antiga família imperial.
Apenas a Princesa Kong Hou, que havia se tornado imortal sete anos antes e para quem templos haviam sido construídos por ordem do próprio imperador, tinha essa liberdade. E além disso, quem além dos seres divinos poderia voar com tanta leveza pelo céu?
A Princesa Kong Hou veio salvá-los?
O menino apertou a irmã contra o peito. Será que ela havia ouvido suas preces?
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Quando Kong Hou se aproximou do núcleo da formação, a poderosa energia demoníaca quase a impediu de respirar. Felizmente, o guarda-chuva de ocultação conseguia bloquear essa energia, dando a ela a chance de recuperar o fôlego. Ela recuou e segurou o guarda-chuva acima da própria cabeça e da de Huan Zhong para protegê-los.
— Huan Zhong, essa formação está prestes a se completar?
— Ainda não. — Huan Zhong tinha uma expressão sombria ao olhar para a energia demoníaca que se espalhava da formação. — Ainda não é o suficiente.
— O que não é suficiente? — Kong Hou teve um mau pressentimento.
— Vida — disse Huan Zhong. — Essa formação usa o tempo de vida das pessoas. Gente suficiente precisa morrer para que ela se complete.
Kong Hou olhou para a cidade abaixo e pensou nas pessoas inocentes que já haviam morrido. Ela falou com ódio:
— Animais.
A geografia dessa cidade era estranha. Quatro rios a atravessavam, e ela era cercada por montanhas, formando uma planície que parecia ter saídas, mas, na realidade, era uma armadilha. Originalmente, esse seria um ótimo lugar, fácil de defender e difícil de atacar, mas sob a manipulação dos cultivadores malignos, tornou-se a escolha perfeita para a formação da técnica do Murchar dos Dez Mil Ossos.
— Vamos sair daqui primeiro — disse Huan Zhong. — Ver se conseguimos usar os rios e montanhas para destruir a base da formação.
— Sim. — Kong Hou assentiu levemente, o rosto sério. No momento em que se virou, uma poderosa força de sucção veio do núcleo da formação atrás dela, puxando-a em direção à estrutura. Num piscar de olhos, ela já estava a dezenas de metros de distância.
— Kong Hou! — Huan Zhong segurou sua mão e usou a espada Rugido do Dragão para cortar a energia demoníaca que a envolvia. Ele a abraçou pela cintura. — Vamos.
O núcleo da formação parecia ter detectado a presença de cultivadores por perto. A energia demoníaca começou a se retorcer, e todas as forças ao redor passaram a girar em torno deles, como se desejassem arrastá-los para baixo.
— Vai! — Huan Zhong olhou para a espada Rugido do Dragão, envolta pela energia demoníaca, que vibrava baixinho. Ele então olhou para Kong Hou, que estava pálida, e soltou a espada, envolvendo Kong Hou com os dois braços enquanto voava para longe.
— Mestre, o que é a espada?
— A espada é a vida de nós, cultivadores da espada. Se você existe, sua espada existe. Se a espada deixa de existir, você nunca será digno de ser chamado de cultivador da espada em toda a sua vida.
— A espada é o mais importante?
— Talvez sim, talvez não.
Huan Zhong fechou os olhos, lembrando das palavras que seu mestre lhe dissera quando ele entrou na Seita Radiante. Ele não tinha confiança de tirar Kong Hou ilesa da Formação do Murchar dos Dez Mil Ossos, alimentada por dezenas de milhares de vidas. A espada Rugido do Dragão era a melhor isca para atrair a energia demoníaca.
— Huan Zhong, sua espada! — Kong Hou sabia o que uma espada de vínculo vital significava para um cultivador da espada. Ao ver a Rugido do Dragão quase sendo consumida pela energia demoníaca, falou com urgência: — A energia demoníaca vai danificar a espada!
— Não importa — respondeu Huan Zhong, com frieza. — Primeiro precisamos sair daqui.
Kong Hou olhou, atônita, para o perfil de Huan Zhong. Mordeu os lábios, sangrando pelos cantos da boca, enquanto reunia energia espiritual nas mãos. Ela empurrou Huan Zhong para fora do alcance da energia demoníaca.
Huan Zhong se virou, chocado, sem esperar que Kong Hou fosse fazer isso. Tudo o que viu foi a energia demoníaca negra e a fraca vibração da espada Rugido do Dragão.
— Huan Zhong, se você ousar me seguir, eu vou pegar a sua espada e pular no núcleo da formação! — o grito de Kong Hou veio de longe, no meio da névoa negra. Mas Huan Zhong não conseguia enxergar sua figura.
Ignorando a ameaça de Kong Hou, Huan Zhong se virou e estava prestes a persegui-la quando Lin Hu surgiu de repente e o impediu.
— Saia da frente. — Huan Zhong girou a manga para lançar Lin Hu para o lado. Não esperava que Lin Hu, que sempre obedecera suas ordens, erguesse a espada e bloqueasse o golpe.
— Mestre, sua plataforma espiritual já está instável. Você também perdeu sua espada de vínculo vital — quer morrer?! — disse Lin Hu em voz baixa. — Além disso, você é um cultivador do Mundo Lingyou. Se interferir demais nos assuntos do mundo mortal, será tocado pelo carma.
A ordem natural das coisas era um destino traçado. Se as pessoas do reino mortal enfrentassem problemas e apenas rezassem para os seres divinos, isso as faria ver a proteção divina como única solução e perderiam o espírito de lutar. A longo prazo, isso não seria bom para a humanidade.
Por isso, os cultivadores do Mundo Lingyou podiam ocultar suas identidades e visitar o mundo mortal por diversão, mas não deviam interferir nos assuntos humanos. Ele sabia disso, o Mestre também sabia, assim como os demais cultivadores. Consequentemente, raramente haviam “aparições divinas” no mundo mortal.
Até a senhorita Kong Hou compreendia isso.
— Eu sei. Não precisa me convencer — a expressão de Huan Zhong ficou ainda mais fria. — Lin Hu, não quero lutar com você. Saia da frente.
Lin Hu fez uma careta.
— Mestre, eu também não quero. — Se o Mestre lutasse com força total, ele não conseguiria impedi-lo. — Mas não se esqueça da personalidade da senhorita Kong Hou. Ela disse que, se você entrar, vai pegar a Rugido do Dragão e pular no núcleo da formação. Mesmo que não acredite totalmente, pode acreditar em metade.
A metade que não dava para acreditar era que, antes de pular, a senhorita Kong Hou certamente jogaria a espada Rugido do Dragão para fora.
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O guarda-chuva de ocultação não conseguia bloquear a insana formação. Kong Hou o recolheu e segurou a miniatura da Cabeça de Fênix nas mãos. Confiando na luz emitida pela Cabeça de Fênix, aproximou-se lentamente da espada Rugido do Dragão, envolta pela energia demoníaca.
No meio daquela energia espessa, a Rugido do Dragão era como uma lanterna que emitia som. Kong Hou a localizou imediatamente.
Seus dedos se moveram rapidamente pelas cordas. Kong Hou evitou as investidas da energia demoníaca enquanto se aproximava da Rugido do Dragão. O zumbido da espada enfraquecia cada vez mais. O braço de Kong Hou atravessou a energia demoníaca envolta na espada. A energia corroeu sua manga, e o tecido se desfez em farrapos.
A túnica que ela usava podia suportar três ataques de um especialista em Projeção. No olho daquela formação, mal resistira por alguns minutos.
— Vruuum!
A Rugido do Dragão possuía consciência e não queria que ninguém além de seu mestre a tocasse. Assim que Kong Hou tocou o punho da espada, ela reagiu com um forte contra-ataque. Kong Hou quase cuspiu sangue com o impacto. Sem perder tempo, puxou a espada e correu, lançando talismãs. Em poucos passos, jogou mais de uma dúzia deles para evitar ser arrastada junto com a Rugido do Dragão para o centro da formação.
Com a energia demoníaca em seu encalço e a espada se recusando a cooperar, Kong Hou ficou furiosa. Deu um tapa no punho da espada.
— Comporte-se! Seu mestre é uma pessoa tão boa… como pode ter uma espada tão teimosa?!
A Rugido do Dragão tremeu duas vezes e então parou de se agitar tanto em suas mãos. Ofegante, Kong Hou forçou um sorriso. Jogou mais alguns talismãs atrás de si.
— Se continuar daquele jeito, eu jogo você de volta!
Agora, a espada ficou completamente imóvel.
Naquele momento, Kong Hou já havia consumido quase toda sua energia. Eram apenas trinta metros de distância, mas parecia que carregava uma montanha nas costas, arfando como um boi velho. A Rugido do Dragão era tão pesada que ela mal conseguia segurá-la.
— Acabou… será que vamos mesmo morrer aqui?
Mesmo com os dedos começando a tremer, Kong Hou segurava firmemente a espada. Quando viu Huan Zhong brandi-la, pensara que pesava apenas alguns quilos. Mas aquela espada, apesar de parecer comum, tinha um nome imponente — e um peso igualmente impressionante.
Cultivadores da espada realmente não tinham vida fácil. Brandir uma lâmina de centenas de quilos e ainda fazê-lo com graça… não era à toa que ninguém queria provocá-los. Quem conseguiria lidar com isso?
Woosh.
Um vento sutil soprou. Kong Hou instintivamente se desviou para a esquerda. No processo, lançou os três Selos de Rejeição do Mal que tinha na mão esquerda. Depois disso, começou a lançar selos sem nem olhar quais eram.
— Pronto...
No instante em que a energia demoníaca envolveu sua perna, muitos pensamentos passaram por sua mente. Seu mestre, seus irmãos e irmãs da seita, seus amigos, Huan Zhong encostado em seu ombro fazendo charme… e o povo do mundo.
— Primeiro vem o céu e a terra, a água e tudo mais, energia pura removendo a impureza; céu e terra geram yin e yang, yin e yang formam dois polos, os dois polos geram quatro manifestações. Vida e morte, todos os seres nascem para morrer, e tudo que não vive jamais morre; se alguém não morre, como pode compreender a vida...
O sutra da mente que Kong Hou havia memorizado no reino secreto surgiu repentinamente quando ela canalizou sua energia espiritual. Abraçando a Rugido do Dragão, ela murmurou:
— A água e tudo mais, energia pura removendo a impureza...
Olhando para a energia demoníaca enrolada em suas pernas, Kong Hou pegou uma garrafa de líquido espiritual e derramou sobre si. Como esperado, a energia demoníaca recuou de má vontade. Aproveitando a chance, enfiou um punhado de pílulas de condensação de energia na boca e concentrou sua energia para avançar.
Nunca se sentira tão veloz quanto naquele momento.
Ao ver a energia demoníaca se aproximando outra vez, sem pensar muito, ela brandiu a Rugido do Dragão contra ela. Achou que a espada a ignoraria, mas então ouviu um rugido prolongado. Uma sombra de dragão dourado apareceu e se enroscou na energia demoníaca que fluía do centro da formação.
Ao ouvir o rugido do dragão, Lin Hu, que lutava para conter Huan Zhong, não pôde deixar de olhar. Vendo a sombra dourada do dragão envolta na névoa negra, exclamou chocado:
— Mestre, sua Rugido do Dragão...
Huan Zhong o chutou das nuvens.
— Lin Hu, se a Formação do Murchar de Dez Mil Ossos se completar, o povo do mundo mortal será enterrado junto com ela, e muitos cultivadores do Mundo Lingyou terão seus corações corrompidos pelos demônios internos causados por essa energia. Não se esqueça de que o objetivo dessa formação é justamente atacar o Mundo Lingyou. Não estou me intrometendo no carma do mundo mortal — estou impedindo uma calamidade que arrastará tanto o mundo mortal quanto Lingyou.
Virando-se, ele voou em direção à energia demoníaca.
— Você se alimenta de energia espiritual, por acaso? — Kong Hou ainda conseguia respirar antes. Agora, segurando a Rugido do Dragão, mal conseguia puxar o ar. Uma espada magnífica como aquela realmente não combinava com ela. Preferia a bela e prática Espada Geada D’Água, que não exigia tanto.
Woosh.
A Rugido do Dragão tremeu novamente.
— Não se preocupe com essas coisas agora — disse Kong Hou, canalizando energia espiritual. Como uma cultivadora de base espiritual quíntupla, usou seu talento inato para controlar o elemento água no ar, criando uma barreira líquida que conseguiu conter a energia demoníaca.
— Quando entrei na seita, sonhava em cultivar e ascender. Mas agora, não ascendi e talvez vire adubo para uma formação maligna... — suspirou, retirando um selo sonoro. No mundo mortal, um selo de mensagem não conseguia alcançar o Mundo Lingyou. Só podia deixar uma carta para Huan Zhong, esperando que ele a entregasse quando chegasse a hora.
No entanto, antes que pudesse usar o selo, um homem de túnica branca surgiu através da névoa espessa. Ao vê-la, lançou dois talismãs divinos, a segurou nos braços e partiu em disparada.
A energia demoníaca invadiu seu corpo. A energia espiritual na plataforma espiritual de Huan Zhong se agitou violentamente. Olhando para trás, para a energia que os perseguia, ele fez um gesto com a mão. Sua presença imponente se espalhou. Nos braços dele, Kong Hou não conseguia suportar aquela aura tão avassaladora e quase cuspiu sangue.
"Aquilo é... a verdadeira força de Huan Zhong?"
O rosto de Huan Zhong permanecia calmo, mas seus órgãos estavam em completo caos. Ele lançou vários golpes para trás, segurou Kong Hou com um braço e acelerou ainda mais. Assim que saíram do olho da formação, lançou oito talismãs em oito direções diferentes para controlar o núcleo e impedir sua expansão.
Tirou um manto de seu anel de armazenamento e o envolveu ao redor de Kong Hou. Por fim, incapaz de suportar mais, vomitou sangue e caiu do céu com ela nos braços.
No instante final antes da queda, envolveu Kong Hou com firmeza em seus braços.
Bum.
Os dois colidiram violentamente com o chão.
Huan Zhong estava deitado de costas no chão, sem nenhuma compostura. Nunca estivera tão desleixado e envergonhado quanto naquele dia.
Lin Hu, que ele havia chutado para o chão, levantou-se apoiando-se na espada e caminhou lentamente em direção ao par.
— Huan Zhong. — Kong Hou ergueu a cabeça e levantou a espada Rugido do Dragão em suas mãos. O sangue no canto de seus lábios ainda estava fresco. Seus olhos estavam brilhantes. — Recuperei a espada Rugido do Dragão pra você.
Ela tocou casualmente os próprios lábios com o dorso da mão. O sangue se espalhou pelo rosto, tornando-o feio e sujo.
Claro que Huan Zhong não estava em situação muito melhor. Ele, que normalmente vestia branco, agora tinha as vestes manchadas de sangue e lama do chão. Sua coroa branca havia sumido, os cabelos espalhados no chão sujo, mas ainda assim lisos e macios.
Ele olhou para a jovem sorrindo para ele com o rosto coberto de sangue. Estendeu os braços e a abraçou com força.
Naquele momento, o calor e a sinceridade que sentia em seus braços pareciam eternos.
Sentindo o leve aroma medicinal no corpo de Huan Zhong, Kong Hou teve a impressão de ouvir as batidas do coração dele. O tecido da roupa era muito macio, mas o rosto dela começou a esquentar e coçar. Ela quis cobri-lo com as mãos.
— Huan Zhong, tá fazendo charme pra mim de novo?
— Uhum.
O queixo de Huan Zhong estava apoiado no topo da cabeça dela. Kong Hou não conseguia ver sua expressão e só ouviu Huan Zhong dizer:
— Estou com ferimentos internos; é desconfortável.
Kong Hou não ousou se mexer e permaneceu nos braços de Huan Zhong. Disse, confusa:
— Mas você não fica mais desconfortável comigo em cima de você? Suas tentativas de fazer charme são bem básicas. Essa posição é toda torta, deve estar se sentindo péssimo.
Depois de um breve silêncio, Huan Zhong respondeu, desanimado:
— Não.
Kong Hou pensou por um instante.
— É verdade, sou bem mais leve que a espada Rugido do Dragão.
A espada Rugido do Dragão, esquecida no chão, emitiu um leve zumbido. Kong Hou olhou para a espada empoeirada no chão e achou aquilo divertido. Riu alto.
Huan Zhong afrouxou os braços que a envolviam e deu tapinhas suaves em suas costas.
Lin Hu parou de andar. Viu a jovem deitada sobre o peito do homem, rindo, e o homem acariciando suas costas em silêncio. Aquele chão estava imundo, mas eles faziam parecer um campo florido.
— Do que está rindo?
— Não sei, só achei engraçado. — Ela falava enquanto ria. Virou-se e imitou Huan Zhong, deitando-se no chão e olhando para o céu, onde a Formação do Definhamento de Dez Mil Ossos estava temporariamente selada.
Talvez estivesse feliz por ter recuperado a espada Rugido do Dragão, ou por Huan Zhong ter surgido da escuridão quando ela não tinha mais forças, ou...
Kong Hou olhou para Huan Zhong. Ele também a olhava. Seus olhares se encontraram, e ambos sorriram.
Nunca havia visto Huan Zhong tão desleixado. Deveria agradecê-lo ou sentir culpa, mas tudo o que sentia era que aquilo era engraçado. A lama em seus corpos era engraçada. O cabelo solto era engraçado. Abraçá-la e fazer charme era… adorável e engraçado.
O vento soprou e a areia bateu em seus rostos.
Kong Hou tirou duas pílulas de condensação de energia do anel de armazenamento e deu uma para Huan Zhong e outra para si mesma. A energia espiritual começou a se recuperar lentamente.
— Huan Zhong, agora há pouco, eu vi uma formação menor dentro do núcleo da formação.
Uma formação dentro de outra, usando uma para nutrir a outra — isso era uma técnica perversa. O criador da formação claramente não queria que ninguém perto do núcleo sobrevivesse. Ela só havia sobrevivido porque lançou uma grande quantidade de talismãs. Depois, se Huan Zhong não tivesse aparecido para ajudá-la, ela não teria conseguido sair de lá.
Felizmente, teve coragem de se aproximar do núcleo e descobriu isso. Caso contrário, se tivessem usado montanhas e rios para derrotar a formação, apenas a parte externa seria desfeita, enquanto a interna poderia ser ativada. Ela nem queria imaginar quais seriam as consequências.
— Que tipo de formação era? — Huan Zhong perguntou.
— Não sei — respondeu Kong Hou. — Mas lembro o formato geral dela. Vou desenhar pra você depois.
— Está bem. — Os dois se entreolharam em silêncio, sem dizer mais nada.
Lin Hu não aguentou e se aproximou dos dois.
— Já se deitaram no chão o suficiente? Todo mundo está olhando.
Kong Hou se sentou e viu várias pessoas próximas. No entanto, elas não pareciam estar ali para bisbilhotar, mas sim eufóricas. Levantou-se, segurando o manto contra o corpo e se escondeu atrás de Huan Zhong.
Seu estado sujo e empoeirado não era apropriado para ser visto por outros.
— Imortais! — O governador provincial surgiu no meio da multidão, com as roupas todas amassadas. Ele se curvou primeiro para o garoto que segurava um bebê e depois para Kong Hou e os outros. — Imortais, os senhores têm onde ficar? Se não se importarem, podem se hospedar por alguns dias na Residência do Governador Provincial.
Desde o início da praga até agora, ele era o terceiro governador — os outros dois haviam morrido por causa da praga. Ele olhou para o menino com o bebê no colo. Aquele jovem era filho do primeiro governador provincial. Há duas semanas, o antigo governador e sua esposa haviam falecido em sucessão. O jovem permaneceu sozinho naquele quarto com o bebê recém-nascido. O governador quis levar os dois para morar com ele, mas o jovem só respondia pela porta e nunca mostrava o rosto.
Imaginando que o menino tinha medo de contrair a praga ao se encontrar com outras pessoas, ele não insistiu e apenas enviava comida para os irmãos a cada poucos dias.
— Não há necessidade. — Huan Zhong voltou a ser o frio e reservado cultivador da espada diante dos outros. — Quando a praga for resolvida, partiremos.
O governador não insistiu, temendo desagradar o imortal.
A multidão se agitou. Alguns riam, outros choravam de alívio. Uma mulher segurando uma criança de dois anos olhou timidamente para Kong Hou.
— Imortal… você é a Princesa Kong Hou? —
Sua dor, suas súplicas — a Imortal Kong Hou as ouvira e descera para salvá-los?
Capítulo 92: Sem Carma com o Buda
Kong Hou queria dizer que não era. Assim, poderia escapar furtivamente depois que o problema fosse resolvido. Mas os olhos da mulher eram brilhantes demais, como uma mariposa que via o fogo e se agarrava ao último fio de esperança. Kong Hou pensou que, se balançasse a cabeça, isso seria a gota d’água.
Ela suspirou e assentiu.
— Sou eu.
— É Sua Alteza, é a Imortal Kong Hou. Ela veio nos salvar! — alguém gritou no meio da multidão. O grito foi como uma fagulha incendiando lenha seca. As pessoas entorpecidas e apáticas começaram a despertar.
— A Imortal veio nos salvar?
— Nós... estamos salvos?
Um homem corpulento gritou e chorou ao correr para casa e abraçar seus filhos. Depois de tanta espera e esperança, a Imortal Kong Hou finalmente ouvira suas preces e viera do céu para salvá-los.
Olhando para as pessoas que riam e choravam, Huan Zhong percebeu que a energia demoníaca no céu havia diminuído ligeiramente. Embora mínima, ele podia sentir claramente com seu nível de cultivo.
Esses mortais estavam envoltos no terror da morte e do ódio. Por que tinham tanta força quando recebiam um fio de esperança? Os mortais eram tão teimosos que conseguiam sobreviver se tivessem esperança?
A Formação do Definhamento dos Dez Mil Ossos usava a raiva e o descontentamento dos humanos, com as montanhas e rios como base estrutural. Uma formação assim não podia ser destruída. Se fosse há dez anos...
Huan Zhong abaixou o olhar. No passado, achava que não importava se sua plataforma espiritual se recuperaria. Mas Kong Hou tinha tantos anos pela frente — e ele?
— Huan Zhong — Kong Hou agarrou a manga dele. — Vou desenhar a formação menor no olho da formação para você.
— Está bem. — Diante de Kong Hou, que confiava completamente nele, os traços de Huan Zhong suavizaram imediatamente.
Como uma iniciante que acabara de aprender sobre formações, o talento de Kong Hou era sua excelente memória. Ela tinha esse dom desde sempre. Aprendia mais rápido do que os outros e conseguia recitar metade dos livros que o mestre ensinava logo na primeira vez.
Logo desenhou uma formação simples no papel e a entregou a Huan Zhong.
— O que é isso?
— Formação de Armazenamento de Almas — a expressão de Huan Zhong se tornou sombria. Aqueles cultivadores malignos não queriam apenas usar o ódio humano — eles também reuniam as almas e pretendiam usá-las para criar talismãs?
Os humanos só podiam reencarnar se tivessem alma. Se suas almas fossem levadas e forjadas em armas malignas, nunca poderiam reencarnar.
Kong Hou havia deduzido as intenções gerais daqueles cultivadores malignos. Sentiu o peito se apertar e cuspiu mais uma golfada de sangue devido aos ferimentos internos.
Uma energia espiritual quente e reconfortante percorreu a energia sufocante dentro de seu peito. Uma mão quente foi colocada em suas costas como o apoio mais firme.
— Limpe. — Huan Zhong lhe entregou um lenço. Kong Hou pegou o lenço da mão de Huan Zhong e limpou a boca. Virou-se e viu que as pessoas ainda estavam paradas à distância, sem ir embora.
Kong Hou limpou os cantos da boca. Huan Zhong suspirou, pegou o lenço dela e se aproximou para limpar seu rosto. No instante em que o lenço chegou à mão de Huan Zhong, pareceu se tornar úmido e refrescante. Seus movimentos eram gentis. Kong Hou sentiu o rosto fresco e um pouco coçando.
Ela desviou o rosto, e Huan Zhong disse com um sorriso:
— Não se mexa.
— Oh. — Kong Hou estufou as bochechas e virou o rosto na direção de Huan Zhong para facilitar a limpeza.
Pela sua aparência obediente, não dava para perceber que ela tinha tido coragem de entrar sozinha na formação para resgatar o Rugido do Dragão e ainda o havia usado. A espada da alma de um cultivador de espada pertencia apenas a ele. Mesmo a espada mais poderosa virava uma faca de cozinha nas mãos de outro. Ele havia visto a sombra do dragão dourado dentro da formação — isso significava que Kong Hou não apenas empunhara a espada, como também usara seu poder. Uma espada com consciência não deveria permitir algo assim.
— Lin Hu — depois de limpar o rosto de Kong Hou, Huan Zhong disse: — Me dê a Folha Dourada do Buda que o Mestre Fatan me presenteou.
— Mestre, qual é sua intenção? — Lin Hu estava confuso. Eles não iam destruir a formação? Por que estavam começando a chamar monges?
— Para uma travessia pacífica — Huan Zhong olhou para o céu cheio de energia negra e disse, sem expressão: — Os mortos têm descontentamento e raiva. E se tudo isso for embora?
— Os poderes budistas do Mestre Fatan são imensuráveis e ele pode ajudar as almas a atravessar. Mas as cidades afetadas pelas formações não estão só nesta região. Temo que ele não consiga cuidar de todas — disse Lin Hu.
— Você pode convidar mais pessoas.
Lin Hu hesitou por um momento.
— Está bem.
No Templo da Paz Silenciosa, no Mundo Lingyou.
Embora o Templo da Paz Silenciosa fosse uma das dez principais seitas do Mundo Lingyou, raramente participava dos assuntos do mundo. Apesar de esses monges sempre falarem sobre guardiões irados ao lado do Buda, os cultivadores do Mundo Lingyou, nos últimos dois séculos, nunca os tinham visto levantar a mão contra alguém.
O Templo da Paz Silenciosa era sereno, assim como seu nome — afastado do mundo, pacífico e sem preocupações.
O grito de uma garça celestial ressoou pelo céu. Alguns monges levantaram a cabeça com curiosidade. Por que uma garça celestial havia vindo até aqui? Aqueles que cultivavam o Dao gostavam de garças, mas os cultivadores budistas como eles não as consideravam sagradas.
A garça celestial descreveu um arco no céu e pousou no pátio do abade.
Fatan, que meditava, ouviu o bater das asas da garça celestial. Abriu os olhos e a palma da mão. Uma folha budista dourada pousou em sua mão. Nos últimos quinhentos anos, ele havia presenteado cinco folhas de Buda douradas. As outras quatro já haviam retornado a ele há tempos.
Achava que esta jamais seria usada, mas no fim, ainda assim retornou.
— Muito bem. — Ele ajustou suas vestes de monge, pegou suas contas e o cajado. Disse ao discípulo do lado de fora: — Chame os discípulos da geração Profunda para me acompanharem.
— Sim.
No mundo mortal, o mestre da formação dos cultivadores malignos se escondia nas sombras e percebeu que o poder da Formação do Definhamento dos Dez Mil Ossos havia enfraquecido levemente. Franziu a testa.
— O que aconteceu?
— Sábio, o imperador do mundo mortal convidou um cultivador — disse o cultivador maligno que tinha ido buscar informações. — Deve ser aquele cultivador.
— Um cultivador? — O mestre da formação ficou um pouco confuso. — Esses cultivadores ortodoxos se importam com as leis do mundo; não interferem tão facilmente nos assuntos mortais. Além disso, antes de eu vir, vocês disseram que não havia cultivadores ortodoxos estacionados neste mundo. Como um cultivador conseguiu chegar tão rápido?
— Dizem que uma princesa da dinastia anterior deste mundo se juntou à Seita Nuvem Esplêndida. Provavelmente não suportou ver o povo sofrendo e veio em segredo do Mundo Lingyou. — O cultivador maligno não esperava que uma princesa da antiga dinastia que cultivava retornasse. Disse em voz baixa: — Essa princesa passou apenas sete anos no Mundo Lingyou. Seu cultivo não é alto, e ela é tola ao pensar que pode derrotar a formação do Sábio.
— Superestima suas capacidades — o mestre da formação zombou. — Uma princesinha que nada entende. Já que quer se intrometer, pode morrer junto com essas pessoas. Assim, não estará sozinha no submundo.
— Faltam quantas para alcançar cem mil almas furiosas?
— Duas mil.
— Em breve. — O mestre da formação ergueu os olhos para o céu com desdém. — Quero ver a aparência patética desses cultivadores de seitas renomadas diante deste talismã.
A notícia de que a Princesa Kong Hou havia descido dos céus para salvar o povo se espalhou rapidamente pelas cidades vizinhas. As pessoas choravam e se abraçavam, murmurando que estavam salvas.
Aos olhos delas, os seres divinos eram onipotentes.
No entanto, a imortal que achavam onipotente estava sentada nas nuvens com uma expressão de incredulidade.
— Então eu estava com o rosto todo sujo quando apareci diante de tanta gente? — Kong Hou segurava um espelho e se olhava por um bom tempo. Huan Zhong tinha ajudado a limpar seu rosto, mas, ao pensar que se mostrara assim sem perceber, sentia-se desanimada.
Ela não queria que, dali a alguns séculos, o mundo mortal se lembrasse dela como uma “imortal” com marcas vermelhas no rosto.
— Não faz mal. Quando derrotarmos a formação, você pode se vestir lindamente e partir diante deles — Huan Zhong riu. Jovens moças eram todas vaidosas. Mas mesmo sendo vaidosa, Kong Hou era adorável.
— Só pode ser isso mesmo. — A formação ainda não havia sido destruída, mas Kong Hou já pensava em qual roupa usar e que penteado fazer ao partir, para que, séculos depois, quando o povo do mundo mortal falasse dela, elogiassem também sua beleza.
Huan Zhong sorriu e então olhou para o oeste. Levantou-se das nuvens.
— Eles chegaram.
— Quem chegou? — Kong Hou também se levantou. Não via ninguém.
Logo, uma fileira de nuvens brilhantes apareceu no céu ocidental. Vários monges de cabeça raspada surgiram sobre plataformas de lótus. O monge à frente tinha uma expressão benevolente, usava uma túnica azul simples, mas seu cajado cintilava com uma luz intensa, como se estivesse pronto para enfrentar qualquer um que ousasse se aproximar.
— Zhong...
— Mestre Fatan, venho sob as ordens de meu mestre Huan Zhong. Agradeço por ter feito essa viagem — disse Lin Hu, surgindo diante de Fatan com as palmas juntas. — Por favor.
— Por favor. — Fatan sorriu e caminhou pelo ar até Huan Zhong. — Faz muitos anos que não vejo o Jovem Amigo. Será que mudou de ideia?
Kong Hou olhou para as cabeças brilhantes dos monges e, confusa, voltou-se para Huan Zhong. Que mudança de ideia?
— Agradeço a atenção do Mestre. Este aqui sente que a Seita Radiante é muito boa — respondeu Huan Zhong, sem alterar a expressão.
— Que pena, que pena. — Fatan balançou a cabeça e suspirou. — O Jovem Amigo tem grande inteligência e forte karma com o Buda. Por que precisa ser um cultivador da espada, de lutas e mortes?
Kong Hou ficou boquiaberta. Não esperava que esse monge de aparência tão benevolente ousasse tentar roubar alguém da Seita Radiante.
— Meu Buda é benevolente. Este Jovem Amigo tem uma boa aparência — disse Fatan, fazendo uma reverência a Kong Hou.
Kong Hou rapidamente retribuiu a reverência.
— O Mestre é muito gentil com suas palavras.
— Este pobre monge não diz falsidades. Vejo que o Jovem Amigo tem feições puras e um rosto compassivo. Que tal entrar para minha seita budista e tornar-se uma guanyin? — Fatan não esperava encontrar ali mais uma candidata promissora à cultivação budista. — O que o Jovem Amigo acha?
Kong Hou: "..."
"Será que os cultivadores budistas do Mundo Lingyou estão em situação tão difícil? Por que estão tentando roubar gente de todas as seitas?"
— Agradeço, Mestre. Mas esta júnior já se juntou à Seita Nuvem Esplêndida e não deseja trair sua seita nesta vida. Peço que me perdoe.
Ela não queria se tornar monja. Só de pensar em raspar a cabeça, já descartava completamente a ideia.
— Então este pobre monge só poderá perguntar da próxima vez. — Fatan sentou-se e lançou o cajado ao ar. Todo o céu se iluminou.
Os outros discípulos sentaram-se ao redor para protegê-lo.
Kong Hou não acreditava no Buda. Mas no instante em que o Mestre Fatan começou a entoar cânticos, ela sentiu como se o mundo inteiro tivesse se acalmado. O céu tão vasto, a terra tão ampla — "do que eu não poderia abrir mão?"
Ela se virou para olhar Huan Zhong e imediatamente recuperou a clareza.
"O Buda dizia que por trás de toda beleza havia ossos ressecados. Temo que jamais consiga enxergar através disso."
"Está claro que não tenho karma com o Buda."
Capítulo 93: Renascimento
— O que está acontecendo? — O mestre da formação percebeu que o poder das almas iradas estava diminuindo. Empurrou para o lado a bela mulher que lhe servia vinho e foi até o penhasco observar. Viu nuvens auspiciosas se entrelaçando em combate com a névoa negra.
— A antiga princesa do mundo mortal se juntou à Seita Nuvem Esplêndida ou aos cultivadores budistas? — disse ele com ódio. — Aquelas mulas carecas nunca se intrometem. Por que há luzes budistas aqui? — Um cultivador do mundo mortal não ser intimidado no Mundo Lingyou já era sorte suficiente. Como ela conseguiu formar laços com os cultivadores budistas em tão pouco tempo?
Os cultivadores budistas ali não eram pessoas comuns. Pela luz, aquele cultivador budista provavelmente já havia alcançado a iluminação e cultivado sua manifestação.
— Sábio, o que devemos fazer? — O cultivador maligno viu os monges se intrometendo e teve um mau pressentimento.
— O que fazer? — O mestre da formação virou-se para os cultivadores malignos atrás de si. — Esses monges não são cheios de benevolência e compaixão? Vão até a cidade e matem algumas pessoas. Vamos ver se continuam entoando cânticos ou vêm impedi-los.
— Sábio, esses monges...
— O quê, vocês não são especialistas do mundo maligno? Têm medo dessas mulas carecas? — O mestre da formação sorriu com desdém. — Ou só têm coragem de enfrentar outros cultivadores malignos?
— Nós, humildes servos, compreendemos. — O cultivador maligno que falou sabia que o sábio era volúvel e imprevisível. Temia que, se demorasse, morreria pelas mãos dele antes mesmo de ser morto pelos monges.
— Ótimo. — O mestre da formação finalmente sorriu. — Estou velho agora, gosto de juniores obedientes. — Ele se virou e viu um dos cultivadores malignos parado, imóvel, e suspirou. — Filho, está com medo?
— Sábio, perdoe-me. — O cultivador maligno sacudiu a cabeça, apavorado. — Sábio, por favor, perdoe-me...
— Não tenha medo. Sou uma pessoa que se importa com a próxima geração. — O mestre da formação sorriu, usou energia espiritual para agarrar o cultivador e puxá-lo para perto. Então apertou os dedos e quebrou o pescoço do outro.
— Assim, você nunca mais precisará ter medo. — Ele tirou um lenço e limpou os dedos, depois se voltou gentilmente para os demais. — Por que ainda não se mexeram?
Assim que terminou de falar, os outros cultivadores malignos voaram do penhasco em direção à cidade.
O sorriso do mestre da formação desapareceu. Ele deu um chute no cadáver ao lado e o lançou penhasco abaixo.
— Lixo.
A cultivadora maligna que lhe servia tremeu inteira de medo. Ele lançou um olhar para ela, ajeitou o cabelo e então desapareceu no céu como um risco de luz branca.
— Os mortos renascem, os seis caminhos da reencarnação...
Fatan abriu os olhos e olhou, com uma carranca, em direção aos portões da cidade.
— Mestre, por favor, continue. Deixe o restante comigo. — Huan Zhong segurou a espada Rugido do Dragão e saltou das nuvens. Ao ver os cultivadores malignos voando em direção à cidade, brandiu sua espada. A energia da espada cortou as gargantas dos primeiros que se aproximaram, e eles caíram.
— Por que há cultivadores da espada aqui? — Os cultivadores malignos restantes, ao verem que vários companheiros foram mortos num piscar de olhos, pararam e se agruparam, aterrorizados diante dos portões.
Os portões fechados da cidade se abriram, e um homem de vestes brancas saiu calmamente.
— Cultivador da espada!
— Não, é o Mestre Espiritual Zhong Xi! — O cultivador maligno de maior nível suou frio. Um século antes, seu mestre havia morrido pela espada desse homem. Sua lâmina era impiedosa — e ele, ainda mais. Por que esse cultivador, que deveria estar na Seita Radiante, havia aparecido no mundo mortal?
— Fujam. — Quem poderia enfrentá-lo? O homem lançou um sinal no ar, na esperança de que o mestre da formação viesse salvá-los.
— Já que vieram, por que querem ir embora? — Os portões da cidade exalavam um fedor pútrido, e corpos ainda não cremados jaziam em valas próximas. A espada Rugido do Dragão brilhava com uma luz dourada ofuscante na mão de Huan Zhong. Com olhos frios, ele voou para bloquear o caminho dos cultivadores malignos.
— Zhong Xi, somos muitos... não temos medo de você... — disse o líder, com a voz trêmula. Segurava seu talismã com força e gritava para os outros enfrentarem Huan Zhong enquanto tentava encontrar uma brecha para fugir.
Esses cultivadores malignos, que normalmente se pavoneavam por aí, caíam facilmente diante da espada de Huan Zhong. O solo aos pés deles ficou tingido de sangue.
O líder virou-se para fugir. Mas antes que pudesse ir longe, ouviu um sopro de vento junto ao ouvido. Seu braço esquerdo foi decepado e ele caiu dentro da vala de cadáveres.
— Mestre Espiritual Zhong Xi, como um cultivador da espada do Mundo Lingyou, está se metendo demais. — O cultivador olhava constantemente para as montanhas, esperando que o mestre da formação aparecesse. — Esses mortais têm vidas curtas. Por que se importa tanto com isso? Não teme trazer problemas para si?
Huan Zhong o chutou de volta para a vala e olhou para baixo.
— Cada pessoa nesta cova era inocente e morreu com rancor. A partir de hoje, sua alma vai vigiar este lugar até que todos tenham reencarnado. Só então você poderá partir.
— Não, não, não... — O cultivador maligno sacudiu a cabeça, virou-se e tentou escalar o monte de cadáveres. Um feixe de energia de espada passou por ele. Caiu ao lado das pessoas que havia matado, com os olhos arregalados. O mestre da formação que tanto esperava ainda não havia aparecido.
Huan Zhong estendeu a mão no ar e capturou uma sombra azul. Mordeu o dedo e desenhou alguns selos sobre a alma antes de jogá-la de volta à vala comum.
— Enquanto as almas iradas daqui não se dissiparem, você jamais terá permissão para partir.
Ele acenou com a mão e queimou todos os corpos no poço. Huan Zhong guardou a espada Rugido do Dragão, olhou para as chamas ardentes e então voou na direção para a qual o cultivador maligno estivera olhando.
No penhasco, onde o palácio e a mesa ainda não haviam sido limpos, uma bela cultivadora estava ajoelhada ao lado da mesa de jade. Ela ergueu a cabeça e viu Huan Zhong pousar repentinamente. Ao ver a espada Rugido do Dragão em sua mão, encolheu-se de medo. Então puxou a roupa para baixo, revelando os ombros brancos, e correu em direção a Huan Zhong com lágrimas escorrendo.
— Transcendente, salve-me.
— Fique onde está. — A espada Rugido do Dragão saiu da bainha. Huan Zhong olhou friamente para a cultivadora e a examinou da cabeça aos pés. — Onde ele está?
— Transcendente, está falando do vilão que me sequestrou? — A cultivadora apertou os lábios vermelhos de forma sedutora. — Talvez ele tenha sentido a presença de Vossa Senhoria, se assustado e fugido.
Ela pensava: "De qual seita esse transcendente veio? É tão bonito… Provavelmente ninguém mais no mundo consegue usar túnicas brancas e parecer tão tentador."
— Felizmente o Transcendente chegou, caso contrário esta serva…
Antes que terminasse de falar, a espada já havia perfurado sua plataforma espiritual. Ela se curvou, cobrindo o abdômen, os olhos arregalados em incredulidade. Ela até usara sua arte de sedução. Mesmo assim, em uma situação como aquela, um homem sentiria desejo… de matá-la?
— Isso não é possível… — Mesmo antes de morrer, a cultivadora não conseguia acreditar na verdade.
"Definitivamente não é um homem…"
Huan Zhong não lançou nenhum olhar à mulher caída no chão e continuou avançando. Aqueles cultivadores malignos estavam tomados por energia demoníaca por completo. Ele não sabia quantos já haviam matado. Nunca desperdiçava palavras com gente como aquela. Permitir que vivessem um segundo a mais neste mundo era uma crueldade para com aqueles que haviam morrido por suas mãos.
Tudo que ela vestia era do Mundo Lingyou, mas ela mesma — e o som que criava — não eram.
As pessoas na cidade observavam enquanto Kong Hou pulava na formação repleta de almas furiosas. Algumas viam ali seus familiares, outras viam seus amigos — e também o número crescente de ferimentos no corpo da Princesa Kong Hou.
O silêncio caiu sobre todos.
— Está chovendo…
Pingos de chuva começaram a cair — não uma chuva amarga, mas uma chuva doce.
À medida que a chuva descia, as almas furiosas e gritando dentro da formação se acalmavam. Suas roupas rasgadas iam, aos poucos, se tornando inteiras e brilhantes novamente. Seus ferimentos também começavam a se curar.
A música não parava. A chuva continuava.
A chuva encharcou os cabelos de Huan Zhong e escorria por seu queixo. Ele olhava fixamente para a jovem dentro da formação, os cílios longos molhados.
— Amitabha. — Fatan abriu lentamente os olhos. — Uma boa canção para acalmar almas. Este velho monge não ouvia algo tão belo há muitos anos.
— Mestre, isso é… uma Canção de Renascimento Pacífico? — o discípulo Xuan Wu perguntou. — Essa senhorita Kong Hou tem apenas cultivo de Ativação Mental — como pode tocar uma canção tão poderosa?
— A benevolência não distingue entre velho e jovem, assim como não distingue cultivo. — Fatan juntou as mãos e recitou o nome de Buda. — Se essa jovem se juntasse à nossa seita budista, sua compreensão superaria a de todos vocês. Uma pena…
A canção cessou. As mãos de Kong Hou estavam cobertas de sangue. Ela abriu os olhos e viu as almas dentro da formação se transformarem em pontos de luz, voando em direção ao caminho do renascimento.
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Nota da tradutora: Huan Zhong é famoso demais. Ele precisa se disfarçar como outro tipo de cultivador. Caso contrário, todos vão acabar ligando “poderoso cultivador da espada” com “Zhong Xi”.
Capítulo 94: Custo
Os espíritos irados se transformaram em luz branca e voaram para fora da Formação de Armazenamento de Almas, cruzando para o outro lado. Kong Hou mal conseguia se manter sentada, apoiando-se na Fênix Encarnada. Não ouvia mais som algum; sua visão estava tão turva que ela só enxergava sombras. Cada parte de seu corpo doía. Se fechasse os olhos, cairia no sono.
Atordoada, viu uma mulher gentil sair do meio das inúmeras almas furiosas. Ela se curvou diante de Kong Hou, dizendo algo, mas Kong Hou não conseguiu entender. Abriu os olhos, querendo ver o movimento dos lábios da mulher. A mulher sorriu para ela, transformando-se em um feixe de luz e desaparecendo.
Depois dessa mulher, inúmeras almas se curvaram para ela — camponeses, lavradoras, estudiosos refinados, damas elegantes. Kong Hou esfregou os olhos, frustrada por sua visão estar tão embaçada.
Uma criança de três ou quatro anos correu até ela, os olhos sem entender o que era a vida ou a morte antes de se tornar uma alma penada. Kong Hou tossiu e engoliu o sangue doce que subia à boca. Temia assustar a criança.
A criança abriu os braços e Kong Hou se abaixou para pegá-la e colocá-la no colo. Não tinha forças para se levantar, então permaneceu sentada na lama, economizando energia.
Ouviu a voz da criança. Ela estava rindo. Seus olhos grandes não tinham medo nem tristeza, apenas uma felicidade pura.
Kong Hou observou enquanto a criança desaparecia em seus braços, transformando-se em luz e voando. Ela ergueu os olhos para o céu chuvoso.
— Que você não conheça dificuldades na próxima vida, e tenha uma existência tranquila.
Suas vestes estavam destruídas e cobertas de lama. Kong Hou se esforçou para se erguer do chão. Sua cabeça zumbia, os ouvidos e o nariz coçavam. Quis esfregar o nariz, mas ao ver a mão coberta de sangue, desistiu.
Alguém parecia estar chamando seu nome. Kong Hou, com dores por todo o corpo, virou-se lentamente e viu Huan Zhong correndo em sua direção, o rosto bonito e impecável tomado de terror. Ela franziu o cenho, confusa. O que havia de errado com Huan Zhong? Ela não tinha derrotado a formação?
Quis falar, mas ao abrir a boca, apenas vomitou sangue. Era como se seu estômago estivesse cheio de sangue sem fim. Tapou a boca, a visão ficando ainda mais turva. O mundo inteiro parecia silenciar.
— Kong Hou! — Quando alguém é tomado pelo pavor, esquece todas as habilidades e age apenas com o instinto. Huan Zhong esqueceu que era um cultivador, esqueceu de tudo. Correu até Kong Hou e a amparou enquanto ela desmaiava.
O sangue escorria do nariz, dos ouvidos e até dos olhos de Kong Hou. As mãos de Huan Zhong tremiam ao segurá-la e canalizar energia espiritual para seu corpo.
A chuva encharcava seus cabelos, a lama sujava seus sapatos. Ele, que sempre parecia intocado pela poeira do mundo, não se importava com isso. Toda sua atenção estava na pessoa em seus braços.
— Acorde, Kong Hou, acorde. — Huan Zhong tirou um frasco de pílulas de energia vital. A mão trêmula, tentou levá-las à boca de Kong Hou. Metade das pílulas caiu na lama antes mesmo de alcançar seus lábios.
As pílulas de energia vital não se dissolviam sozinhas. Huan Zhong colocou-as na própria boca e se curvou para passá-las a Kong Hou.
— Amitabha. — Fatan, descendo das nuvens, viu a cena e parou. Virou-se para Lin Hu. — Mestre Lin, este velho monge conhece um pouco de medicina.
O homem que segurava a jovem na chuva não chorava, nem fazia barulho, mas todos podiam sentir seu pânico e sua dor. Fatan era um cultivador budista, alguém que não compreendia o amor romântico — mas já havia testemunhado muitos amores e separações causadas pela morte.
Pensou que, no próximo século, não conseguiria persuadir esses dois a entrarem para a seita budista.
Duas pílulas de energia vital haviam sido administradas a Kong Hou, mas ela não reagia. Huan Zhong colocou a mão sobre o meridiano da vida dela e se preparou para enviar mais energia espiritual.
— Mestre. — Lin Hu aproximou-se, abrindo um guarda-chuva para protegê-los da chuva. — Não se desespere. Vamos pedir ao Mestre Fatan que examine a senhorita Kong Hou.
Huan Zhong piscou, a chuva escorrendo de seus cílios. Curvou-se e pegou Kong Hou nos braços, sem se importar com a sujeira. Com um salto, voou até Fatan.
— Mestre…
Fatan não precisou que dissesse nada. Estendeu a mão e tomou o pulso de Kong Hou. Os discípulos atrás dele viram o estado em que ela se encontrava e se comoveram.
Sangue escorria de todos os orifícios, os dedos estavam feridos até o osso. Havia incontáveis feridas minúsculas por todo o corpo — não restava uma única parte intacta. Aquela jovem que haviam visto antes agora era uma pessoa feita de sangue.
O Buda se sacrificara para alimentar a águia. Esta senhorita Kong Hou sacrificou-se para salvar o povo. Isso era uma grande benevolência e uma grande virtude. Não era à toa que o Mestre dissera que ela era mais próxima do Buda do que eles próprios.
Fatan suspirou, retirou a mão e disse:
— A senhorita Kong Hou abusou da energia espiritual e foi atacada pela energia demoníaca da Formação de Armazenamento de Almas. Os órgãos internos estão gravemente feridos. Se fosse qualquer outro, eu temeria pelo pior…
Ajudar tantas almas furiosas a cruzar com apenas o cultivo de Ativação Mental era, sem dúvida, apostar a própria vida. Mas, felizmente, Kong Hou era deste mundo e carregava consigo o poder da fé de seu povo. Esse tipo de fé era quase inútil para cultivadores, mas, neste momento, foi o que salvou sua vida.
O budismo se baseia em causa e efeito. O povo deste mundo e a senhorita Kong Hou tinham uma causa em comum, e geraram um bom efeito.
— Não se preocupe. A vida da senhorita Kong Hou não está em perigo. — Fatan viu Huan Zhong olhando fixamente para ela. — Basta levá-la a um lugar tranquilo para repousar por alguns dias. No entanto, seus meridianos estão em caos — ela não poderá suportar a passagem entre os dois mundos.
— Imortais, Bodhisattvas… — O governador da província criou coragem e se aproximou. — Este humilde servidor limpou uma residência. Por favor, aceitem o convite para descansarem nesse modesto local. — Ele olhou com preocupação para Kong Hou nos braços de Huan Zhong, mas não se atreveu a encará-la por muito tempo diante de tantos imortais.
Embora não compreendessem exatamente o que a Princesa Kong Hou havia feito, depois que ela tocou a canção e a chuva caiu dos céus, os infectados começaram a apresentar melhoras. Eles sabiam que ela os havia salvado.
E ao verem a princesa sendo carregada, coberta de sangue, começaram a entender — até mesmo os imortais pagavam um preço para salvar os mortais. Para eles, a Princesa Kong Hou era verdadeiramente “uma deles”.
Sentiram-se reconfortados ao ver os outros imortais preocupados com a saúde da princesa.
—Não há necessidade — recusou Huan Zhong o convite do governador provincial. — Conheço um lugar mais tranquilo.
O governador provincial hesitou, reuniu coragem e disse:
— Mas…
Huan Zhong o ignorou e alçou voo, desaparecendo no céu.
O governador olhou ainda mais preocupado. Para onde o imortal estava levando a Princesa Kong Hou?
— A praga aqui foi derrotada. Você deve se concentrar em reconstruir seu lar — disse Lin Hu, olhando para a multidão e fixando o olhar no garoto que segurava o bebê. — Aquelas duas crianças têm laços antigos com a Celestial Kong Hou. Por favor, Oficial, cuide delas até que cresçam.
— Imortal, não se preocupe. Depois de tudo isso, eu mesmo as adotarei e cuidarei bem delas — respondeu o governador provincial. Sua esposa havia falecido durante a praga. Se pudesse cuidar daquelas crianças, teria algum consolo no resto da vida.
— Isso é bom — disse Lin Hu, vendo que o governador era um homem leal e não duvidando de suas palavras. Pegou uma caixa de pílulas de ouro e uma caixa de remédios. — Obrigado.
— Isso não posso aceitar — recusou o governador ao ver a caixa cheia de ouro. — Estou disposto a cuidar dessas crianças, mas não posso aceitar um presente do Imortal.
— Este é o presente de boas-vindas que a senhorita Kong Hou está oferecendo aos dois pequenos. Oficial, aceite em nome deles.
O governador não pôde mais recusar e aceitou os presentes.
Fatan permaneceu em silêncio ao lado até Lin Hu terminar de resolver os assuntos. Então disse:
— Mestre Lin, este velho se despede agora. Encontrar-nos-emos novamente no encontro das seitas no próximo ano.
— Agradeço, Mestre, por sua ajuda neste assunto — Lin Hu fez uma reverência profunda. — Quando este e o Mestre retornarem à Cidade Pei, agradeceremos novamente.
— Mestre Lin é muito cortês. O Buda conduziu o povo do mundo; este humilde monge apenas conduz o povo daqui — disse Fatan, juntando as mãos. — Este ato é para salvá-los, e também para salvar a nós mesmos.
Lin Hu retribuiu a reverência. Quando ergueu a cabeça novamente, os monges do Templo da Paz Silenciosa já haviam partido pelos céus.
— Vossa Majestade! Vossa Majestade! — Um eunuco correu desesperado para dentro do salão e se ajoelhou diante do Imperador Jinghong. — Agora há pouco, uma luz divina surgiu no céu. Os imortais retornaram!
— Sério? — O Imperador Jinghong largou os relatórios nas mãos. Seu rosto, exausto após muitos dias sem descanso, se iluminou de alegria ao dizer: — Irei visitá-los imediatamente.
Então correu apressado para o palácio interior.
Ao chegar aos portões do palácio, o Imperador Jinghong viu que a imperatriz, o príncipe herdeiro e outros estavam ali, mas inexplicavelmente permaneciam do lado de fora.
— Vossa Majestade — disse a imperatriz ao vê-lo, fazendo uma reverência —, parece haver uma parede invisível aqui; não conseguimos entrar.
O imperador esticou a mão para tocar. De fato, havia uma barreira invisível no ar que os impedia de passar. Tocou mais algumas vezes antes de disfarçar o espanto.
— É um feitiço do imortal.
— Pai-Imperador, o imortal deve ter criado essa barreira para não ser incomodado. Que tal voltarmos mais tarde? — sugeriu o príncipe herdeiro, preocupado com a praga no sudeste, mas sem ousar desagradar os imortais.
— Meu filho é atencioso — disse o imperador, recuando dois passos e fazendo uma reverência na direção do salão principal. — Todos, vamos embora. Organizem para que os servos do palácio fiquem de guarda. Se os imortais tiverem alguma necessidade, satisfaçam-na da melhor forma possível.
Após o imperador e o príncipe herdeiro se retirarem, a imperatriz olhou preocupada para os portões do palácio ainda fechados e se virou, saindo em silêncio.
Cinco dias se passaram. Os portões continuavam fechados. Cartas urgentes chegaram das cidades do sudeste anunciando que a praga havia sido derrotada. As pessoas viram luzes divinas no céu e disseram que eram as nuvens protetoras dos deuses.
O Imperador Jinghong pegou o pincel e escreveu uma carta para anunciar ao povo.
O conteúdo era, em suma, que ele não havia sido o responsável pelo feito. A Imortal Kong Hou ouvira falar do desastre e aparecera para salvá-los. O Imperador Jinghong — que superara todos os outros rebeldes para conquistar o trono — superava também todos os bajuladores da dinastia anterior quando se tratava de elogiar alguém.
Na carta ao povo, ele descrevia como a Imortal Kong Hou rompeu a barreira entre imortal e mortal para salvar o povo, pagando um alto preço para expulsar o deus da praga que assolava as pessoas, trazendo paz ao mundo.
Lin Hu leu a carta e ficou com uma expressão estranha. Copiou o conteúdo para levar de volta ao palácio.
— Sinto que este imperador mortal é habilidoso em escrever livros de histórias…
Huan Zhong olhou para Kong Hou, que dormia na cama, e disse sem expressão:
— Pode ir.
Capítulo 95: Ele Não Mentiu Para Você
Kong Hou estava inconsciente havia cinco dias. Huan Zhong usara feitiços para limpar a sujeira dela e das roupas. Sua compleição estava extremamente pálida. Ele ficou sentado ao lado da cama durante todos esses cinco dias, a mente cheia de pensamentos.
Pensava no que Kong Hou poderia conquistar em sua futura cultivação, em quanto tempo poderia acompanhá-la se ela não se recuperasse. Ela já falara do desejo de liberdade que tivera na infância. Ele queria levá-la para conhecer as maravilhas dos mundos.
Pensava em tantas coisas, mas não ousava imaginar se ela não quisesse...
Quando cobriu Kong Hou com um cobertor, percebeu que a fita que dera a ela fora guardada antes de entrar na formação de armazenamento de almas. Será que ela temia que a fita se danificasse? Ou sabia que a fita carregava um fio de sua consciência e não queria arrastá-lo para baixo?
Os dedos ensanguentados dela haviam cicatrizado graças às doses repetidas de remédios todos os dias. As feridas no corpo também curavam-se graças às ervas espirituais que ele lhe dava. Mas ela ainda não despertava.
Segurando a mão de Kong Hou, Huan Zhong canalizou energia espiritual mais uma vez para organizar os meridianos e a plataforma espiritual dela. Lin Hu ficou parado na porta. Vendo a cena, ele recuou para o pátio do lado de fora. O imperador, a imperatriz e o príncipe herdeiro do mundo mortal faziam reverências naquela direção, através dos portões, mas nunca os perturbavam.
Lin Hu pensou que o imperador e a imperatriz do mundo mortal eram mais parecidos com monarcas do que o imperador e a imperatriz do Mundo Lingyou.
Um grou branco voou pelo céu e pousou no pátio. Ele ergueu seu longo pescoço e cantou em direção ao quarto.
A porta se abriu com um som, e Lin Hu se virou para ver o Mestre saindo. Esta era a primeira vez que o Mestre deixava o lado da senhorita Kong Hou em cinco dias. Ao ver o Mestre aparecer, o grou não parou de chamar e pulou para um galho, continuando a chamar em direção ao quarto.
— Está procurando a senhorita Kong Hou? — pensou Lin Hu. Talvez as pessoas que procuravam a senhorita Kong Hou descobriram que os selos de mensagem não podiam ser usados, desconfiaram que ela não estava no Mundo Lingyou e então enviaram o grou.
Huan Zhong tirou uma bolsa de arroz espiritual e alguns peixes espirituais secos para colocar em um prato no chão. O grou viu e pulou para comer.
— Kong Hou ainda está dormindo — disse Huan Zhong ao ver o emblema da Seita da Nuvem Esplêndida na pulseira do pé que o grou usava, e colocou mais peixes espirituais secos no prato.
O grou terminou de comer o arroz e os peixes, curvou o pescoço para puxar com a boca a bolsa de brocado pendurada no pescoço, colocou a bolsa na mão de Huan Zhong e então voou para longe com um grito.
A bolsa de brocado emanava luz e tinha as palavras Pouso da Lua gravadas.
— A senhorita Kong Hou é a última discípula do mestre do pico Pouso da Lua da Seita da Nuvem Esplêndida. Será que algo aconteceu com o Pico Pouso da Lua? — franziu o cenho Lin Hu. Caso contrário, por que o grou teria vindo ao mundo mortal para entregar uma mensagem?
Huan Zhong apertou a bolsa de brocado e não falou nada.
Do lado de fora da porta, a imperatriz e os atendentes do palácio ficaram chocados ao ver o grou entrar e sair voando. Será que Ji Kong Hou tinha ficado tempo demais no mundo mortal e o mundo imortal estava a convocando de volta?
##
Atordoada, Kong Hou ouviu a voz de uma mulher. Às vezes ela chorava, outras vezes cantava uma canção elegante. Mas a música era extremamente estranha, como se fosse antiga.
Ela estava… sendo invadida por um fantasma?
— Alma quebrada, velas vermelhas, lágrimas secas, penso em você ano após ano, mas na ponte do mundo inferior você...
— Quem é você? — Kong Hou olhou para a mulher vestida ricamente que estava sentada perto do lago de lótus. Os edifícios ali pareciam um palácio imperial, mas não aquele em que ela vivera.
A mulher parou de cantar de repente. Olhou para Kong Hou e revelou um rosto belo.
Kong Hou não conseguia descrever a beleza daquele rosto. Era capaz de causar a ruína de uma cidade ou estado. Esse fantasma feminino emanava uma energia raivosa. Ela deu um passo para trás. — Quem é você — por que entrou no meu sonho?
A mulher suspirou. — Apenas uma jovem que não entende nada.
Kong Hou: "..."
Ela sentia que aquela mulher era ainda mais desagradável que Ling Bo, da Seita do Amanhecer Claro.
— Pelo menos você tem alguma beleza nas sobrancelhas — a mulher se levantou. — O palácio é solitário; não falo com ninguém vivo há séculos. Essas mulheres do harém são muito burras e não conseguem sentir minha existência.
— Humanos e fantasmas são diferentes; você não pertence ao mundo dos vivos, portanto não deveria perturbar a paz dos que vivem — Kong Hou sentou-se ao lado dela. — O palácio é protegido pela energia do dragão, então é claro que eles não conseguem sentir você.
— Você sabe que sou um fantasma — a mulher fantasma, lindíssima, caminhava como um lótus florescendo ao vento. Aproximou-se de Kong Hou e disse: — Você… não tem medo de que eu te coma?
Kong Hou riu. Cultivava há pouco tempo, mas não temia um fantasma feminino. Estendeu a mão e afastou o rosto que se aproximava. — Desculpe. Gosto de belas mulheres, mas das macias e quentes.
O rosto do fantasma escureceu. Ela rangeu os dentes e disse: — Que garota de língua afiada. Você acabou de dizer que eu não deveria perturbar a paz dos vivos. Você acha que as pessoas que vivem aqui podem alcançar a paz?
Riu friamente. — Morei neste palácio por muitos anos, vi dinastias caírem, vi o trono mudar de mãos. As pessoas que viveram aqui nunca tiveram paz.
Kong Hou quis dizer que você também não teve paz. Se tivesse, por que insistiria em ficar aqui sem querer partir?
— Garotinha, qual é o seu olhar? — a mulher fantasma parecia adivinhar os pensamentos não ditos de Kong Hou. Levantou as sobrancelhas. — Eu não sou como essas mulheres do harém. Meu rei nunca teve outras mulheres. Naquela época, só havia eu como consorte. Dignidade, virtude, benevolência, nada disso tinha a ver comigo. Os oficiais diziam que eu era uma demônia má, e as mulheres do mundo me odiavam, mas e daí? Meu rei não gostava de outras mulheres.
Ao lembrar de sua antiga glória, o tom da mulher fantasma ficou um pouco orgulhoso. — Uma mulher do harém como você não entenderia.
— Eu não sou uma mulher do harém — Kong Hou abriu as mãos e produziu um bule de chá com duas xícaras. Serviu chá para ela e para o fantasma. — Sou alguém que saiu deste palácio imperial.
A mulher fantasma ficou imóvel. Empurrou a xícara que Kong Hou lhe ofereceu. — Você mente para mim!
Kong Hou sorriu. — Se eu fosse membro deste palácio, como você teria entrado nos meus sonhos?
A mulher fantasma ficou em silêncio. Depois de muito tempo, olhou para a lua no céu e aquietou-se. O vento limpo soprava seu cabelo e também levava um pouco de sua melancolia.
Kong Hou olhou silenciosa para a cena. Aquela realmente era uma mulher bonita, bela quando estava com raiva, bela quando triste. Mesmo sentada em silêncio, era tão bela que ninguém conseguia desviar o olhar.
— Meu rei prometeu ficar comigo e ser enterrado no mesmo túmulo. Prometemos andar juntos pelo caminho para o mundo dos mortos. Eu prometi a ele — a mulher fantasma chorava lágrimas de sangue. — Esperei muito por ele. As flores do caminho para o mundo dos mortos floresceram ano após ano, mas ele não apareceu. Ele não está no túmulo, não está no palácio. Vi a dinastia dele ser destruída, vi o palácio onde morávamos ser queimado e reconstruído. Ele ainda não apareceu.
— Ele mentiu para mim! — a raiva da mulher fantasma explodiu. A lua no céu ficou vermelha como sangue. — Ele mentiu para mim!
Olhando para as feições distorcidas e feias do fantasma, Kong Hou voou e bateu suavemente em sua cabeça para impedir que enlouquecesse. Era uma mulher fantasma que perdera a clareza da mente esperando. Talvez em breve ela perdesse o último resquício de sanidade e se tornasse um fantasma malicioso. No fim, os oficiais fantasmas a levariam embora, e ela se tornaria um dos monstros do rio dos fantasmas malignos, que matam e devoram uns aos outros.
— Ele não mentiu para você — Kong Hou usou energia espiritual para ajudar o fantasma a recuperar sua aparência original. Depois que ela voltou à razão, disse: — Ouvi uma história, de mil e oitocentos anos atrás, sobre o rei da Dinastia Feng Ocidental, Cang Yu, e sua rainha.
— O rei Sang Yu e sua rainha eram profundamente apaixonados. Depois que sua rainha faleceu, o rei Sang Yu ficou em grande sofrimento, implorou aos deuses por toda parte e recebeu um remédio que poderia trazer os mortos de volta à vida. Depois disso, Sang Yu regou o remédio com o sangue de seu coração e usou o sangue de um monarca para criar a Jade Azul Auricular que podia ressuscitar os mortos. Mas a morte é destino. As ações de Sang Yu desobedeceram o caminho celestial e ele foi punido pelos céus. Sua esposa não voltou à vida, e ele também foi morto, sua alma destruída.
— Você é a rainha do rei Sang Yu — Kong Hou sentiu um desconforto profundo. Nem sequer ousou olhar para a expressão do fantasma. — Ele não quis mentir para você, só que não conseguiu cumprir a promessa.
A mulher fantasma olhou para ela atordoada. — Você está mentindo para mim...
— Não espere mais por ele; ele não virá. — A verdade de algumas histórias é cruel, mas Kong Hou achou que aquela rainha precisava saber a verdade cruel, em vez de alimentar a ilusão de que seu amor pelo rei terminara numa mentira.
Isso era injusto para o rei Sang Yu, para a rainha e para a lenda que se passava há mil e oitocentos anos.
— Você mente, você mente, você mente... — a mulher fantasma continuou a balançar a cabeça. — Meu rei é sábio e amoroso com seu povo. Ele é o melhor rei do mundo. Sua alma não teria sido destruída. Você mente para mim.
A raiva em seu corpo começou a se dissipar, e seus olhos sangraram sangue. De repente, seus cabelos negros ficaram brancos.
— Meu rei disse que plantaria flores vermelhas por toda a montanha para mim, que nunca nos separaríamos em toda a vida. Ele disse...
Depois de dizer isso, ela pareceu lembrar de algo e voou para fora do palácio. Kong Hou hesitou, mas a seguiu. Depois de voar por um longo tempo, viu o fantasma feminino parar numa montanha deserta. Ninguém morava naquela montanha remota, mas, na base, flores vermelhas brilhantes floresciam em profusão.
Kong Hou nunca tinha ouvido um choro assim, como o lamento de um cisne solitário, como o pranto de um cuco. Cada som batia em seu coração.
O amor seria tão milagroso? A ponto de fazer um imperador desafiar o céu e ter sua alma destruída? Fazer uma beleza famosa no mundo inteiro ficar ano após ano naquele palácio solitário só por causa de uma promessa feita ao rei?
Que coisa terrível. Por que as pessoas ainda desejam isso?
Uma luz apareceu no leste. O fantasma parou de chorar. Olhou para o céu e murmurou:
— O amanhecer está chegando.
Ela colheu uma flor vermelha e a colocou atrás da orelha. O fantasma se virou para Kong Hou:
— Eu sou bonita?
Kong Hou assentiu.
— Meu rei também disse isso. Ele disse que eu sou mais bonita que as flores.
Ela se levantou e levou Kong Hou até uma porta escondida.
— Obrigada por me contar a história.
A porta de pedra se abriu. Dentro havia um palácio subterrâneo cheio de brocados, seda, pérolas, jade e pedras preciosas, e todo tipo de estátua de barro. O fantasma conduziu Kong Hou por um longo caminho até parar diante de uma porta de pedra com um baixo-relevo de uma mulher segurando uma lanterna, prestes a abrir a porta. A escultura parecia viva, uma pessoa esperando por alguém.
O fantasma tocou o rosto da porta e disse, com sorriso e lágrimas:
— Ele queria que eu esperasse por seu retorno todos os dias. Eu devo voltar.
— Você... — Kong Hou estendeu a mão para segurá-la, mas sua pele estava gelada.
— Meu rei vai voltar, não vai? — Ela se virou e sorriu para Kong Hou.
Kong Hou pensou na história do rei Sang Yu. Os livros diziam que, após sua morte, seu irmão mais novo assumira o trono. Depois da coroação do novo rei, ele não permitiu que Sang Yu fosse enterrado junto de sua amada rainha, colocando-o no túmulo real. Nos últimos mil anos, os túmulos reais da Dinastia Feng Ocidental foram saqueados por ladrões, mas nunca encontraram o túmulo verdadeiro.
— Sim — Kong Hou assentiu. — Com certeza.
Ela ajudaria a encontrar os ossos do rei Sang Yu para que marido e mulher pudessem descansar juntos.
— Obrigada.
A porta de pedra se abriu. Dentro, dois caixões de jade, um vazio e outro com uma mulher. Mesmo depois de mil e oitocentos anos, o corpo dela permanecia intacto, como se estivesse viva.
— Eu devo dormir — o fantasma sentou-se no caixão de jade e tirou uma caixa de debaixo do travesseiro do corpo feminino. — Pegue isto. Quando penso no preço que o rei pagou, não posso deixá-la descansar ao meu lado.
Depois que a caixa foi afastada, o corpo no caixão virou pó, sobrando apenas um manto grandioso bordado em ouro e jade.
Observando seu próprio corpo se desfazer em pó, o fantasma sorriu indiferente e empurrou a caixa de jade para as mãos de Kong Hou:
— Eu tenho um nome — sou Qing Luo.
Depois disso, ela caiu no caixão, transformando-se em pontinhos de luz que desapareceram no mundo.
Kong Hou não sabia por que a garganta lhe apertava. Enxugou as lágrimas que escapavam dos olhos e colocou a tampa do caixão para Qing Luo. Tirou o pó do topo.
Disse com a voz rouca:
— Vou encontrar seu rei para você.
Fechando a porta de pedra, Kong Hou olhou para o sol da manhã que nascia no leste. As flores brilhantes eram mais vermelhas que o sol.
No palácio imperial, Huan Zhong de repente estendeu a mão para sentir o pulso de Kong Hou.
Possessão da alma?
Ele se levantou de repente.
— Lin Hu!
Por que a alma dela teria saído do corpo tão de repente?
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